palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Autor: Yuri Vieira Page 2 of 82

Trecho de “O doente imaginário”, de Molière

Ato III, Cena III de “O doente imaginário”, de Molière.

O não-vacinado e o vacinado

BERALDO
Posso pedir-lhe, meu irmão, antes de tudo, que não se irrite durante a nossa conversa?

ARGAN
Muito bem.

BERALDO
E respondas sem rancor a tudo que eu possa dizer?

ARGAN
Sim.

BERALDO
E raciocinarmos juntos sobre o que temos de falar, com o espírito livre de toda paixão?

ARGAN
Sim, que diabo! Acabe com o preâmbulo!

BERALDO
De onde lhe vem a idéia de meter sua filha num convento?

ARGAN
Vem do fato de eu ser dono de minha família e poder fazer com ela o que me parecer melhor!

BERALDO
Sua mulher não se cansa de aconselhar que você se livre de suas filhas; e eu não duvido de que, por espírito religioso, ela se encante de ver as duas como freiras.

ARGAN
Agora chegamos ao ponto. Já está em jogo a minha pobre mulher. É ela quem pratica todo o mal; ninguém gosta dela!

BERALDO
Não, meu caro irmão. Sua mulher tem as melhores intenções para com sua família, e não liga a qualquer interesse; e lhe dedica uma ternura maravilhosa; e mostra por suas filhas uma afeição e uma bondade inconcebíveis. Tudo isto é certo. Não falemos disto e voltemos a Angélica. Por que quer você entregá-la ao filho desse médico?

ARGAN
Porque quero um genro que me convenha.

BERALDO
Parece até que você quer casar com ele! Pois eu lhe digo; apareceu um melhor partido para sua filha.

ARGAN
Mas o que escolhi é melhor partido para mim.

BERALDO
Mas o marido é para ela ou para você?

ARGAN
Para ela e para mim: quero na família as pessoas de que preciso.

BERALDO
E por isso se Luizinha fosse mais crescida, você lhe arranjaria um farmacêutico?

ARGAN
Por que não?

BERALDO
Será que você estará sempre enrabichado pelos seus doutores e farmacêuticos, e deseja ser doente a ponto de contrariar a natureza?

ARGAN
Que é que você acha, meu irmão?

BERALDO
Não vejo ninguém menos doente do que você; eu gostaria de ter a sua saúde! Uma grande prova de que você se sente bem e tem uma resistência incrível, é que todos esses clisteres não conseguiram derrubá-lo e você consegue ficar em pé depois de tantas inundações.

ARGAN
Mas são estas coisas que me conservam! O Doutor Purgon afirma: eu morrerei se passar três dias sem sua assistência!

BERALDO
Se você não tomar cuidado, ele lhe dará tanta assistência que o enviará ao outro mundo.

ARGAN
Vamos lá: raciocinemos, meu irmão. Você não acredita na medicina?

BERALDO
Não, meu irmão: e não vejo necessidade de crer para ter saúde.

ARGAN
O quê? Você não acha verdadeira uma coisa estabelecida por todos e por todos os séculos reverenciada?

BERALDO
Muito ao contrário, cá entre nós, acho-a uma das maiores loucuras dos homens; e, contemplando as coisas como filósofo, não vejo palhaçada mais divertida, nada de mais ridículo, que um homem a querer curar outro.

ARGAN
Por que, meu irmão, você não quer aceitar que um homem possa curar outro?

BERALDO
Por um simples fato; as peças de nossa máquina são mistérios; até hoje os homens não entendem patavina destas coisas; e a natureza colocou véus demasiado espessos, diante dos nossos olhos, para que possamos enxergar alguma coisa.

ARGAN
Na sua opinião, os médicos não sabem nada?

BERALDO
Sabem grande quantidade de humanidades, sabem falar em belo latim, sabem batizar em grego todas as doenças, defini-las e classificá-las; mas, quando se trata de curar não sabem nada de nada.

ARGAN
Mas pelo menos vamos convir: nessa matéria, os médicos sabem mais que os outros.

BERALDO
Sabem o que eu já disse e que não cura grande coisa; e toda a excelência de sua arte e uma pomposa parlapatice, um especioso dialeto, a oferecer palavras como razões e promessas como efeitos.

ARGAN
Mas, meu irmão: há pessoas tão sensatas e hábeis quanto você, e essas pessoas, quando adoecem, chamam médicos.

