palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Tá maluca?

A mulher fritava os bifes enquanto o marido folheava uma revista:

— Roberto, você não acha que a gente já pode pintar a casa no mês que vem?

— Pintar a casa? Tá maluca? A gente não vai pintar casa nenhuma.

— Ué, e por que não? A gente já tem dinheiro.

— Você nunca percebe, né, Marisa? Fica reparando nas casas dos vizinhos, mas não repara no que acontece com eles.

— Claro que reparo! Eles tem as casas conservadas, bonitas. Já a nossa tá parecendo é uma casa assombrada. O que acontece com eles é que eles se sentem bem e a gente, não.

— Não, senhora: o que acontece com eles é que todo mês um deles é assaltado. Nossa casa não é feia: ela está é camuflada de casa de pobre, de casa de quem faliu e perdeu tudo.

— Que idéia!

— Mas é verdade! Você fica na sua, não conversa com nenhum vizinho e nunca sabe o que está acontecendo. O Ferreira, por exemplo, foi assaltado no começo do ano. O Antônio e a Janete uma semana depois. No final do ano passado foi a casa do André e da Renata. O seu Souza, que é viúvo, foi assaltado ontem! Você não viu o carro da polícia aí na rua?

Ela arregalou os olhos:

— Não, não vi!

— Pois é.

— Coitado! Machucaram ele?

— Não, mas limparam a casa inteira! Levaram as duas TVs de tela plana, dinheiro, celular, as jóias da falecida, até a máquina de café os safados levaram.

— Nossa!

— E sabe como carregaram isso tudo? No carro dele! Pois é, até o carro levaram. E com o Ferreira foi a mesma coisa.

— É por isso que…

— Sim, é por isso que não troco de carro há dez anos! Os malandros passam na rua e devem ficar com dó da gente. Esses assaltos acontecem por aqui o tempo todo há anos! Os que te contei não foram os primeiros.

— Poxa, mas será que não tem outro jeito? Nossa casa tá muito largada…

— Não sei por que você tá reclamando. Aqui dentro não falta nada e temos mais coisas do que eles. E sempre sobra dinheiro pra gente viajar, pra comer em restaurantes, pra ajudar os meninos… Enfim, sem essa de pintar casa ou de comprar carro novo. Aliás, quem mandou você entregar meu revólver pro governo sem me avisar? Agora aguenta a feiura. Pelo menos estamos seguros.

— Daqui a pouco você vai querer que eu fique feia e me vista igual a uma mendiga só pra não ser assaltada na rua.

— Ué, pensei que você já fizesse isso.

Foi a última frase dita por Roberto. Com a frigideira que a mulher lhe deu na cabeça, desabou instantaneamente. Desesperada, chamou a ambulância. No hospital, os médicos do pronto-socorro disseram que ele havia sofrido um traumatismo craniano. Faleceu três dias depois. A viúva foi presa por homicídio.

— Não disse que eles eram estranhos? — perguntou Renata ao marido. — Aquela casa tenebrosa só podia ser de gente doente, psicótica. Quando encontrava a dona Marisa na rua, eu sempre me lembrava daquele filme “Meus vizinhos são um terror”. Ela gaguejava para falar e nunca me olhava nos olhos.

— Você tá exagerando, meu amor — tornou André. — Eles eram gente boa. Deve ter sido um crime passional.

— Hum. Se bem que é uma casa enorme, né. A gente podia dar uma olhada. Vai que os filhos a colocam à venda…

— Tá maluca? Eu é que não moro num lugar onde já morreu gente.

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1 Comment

  1. Jeferson Martins

    Não adianta fugir o perigo também está dentro de casa. Neurose e superstição, um
    a mistura explosiva. Muito bom texto Yuri, uma cena do
    que verdadeiramente acontece. Continue escrevendo. Abraço.

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