Blog do Yuri

palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Rodrigo Constantino: “A imaginação moral de Yuri Vieira e A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Nunca tinha lido nada de Yuri Vieira. Que desperdício de tempo! O prejuízo foi meu, certamente. Li sobre seu livro A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau, em A corrupção da inteligência, de Flávio Gordon,  fiquei curioso e o comprei. E logo o devorei.

Lembrei, depois, que meu editor Carlos Andreazza tinha me mandado de presente seu novo livro, A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, cujo título já é uma comédia em si. Resultado: tive uma “overdose” de Yuri Vieira nos últimos dias, com a sensação de ter de recuperar o tempo perdido, de quando ainda não conhecia seus contos hilários, seu estilo envolvente.

Edmund Burke falou en passant do conceito de “imaginação moral”, que foi elaborado por Russell Kirk depois e se tornou uma ideia cara aos conservadores. G.K. Chesterton, T.S. Eliot, Tolkien e C.S. Lewis são exemplos claros de escritores que trabalharam bem com essa noção de “imaginação moral”, e transmitiram valores tradicionais por meio de suas histórias fantásticas e seus personagens encantadores.

Por acaso, terminei junto com os livros de Yuri a quinta e última temporada da série “Father Brown”, da BBC, inspirada no personagem criado por Chesterton, um dos meus favoritos (que delícia era ler seus contos antes de dormir!). Pois bem: o advogado de nome curioso, Dr. João Pinto Grande, remeteu-me ao Padre Brown, com sua postura cristã, seu desejo de realmente ajudar, fazer o bem, ser uma pessoa melhor, acreditar no outro, apostar no próximo, ter fé na humanidade, apesar de tudo.

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Yuri passa as mensagens que eu tento também transmitir em meus textos, mas com incrível leveza e contando uma história divertida, muitas vezes surreal, que prende o leitor do começo ao fim. Até mesmo uma aula de Bitcoin e de escola austríaca ele conseguiu encaixar num conto que ficou, acreditem, leve e divertido. Há críticas ao feminismo, ao esquerdismo em geral, ao vegetarianismo radical, e tudo isso navegando pelas questões religiosas profundas, com excelentes diálogos.

No livro anterior, tem umas histórias bizarras que se passam na UnB como cenário, contendo críticas ácidas ao nosso modelo de ensino, aos professores, reitores, artistas e também psicólogos. Numa das histórias, em que o “artista” se torna uma “estátua viva” por acidente e é considerado um gênio, eu chorei de rir, mas depois percebi que era legítimo só chorar mesmo, sem rir, pois chegamos a esse grau de maluquice com nosso relativismo estético:

Até que um dia, desmaiou de exaustão sobre uma de suas telas. Sua cara ficou estampada ali. “Fantástico!”, afirmaram os críticos. “Ele encontrou um estilo próprio. Sente-se sua marca, sua personalidade em cada uma de suas obras. Um gênio!”

[…]

Fazia esculturas com argila. Usava-as, quando ainda úmidas, como travesseiro. Sua casa tornara-se um processo de criação artística. Os críticos aplaudiam. O dinheiro e a fama entravam.

Não é à toa que se trata de uma tragicomédia! A história com a psicóloga também é extremamente engraçada, mas triste ao mesmo tempo, quando penso em tantos psicanalistas que conheço que são exatamente assim, super vaidosos, com um ego maior do que o mundo, tentando posar para a plateia em vez de realmente se conhecer a fundo, exatamente como a autoritária personagem que só se encontrou na academia, onde poderia exercer seu desejo de comando:

Quando se formou, Maria Eugênia foi trabalhar num sanatório. Não agüentou um mês. “Aqueles malucos! Nunca prestavam atenção no que EU dizia…” Depois tentou clinicar. Mas também não deu certo. “Os pacientes? Eles só queriam saber de si mesmos, não me deixavam falar…” Maria Eugênia teve, então, a feliz idéia de seguir a carreira acadêmica. “Mas Maria Eugênia…” “Cala a boca! Afinal quem que é a doutora aqui?” Havia encontrado o seu lugar. O lugar perfeito. Finalmente chegara onde ninguém seria louco o bastante a ponto de enfrentá-la. Os alunos a temiam e a admiravam. Nas reuniões e seminários era sempre sua a última palavra.

Se o leitor não conhece uma psi assim, é porque não conhece muitas psis. As taras moderninhas orientais, substitutas para uma religião mais exigente como o cristianismo, também são ironizadas nos contos, assim como o socialismo, a seita secular onipresente na academia. Um desses dinossauros viveu anos no esgoto e nem percebeu o tempo passar, exatamente como tantos militantes disfarçados de “professores” que pululam nossas salas de aula e não se deram conta da queda do Muro ainda:

Não acreditava que passara mais de vinte anos nos esgotos do Minhocão. Acabara o comunismo na União Soviética – acabara a União Soviética! – não havia mais o muro de Berlim e havia Mac Donald’s na China… Todos tinham um computador pessoal, internet e cartões magnéticos… Sim, ainda havia fome, miséria e injustiça… Mas, meu Deus, quantas transformações! E ele perdera vinte anos de vida! Tudo por causa dum relógio russo, comprado em Cuba, que usara todo aquele tempo e cujo ponteiro mal se movia. Triste, muito triste.