BERALDO
Aí está uma marca da fraqueza humana, e não uma verdade da arte médica.

ARGAN
Mas os médicos certamente crêem na verdade de sua arte. Pois se servem dela para si mesmos.

BERALDO
É que há entre eles os que estão, eles próprios, atolados no erro popular, de onde tiram proveito: e outros que aproveitam sem acreditar no erro. Veja o Doutor Purgon, por exemplo, homem sem a menor finura: é médico, da cabeça aos pés; um homem que crê nas suas regras mais do que em todas as demonstrações matemáticas, e julgaria crime examiná-las: não vê nada de obscuro na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil: e, com uma impetuosidade de prevenção, uma confiança cega, uma total brutalidade de senso comum e de razão, sai por aí a dar lavagens e sangrias! Não devemos querer mal a ele por tudo quanto deseja fazer por você: é com a melhor boa-fé do mundo que irá mandá-lo para o outro mundo. Quando o matar, terá feito com você o que fez com a mulher e os filhos e o que acabará fazendo com ele mesmo.

ARGAN
Você tem é implicância com ele! Mas vamos ao fato: que devemos fazer quando adoecemos?

BERALDO
Nada.

ARGAN
Nada?

BERALDO
Nada. Nada de ficar em repouso. Quando deixamos agir a natureza, ela se safa docemente da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência que estragam tudo; e quase todos os homens morrem dos seus remédios, não de suas doenças.

ARGAN
Mas é preciso concordar, meu irmão: pode-se ajudar a natureza por certos meios.

BERALDO
Santo Deus! Estas são idéias que gostamos de cultivar; em todos os tempos, surgem entre os homens belas fantasias em que acabamos acreditando, porque é agradável imaginá-las verdadeiras. Quando um médico fala de ajudar, de socorrer, de aliviar, de arrancar da natureza o que a aflige e de lhe dar o que lhe falta, de restabelecê-la no pleno gozo de suas funções, quando fala de corrigir o sangue, de temperar as entranhas e o cérebro, de esvaziar as glândulas, de sossegar o peito, de consertar o fígado, de fortificar o coração, de restabelecer e conservar o calor natural, e de ter segredos para prolongar a vida, está falando justamente do romance da medicina. Mas quando se vai à verdade da experiência, não se encontra nada disto: tudo é como os belos sonhos, que ao despertar nos deixam apenas a tristeza de ter acreditado neles.

ARGAN
Muito bem! Toda a ciência do mundo está guardada na sua cabeça! E você sabe mais que todos os grandes médicos do século!

BERALDO
Nos discursos e na ação, são pessoas diferentes esses seus grandes médicos: quando falam, são os mais hábeis do mundo; quando agem, são os mais ignorantes dos homens.

ARGAN
Ah! Pelo que vejo, você é um grande doutor, e eu gostaria que aqui estivesse algum desses senhores, para revidar seus raciocínios e baixar o seu topete.

BERALDO
Não me atribuo a tarefa de combater a medicina, meu irmão; cada um corra o risco de crer no que quiser. O que eu digo é entre nós; e eu gostaria de levá-lo, para divertir-se sobre o assunto, a ver alguma das comédias de Molière.

ARGAN
Aí está um bom impertinente, esse Molière, com suas comédias! E não deixa de ser um gaiato, quando zomba de gente honesta como os médicos!

BERALDO
Não é dos médicos que ele zomba: é do ridículo da medicina.

ARGAN
Fica-lhe muito bem meter-se a controlar a medicina! Aí está um belo joão-ninguém, a zombar de consultas e receitas, a atacar a corporação dos médicos, a exibir no teatro pessoas verdadeiras como os doutores!

BERALDO
Que é que você quer que ele exiba? Todas as profissões? Aí se exibem também todos os dias os príncipes e os reis, gente tão decente quanto os médicos.

ARGAN
Com mil demônios! Se eu fosse médico, me vingaria de sua impertinência! E quando adoecer, deixem morrer sem socorro esse senhor Molière! Eu o deixaria falando sozinho, não lhe receitaria a menor sangria, o menor clister! E lhe diria: morra, morra! Isto te ensinará a zombar da Faculdade!

BERALDO
Que cólera contra ele!

ARGAN
Estou com raiva, sim! É um tolo! E se os médicos têm juízo, farão o que eu digo!

