Harold Bloom

« Os motivos para ler, como para escrever, são muito diversos, e muitas vezes não claros mesmo para os leitores ou escritores mais autoconscientes. Talvez o motivo último para metáfora, ou para a escrita e leitura de uma linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, estar em outra parte. Nesta afirmação eu sigo Nietzsche, que nos advertia que aquilo para que conseguimos encontrar palavras já está morto em nosso coração, de modo que há sempre uma espécie de desprezo no ato de falar. Hamlet concorda com Nietzsche, e os dois talvez tenham estendido o desprezo ao ato de escrever. Mas não lemos para descarregar nossos corações, portanto não há desprezo no ato de ler. As tradições nos dizem que o eu livre e solitário escreve para vencer a mortalidade. Creio que o eu, em sua busca para ser livre e solitário, em última análise lê com um só objetivo: encarar a grandeza. Esse confronto mal disfarça o desejo de juntar-se à grandeza, que é a base da experiência estética outrora chamada de o Sublime: a busca de uma transcendência de limites. Nosso destino comum é a velhice, a doença, a morte, o esquecimento. Nossa esperança comum, tênue mas persistente, é alguma versão de sobrevivência.

« Encarar a grandeza quando lemos é um processo íntimo e dispendioso, e jamais esteve em grande voga crítica. Agora, mais que nunca, está fora de moda, quando a busca de liberdade e solidão é condenada como politicamente incorreta, egoísta e não adequada à nossa sociedade angustiada.»

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« Que utilidade pode ter para um crítico individual, tão tardiamente na tradição, catalogar o Cânone ocidental como o vê? Mesmo nossas universidades de elite hoje estão inertes diante das continuadas levas de multiculturalistas. Ainda assim, ainda que nossas atuais modas prevaleçam para sempre, as escolhas canônicas de obras passadas e presentes têm seu próprio interesse e encanto, pois também elas fazem parte da continuada disputa que é a literatura. Todo mundo tem, ou deve ter, uma lista para uma ilha deserta, para o dia em que, fugindo de seus inimigos, seja lançado na praia, ou quando se afastar capengando, todas as guerras feitas, para passar o resto de seu tempo lendo tranqüilamente. Se eu pudesse ter um livro, seria Shakespeare completo; se dois, isso e a Bíblia. Três? Aí começam as complexidades. William Hazlitt, um dos poucos críticos definitivamente no Cânone, tem um esplêndido ensaio “Sobre a leitura de Velhos Livros”:

Não penso inteiramente o pior de um livro por ter sobrevivido ao autor uma ou duas gerações. Confio mais nos mortos que nos vivos. Os escritores contemporâneos podem em geral dividir-se em duas classes – nossos amigos e nossos inimigos. Dos primeiros, somos obrigados a pensar bem demais, e dos últimos estamos dispostos a pensar mal demais, receber muito prazer da folheada, ou julgar com justiça o mérito de uns e outros.

« Hazlitt manifesta uma cautela própria ao crítico numa era de crescente tardiedade. A superpopulação de livros (e autores), causada pela extensão e complexidade da história registrada do mundo, está no centro dos dilemas canônicos, hoje mais que nunca. “Que vou ler?” não é mais a questão, uma vez que tão poucos lêem hoje, na era da televisão e do cinema. A questão pragmática tornou-se: “Que não vou me dar o trabalho de ler?”»

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« A ideologia desempenha um papel considerável na formação de um cânone literário se se quer insistir em que uma posição estética é em si uma ideologia, uma insistência comum a todos os seis ramos da Escola do Ressentimento: feministas, marxistas, lacanianos, neo-historicistas, desconstrucionistas, semióticos. Há, evidentemente, estética e estética, e os apóstolos que acreditam que o estudo literário deve ser uma franca cruzada pela transformação social obviamente manifestam uma estética diferente da minha versão pós-emersoniana de Pater e Wilde.»

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« Por que, então, é a literatura tão vulnerável à investida de nossos idealistas sociais contemporâneos? Uma resposta parece ser a ilusão comum de que menos conhecimento e menos habilidade técnica são necessários para a produção ou compreensão da literatura de imaginação (como a chamávamos) que para outras artes.

« Se todos falássemos em notas musicais ou pinceladas, suponho que Stravinsky e Matisse estariam sujeitos aos riscos peculiares hoje sofridos pelos autores canônicos. Tentando ler muitas das obras apresentadas como alternativas do ressentimento ao Cânone, reflito que esses aspirantes devem acreditar que falaram prosa a vida inteira, ou então que suas sinceras paixões são já poemas, exigindo apenas uma pequena reescrita. Volto-me para minhas listas, esperando que os sobreviventes letrados encontrem entre si alguns autores e livros que ainda não encontraram, e colham as recompensas que só a literatura canônica oferece.»
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O Cânone Ocidental, de Harold Bloom.