Nos contos novos, a criação do personagem Dr. Pinto Grande foi uma sacada e tanto, e em diferentes histórias lá está ele, o advogado humilde, que anda armado pois sabe que o mundo é uma selva, mas que está mais preocupado com os selvagens existentes em todos nós, que devem ser domados, domesticados, civilizados. Sua postura é elegante, contida, educada, e ele faz perguntas que levam o interlocutor a reflexões importantes sobre a essência da vida. E sempre com humor, claro, pois ele é fundamental para suportarmos melhor a vida:

Seu Roberto, antes de as pessoas perderem o bom senso, elas perdem o senso de humor. É sempre assim. Nós vivemos uma época complicada, revolucionária, cheia de gente que tenta negar, não os aspectos nocivos da nossa animalidade intrínseca, mas a própria natureza humana. Um dia, nosso corpo morrerá e não sobrará senão nossa humanidade. Nossa animalidade ficará na cova.

Tudo isso, repito, em histórias muito criativas, como as de Padre Brown, cuja pacata Kembleford seria o lugar mais perigoso do mundo, a julgar pela quantidade de assassinatos que o sagaz padre precisa desvendar. A influência de Chesterton parece evidente em Yuri, e não foi por acaso a escolha da epígrafe do livro, tirada de O que há de errado com o mundo, do escritor inglês: “Não apenas estamos todos no mesmo barco como também estamos todos mareados”.

Se essa mensagem for realmente absorvida, poderá haver mais tolerância de fato, mais humildade, mais boa vontade para com o próximo, mas sem romantismo bobo, sem falsas ilusões, sem a pretensão de que o amor seja suficiente para abandonarmos as nossas armas, necessárias para nossa defesa. Leiam Yuri Vieira! Estou certo de que não vão se arrepender, e terminarão a leitura pedindo mais Pinto Grande…

Fonte: Gazeta do Povo.

O crítico literário Rodrigo Gurgel fala sobre “A menina branca”

O crítico literário Rodrigo Gurgel (Folha de São Paulo e jornal Rascunho) comenta A menina branca, um dos contos do livro A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande:

Li, neste final de semana, “A menina branca”, do Yuri Vieira. Li esperando encontrar o afamado Dr. João Pinto Grande, que dá nome ao livro, mas ele não me concedeu a graça da sua presença.

Começo pelo fim: o destino de Edgard, protagonista da história, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o país luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela me fez lembrar a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em “A marca humana”.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

Quem me conhece sabe que me aproximo de um texto esperando que ele me ofereça o melhor. Na maioria das vezes, contudo, tenho de me esforçar para que isso aconteça. Mas o narrador de “A menina branca” me sequestrou desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo me agradou.

Yuri também demonstra timing perfeito e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

Só me resta, agora, prosseguir na leitura, para uma resenha completa, em que eu possa falar do famigerado Pinto Grande.

Postado no Facebook.

Honolulu, 13 de Janeiro de 2018 (conto)

Naquela manhã de sábado, William e Lindsay ainda dormiam em seus respectivos quartos, quando George C. Morgado, o pai, lhes bateu violentamente à porta:

— Bill! Levanta! Rápido! — e enquanto esmurrava a porta da filha: — Acorda, Lin! Vamos!

O homem estava tão agitado e seus gritos foram tão estridentes que as crianças, muito assustadas, deixaram a cama de um pulo:

— Que foi, papai? O que está acontecendo?

— Venham! — disse, arrastando-os pelas mãos.

— Calma, pai! Tá me machucando… — resmungou a menina, que vestia apenas uma camiseta enorme que lhe atingia os joelhos.

O pai, de olhos esbugalhados, a respiração opressa, não lhes fez caso: limitou-se a conduzi-los escada abaixo até a sala. Na cozinha, Martha, a mãe, enchia um engradado plástico com várias garrafas de água mineral, sacolas de pão, caixas de cereal, embalagens de comida congelada e demais mantimentos a esse modo. William não gostou nada de ver aquela agitação:

— Ah, não! Eu não vou acampar hoje! Tenho aula de surfe à tarde.

A mãe virou-se instantaneamente para ele: seus movimentos e sua agitação eram de puro frenesi.

— Pro porão! Pro porão! — gritou ela, fitando-os com uma expressão perplexa, insana.

Lindsay começou a chorar:

— Não fui eu! Não fui eu! Foi o Bill — protestou, sem saber do que falava, mas já prenunciando um castigo inédito qualquer.

Comovida, a mãe largou o engradado sobre a mesa e a pegou no colo:

— Calma, meu bem! Nós vamos sobreviver — retrucou, sem ter apreendido senão o choro da menina.