BERALDO
Terá mais juízo do que os seus médicos, porque não lhes pedirá socorro.

ARGAN
Pior para ele, se não usa remédios.

BERALDO
Para isto tem suas razões; e sustenta que só os robustos e vigorosos podem fazê-lo, suportando os remédios e ao mesmo tempo a doença; quanto a ele, diz que só tem forças para carregar seu próprio mal.

ARGAN
Que razões tolas! Chega de falar desse homem: isto me esquenta a bílis e me faz piorar.

BERALDO
Para mudar de assunto, quero dizer-lhe: você não deve mandar sua filha para um convento pelo fato de ela mostrar suas pequenas repugnâncias. Para a escolha de um genro, não se deve seguir cegamente a paixão que o arrebata. Neste assunto, deve-se procurar atender um pouco às inclinações da jovem. Trata-se de uma escolha para toda a vida, e dela depende a felicidade do casamento.

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A peça pode ser baixada, em PDF, neste link.

Decameron: Giovanni Boccaccio descreve as atribulações dos florentinos durante a Peste Negra

Giovanni Boccaccio

Leia o trecho abaixo e ajuste seu senso das proporções.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

“E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

“Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação.

“E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.

“É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse. Digo que era tamanha a eficácia de tal peste em passar de um ser a outro, que ela não o fazia apenas de homem para homem, mas fazia muito mais (coisa que indubitavelmente ocorreu várias vezes), ou seja, o animal não pertencente à espécie do homem que tocasse as coisas do homem que adoecera ou morrera dessa doença não só adoecia também como morria em brevíssimo espaço de tempo. Tive, entre outras, a seguinte experiência, coisa vista com meus próprios olhos, como há pouco disse: um dia tendo os farrapos de um pobre homem morto da doença sido jogados na via pública, dois porcos se aproximaram deles e, conforme é seu costume, primeiro os fuçaram e depois os tomaram entre os dentes para sacudi-los; em pouco tempo, como se tivessem tomado veneno, após algumas contorções ambos caíram mortos sobre os trapos que em má hora haviam puxado.

“De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. E podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem viver, tinham abandonado suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, em sua maioria, tinham se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e, apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse. Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios. Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira.

“E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos. E, do fato de estarem os doentes abandonados por vizinhos, parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse, se importava de ter um homem a seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos.

“Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. Essas coisas, depois do aumento da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras em seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor, como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges; em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina, aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. E eram raros aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.

“E, deixando de lado todas as particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes, onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias, sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas quase como animais. Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos em seus costumes, eles não cuidavam de suas coisas nem de seus afazeres; ao contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no presente. Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por pastores.

“Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho (por força da doença pestífera e porque muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados em suas necessidades, devido ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!”

Trecho de Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375)

O décimo terceiro apóstolo

Outro dia, assisti no Youtube a uma entrevista do John Cleese (ex-integrante do grupo Monty Python) concedida ao ótimo e sempre elegante Dick Cavett. Falavam sobre o filme A Vida de Brian.

Cleese comenta que a idéia original era tornar Brian o décimo terceiro apóstolo de Cristo, aquele que sempre chegaria atrasado às reuniões, que ficaria extremamente confuso com as parábolas e cuja mãe, controladora que só, atrapalharia seu ministério religioso. Mas os membros do Monty Python, nem um pouco idiotas, refletiram: ora, Jesus, sendo Deus, sendo o homem perfeito, sempre conseguiria dar a volta por cima, tolerar o Brian e ensinar-lhe muitas coisas. Ou seja: não teria graça, pois, como diz Cleese, citando Aristóteles sem o perceber, “a comédia é a imitação de pessoas piores do que a gente”. Como fazer humor de alguém que é infinitas vezes melhor do que nós? Não funcionaria.

Não sei se os membros do Monty Python acreditam ou não em Jesus, não sei se são ou não cristãos. Sei apenas que alguns deles de vez em quando dizem algumas besteiras sobre política no Twitter, o que, na confusão dos dias atuais, é compreensível. Mas o fato é que, na época em que escreveram o roteiro de A Vida de Brian, demonstraram entender de símbolos — e isto basta para a arte.

De início, quando ouvi a idéia sobre o “décimo terceiro apóstolo”, pensei: terão temido as críticas dos cristãos? E logo vi que não: coragem não lhes faltava, nem ousadia. Mas, além dessas virtudes, também possuíam imaginação moral e compreensão de arquétipos. Ora, antes de o sujeito ser irreverente, ele precisa primeiro conhecer a reverência. Mas vai tentar enfiar isto na cabeça desses supostos humoristas que hoje andam por aí…

Como destruir a Mulher Maravilha

No final de semana, enquanto zapeava na Net, notei um contraste curioso: há filmes em que bravas mulheres (umas mais, outras menos maravilhas) liquidam heroicamente monstros, máfias, exércitos e vilões interplanetários sem sequer desmanchar o próprio cabelo, suar ou borrar a maquiagem; e há filmes em que mulheres, numa pusilanimidade de pasmar bisavó centenária, quase morrem ao tentar cuidar de dois ou três filhos traquinas e remelentos. Entre estas últimas, muitas apresentam uma constituição física mais brutal do que as mulheres maravilhas, mas, infelizmente, é como se, no fundo, fossem super-mulheres cujos filhos nasceram compostos de kryptonita.

Ou seja: para Hollywood, enfrentar um tanque de guerra com um bracelete polido e reluzente, ou uma hidra de sete cabeças com um canivete suíço cor-de-rosa, é muito mais fácil, mais agradável e menos perigoso do que ser mãe. Pelo jeito, crianças são mais terríveis e fatais do que o Alien e o tubarão agindo em conjunto. “Evite-as a todo custo”, parecem alertar os roteiristas.

Isto também significa que a melhor maneira de um vilão torvo e maquiavélico derrotar a Mulher Maravilha seria dando um jeito de fazê-la engravidar — talvez lhe apresentando um sujeito bonito, bacana, inteligente e bem-humorado. Vai que rola um match, uma química. (Não sei se a Mulher Maravilha liga para dinheiro ou sucesso, parece-me que não, de onde se deduz que eu mesmo poderia fazer parte do malvado plano.) Então, inocentemente, o fulano colocaria seus malignos girinos transparentes no útero da pobre super-heroína. Ao nascer, o filho maravilha acabaria com ela: haveria depressão pós-parto, sensação de inutilidade, cansaço, exaustão, brigas com o Fulano, vômitos sobre a fralda suja e muita reação alérgica às remelas de kryptonita.

Sim, admirável Hollywood feminista, é mais fácil destruir os inimigos, sem sofrer nenhum arranhão, do que amar os próprios filhos. Vai nessa.

Retardados

Um caminhão carregado de laranjas tombou em frente ao Instituto Antônio Houaiss. Não foi um acidente: as próprias laranjas, após uma acalorada reunião, o tombaram. Em seguida, rolaram até a portaria do prédio, onde começaram a protestar, afirmando que o uso de seu nome, enquanto referência a um crime de natureza política, denigria sua imagem.

Um militante do movimento negro, passando por lá naquele mesmo instante, ouviu a terrível palavrinha — “Denigrir”?! — e enfezou-se. Sim, diria o vulgo, como se estivesse cheio de fezes.(O vulgo não sabe que a palavra “enfezar” vem do latim infensare.) E o militante, pois, furibundo, começou a pisotear as laranjas, que então gritaram de dor:

— Ai! Ele tá judiando da gente!

Ao ouvir aquilo, um careca (sim, um neonazista com as suásticas tatuadas ocultas sob a camiseta) — irritar-se-ão os que sofrem de calvície? — enfim, um careca iniciou um discurso no qual dizia que não apenas o holocausto, mas até mesmo os pogrons, nunca aconteceram. E também passou a sapatear sobre as pobres frutas. De fato, ouviu-se uma idosa dizer claramente: “Pobres frutas!”. E isto, claro, ofendeu um mendigo que, até então, limitara-se a observar silenciosamente a cena:

— Fruta é o veado do seu filho!

Para quê… Um militante gay enfureceu-se com aquilo, e então berrou:

— Veado é a mãe! Eu sou é gay.

No zoológico ao lado, o veado macho, líder do bando, pai zeloso, subiu nas tamancas, bradando lá de dentro:

— Como é que é?! Mãe?! Tá me estranhando?

E logo pulou a cerca, indo chifrar o militante gay.

O furdunço foi tamanho, que o Dicionário Houaiss, o famigerado Pai-dos-burros, que anos atrás já tivera problemas enormes com os ciganos (informe-se), levantou-se da prateleira e, da janela do prédio, ralhou a plenos pulmões com seus filhos, todos ali, engalfinhados na calçada, a rolar sobre marolas de suco de laranja:

— Parem de confundir o sentido literal ou o etimológico com o sentido conotativo, seus retardados!

Olharam-no pasmados, mas, sem dar com o significado daquelas estranhas palavras, partiram, em uníssono, para uma nova ignorância:

— Aquele livro falante ofendeu as pessoas portadoras de deficiência mental! Vamos rasgá-lo!

E isso explica por que, em frente ao Instituto Antônio Houaiss, nesta tarde, havia tanto papel misturado a bagaços de laranja.

O Abominável Homem do Campus – Paulo Briguet

Yuri Vieira é um dos melhores e mais engraçados escritores em atividade no Brasil. Em 1997, depois de abandonar cinco cursos universitários — Jornalismo, Engenharia Civil, Engenharia Florestal, Letras e Artes Plásticas — e morar por cinco anos no alojamento estudantil da UnB (Universidade de Brasília), ele resolveu adotar a estratégia de Henry Miller e escrever sobre o seu suposto fracasso. O resultado é o livro “A Tragicomédia Acadêmica — Contos Imediatos do Terceiro Grau”, que tive a felicidade de ler nos últimos dias, com 20 anos de atraso. 

Conheci pessoalmente Yuri Vieira em 2015, durante um encontro de escritores na casa do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, em Richmond, EUA. Há uma década eu já era um leitor dos contos, crônicas e entrevistas publicados em seu blog pessoal. Ao conviver com Yuri por uma semana, comprovei que ele era tudo aquilo e mais um pouco: um cara inteligente, com boas histórias para contar, divertidíssimo e, além de tudo, um razoável cantor, com quem fiz alguns duetos na legendária van dirigida pelo professor Silvio Grimaldo nas estradas da Virgínia. Ah, Yuri gosta de cerveja. 

“A Tragicomédia Acadêmica”, republicado em 2016 pela Vide Editorial, é um livro que parece ter sido escrito por um Henry Miller possuído pelo espírito de Millôr Fernandes. São histórias de uma realidade ao mesmo tempo fantástica e profética, que mais uma vez comprovam a justeza da frase de Hoffmmansthal: “Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na sua literatura”. A universidade descrita por Yuri, absolutamente dominada por delírios ideológicos e egocêntricos, é uma imagem precisa e inesperadamente realista da maioria dos campi brasileiros em 2017. 

Todos os contos do livro são bons, mas eu destacaria dois: “Paralíticos e Desintegrados” e “O Abominável Homem do Minhocão”. O primeiro é uma clara referência paródica ao livro “Apocalípticos e Integrados”, de Umberto Eco. Trata-se de uma delirante entrevista de um jovem estudante de jornalismo com dois figurões da mídia cultural: o jornalista Mauro Austris e o semiólogo e escritor Roberto Eca. Um dia ainda vou gravar um vídeo encenando esse conto, com meu amigo Bernardo Pires Küster no papel de Eca e eu mesmo no papel de Austris. 
“O Abominável Homem do Minhocão” é uma perfeita metáfora do que aconteceu em grande parte do mundo acadêmico brasileiro, em especial nos departamentos de humanidades. Em 1974, com medo de ser preso pela ditadura, um professor refugia-se nos subterrâneos de um prédio universitário e passa a assombrar os alunos e professores da instituição. Para ele, os generais ainda estão no poder e o socialismo continua sendo a esperança da humanidade. 

Ao lado dos bons professores e estudantes, que felizmente ainda são a maioria, lutemos para que a nossa UEL não seja dominada por semelhante fantasma, que aqui se chamaria, sem dúvida, o Abominável Homem do Pinicão. 

Artigo de Paulo Briguet para a Folha de Londrina.
Fale com o colunista: avenidaparana@folhadelondrina.com.br

Rodrigo Gurgel: “Dr. João Pinto Grande — um herói para o nosso tempo”

Resenha crítica de Rodrigo Gurgel, crítico da Folha de S. Paulo  e do Jornal Rascunho:

O mais recente livro de Yuri Vieira, A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, esconde, sob o título atrevido, ao menos dois contos que merecem leitura cuidadosa.

“Amarás ao teu vizinho” é uma aventura da qual participa o personagem que dá nome à coletânea. O substantivo aventura, contudo, não expressa com acerto a índole e o tom da narrativa, composta, em grande parte, de longos diálogos, pois os riscos e peripécias enfrentados pelo protagonista extrapolam o campo das façanhas heroicas a que o senso comum está acostumado, avançando para camadas menos superficiais do comportamento humano.

No primeiro diálogo, o protagonista encontra-se, no portão de sua casa, com Francisco, morador do “único casebre miserável da rua”, sempre disposto, quando bêbado, a conversar com o Dr. João. O diálogo é sugestivo, bem construído, com leves tiradas humorísticas — a analogia entre o desenho do Pica-Pau e a ideia budista da vida como sofrimento, por exemplo, quebra o tom filosófico e paternalista que Pinto Grande concede às suas falas, tão longas que obrigam o paciente Francisco a isolar-se em sua curiosa busca do samádi. No final da narrativa, aliás, o próprio Dr. João, recordando esse diálogo, reconhecerá o erro de trocar “caridade por papo-cabeça sobre o amor”, trecho que demonstra o controle de Yuri Vieira sobre suas histórias: o que, no início, parecia hesitação ou descuido com os rumos da trama, revela-se introdução adequada ao tema que será aprofundado no segundo diálogo.

Na verdade, o conto esconde detalhado planejamento: desde o primeiro parágrafo, duas linhas narrativas se anunciam, ambas marcadas pelo tema da “vizinhança”: o diálogo com Francisco, vizinho pobre e desprezado por toda a rua, inclusive pela própria família, e a visita ao casal Josif e Draga, antigos vizinhos de Pinto Grande, quando era adolescente, com os quais jantará minutos depois.

Quanto mais avançamos nessa noite em que a relação com o próximo será triturada, exposta em suas contradições e levada a paroxismos, mais percebemos o intrincado enredo a que fomos conduzidos: o jantar transforma-se numa descida ao vale do Flegetonte, para conhecer não só a violência contra nossos semelhantes, mas também homens distintos: os que soçobram diante do apelo a diferentes gestos de agressão e aqueles que, dominando seus instintos, recusam o Mal.

Yuri Vieira constrói, assim, raro exemplo de conto filosófico — e não ideológico. Não se trata de uma peça de propaganda política ou religiosa, não há ideias a priori que o autor deseja propagandear. A interrogação a respeito de nossa relação com o Outro manifesta-se nas situações vividas durante o jantar, em longo e diversificado diálogo, quando os personagens se entrechocam num antagonismo crescente. Os extremos a que somos levados, do inocente diálogo com Chico ao terrível embate na casa dos iugoslavos, são representações realistas dos encontros e desencontros a que estamos fadados — e não meras abstrações de um ideólogo que desejou escrever ficção. O conto dá concretude às escolhas humanas, tantas vezes próximas do completo desatino. E dessa noche oscura, em que os personagens se debatem à procura de saídas para o desespero, emerge, no final perfeito, a límpida figura do Dr. João Pinto Grande, plenamente livre em seu repúdio ao Mal.

O gênero do conto é conduzido, assim, a regiões pouco visitadas em nossa literatura contemporânea: longe dos insignificantes quebra-cabeças linguísticos ou dos narradores ambíguos — que, na verdade, escondem escritores preguiçosos —, o leitor terá de respirar numa atmosfera espessa, hostil, de informações adversas, na qual pieguice e vitimismo são substituídos pela correta — e esquecida — consciência do que é uma virtude.

Verdugos hipócritas

“A menina branca” segue chave diversa. Nesse conto, o destino de Edgard, o protagonista, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o Brasil luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela nos recorda a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em A marca humana.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

O narrador de “A menina branca” nos sequestra desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo é perfeito.

Yuri também demonstra timing correto e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por um inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

A narrativa, contudo, esconde, nas entrelinhas da derrocada de Edgard, crítica perturbadora: o personagem erra não por sua própria vontade, mas pressionado pelo que se costuma chamar, na falta de expressão menos demagógica, de opinião pública. É o paradoxo do nosso tempo: ser levado ao erro pela vontade cega do politicamente correto — e depois ver-se condenado por esses mesmos verdugos hipócritas.

Yuri Vieira não sofre, decididamente, de narratofobia. E agora sinto-me obrigado a ler todos os contos.

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