— Rápido, Martha! — berrou o pai, colocando uma mochila às costas. — Leve-a para o porão! Eu pego o engradado.

William assistia a tudo boquiaberto:

— O que está acontecendo com vocês dois? Alguém por acaso vem prender a gente?

Não responderam. Sustentando a menina no braço direito, a mãe o segurou com a outra mão, correndo em seguida até a porta do porão, onde se meteu escada abaixo arrastando o menino pelos degraus.

— Ai, mãe!

O pai veio logo atrás com o engradado, fechando atrás de si a porta, que era de metal e tinha uma tranca quádrupla por dentro. Lindsay soluçava.

— Calma, meu bem. Nós vamos sobreviver.

Martha esticou um colchonete no piso e se sentou nele, agarrada à filha. O menino não quis acompanhá-las.

— Vocês não vão explicar nada?

Nervosíssimo, George caminhava de um lado para o outro do pequeno cômodo, o celular em punho, o rosto iluminado pela tela brilhante.

— George, o que eles dizem? — perguntou Martha.

O marido estacou:

— A mesma coisa: “não é um exercício”.

— For God’s sake! — exclamou o garoto. — Do que vocês estão falando?!

O pai o fitou intensamente e pareceu meditar por alguns segundos. Por fim, tomou-o pelo braço e o levou até o lado oposto do porão. Então abaixou-se, encarando o filho:

— Bill, você já é praticamente um rapaz, vai completar doze anos no próximo mês. Eu preciso que você tenha coragem, porque vou te contar o que é, ok?

— Ok.

— Precisa agir como um homem. Entende?

O menino gostou de ser chamado de homem:

— Claro, papai — respondeu, o peito estufado.

George engoliu em seco:

— Veja a mensagem que o governo do Estado do Havaí nos enviou — e lhe indicou a tela do celular: “AMEAÇA DE MÍSSIL BALÍSTICO CHEGA AO HAVAÍ. PROCURE ABRIGO IMEDIATO. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO”.

— Não entendo, papai — tornou o menino, franzindo o cenho. — O que isso significa?

— Um ataque… — começou o pai, quase gritando, mas refreou-se. E então, olhando a esposa e a filha de esguelha, sussurrou: — Um ataque nuclear. A Coréia do Norte disparou mísseis contra nós.

O menino arregalou os grandes olhos azuis, fitou o pai, ensaiou uma expressão heróica de adulto e, de lábios trêmulos, perguntou:

— Não é… um trote? Pode ser uma pegadinha.

— Não, Bill. Os canais de TV e o rádio confirmaram a informação.

Essa notícia foi grave demais para aquele adulto recente — e o menino, pois, caiu em prantos.

— Não! Não! Não quero morrer! — finalmente gritou e, ato seguido, correu na direção do colchonete, atirando-se nos braços da mãe.

— Minhas crianças! Minhas crianças! — choramingava ela, afagando-os.

O pai sacudiu a cabeça, arrependido, e logo retomou sua peregrinação pelo porão, o celular em punho, o rosto pálido e iluminado como o de um vampiro à luz do luar. No WhatsApp, os parentes e amigos trocavam mensagens desesperadas, indagando uns aos outros se já estavam todos prontos para o impacto. Michael, pai de George, enviara uma mensagem amorosa, despendido-se do filho e afirmando que havia sido uma honra ter tido uma família tão liberal, tão progressista, tão inteligente, tão unida em prol dos mesmos ideais. Seu irmão, Michael Junior, ainda conseguia ter algum senso de humor em meio ao pânico geral: “Pelo menos não encontraremos mais republicanos lá no céu — se é que existe um céu”.

— Imbecil — murmurou George para si mesmo.

Enquanto continuava lendo essas mensagens, a esposa e os filhos pranteavam a morte iminente. Fitando-os com ternura, George pensou que havia chegado a hora das despedidas: aquele porão não fora construído para resistir a uma desgraça dessa escala. Quando, a passos lentos, começava a se dirigir até eles, veio o estrondo:

— PAM! PAM! PAM! PAM!

Martha e as crianças, em uníssono, gritaram histericamente. George quase descomeu o coração de tanto susto. Alguém batia na porta metálica do porão:

— George! Você tá aí? George!

Acreditando tratar-se de um parente ou de um amigo a buscar abrigo, George galgou rapidamente a escada de dois em dois degraus. E abriu a porta: era Tom, o jardineiro.

— Oi, George. O que você está fazendo trancado aí dentro? Quer que eu volte depois?

Estranhando toda aquela calma, perguntou de rebate:

— Tom, você não está sabendo de nada?! O que veio fazer aqui? E sua família?

O velho sorriu:

— Eu vim pegar o cortador de grama. Hoje é dia, né.

— Mas… e sua família?

— Estão bem, graças a Deus. Obrigado por perguntar. Quer que eu volte depois?

— Tom, a Coréia do Norte está nos atacando! Um míssil nuclear pode nos atingir a qualquer instante. Venha pra dentro! — e tentou puxar o velho pelo braço.

Tom se desvencilhou:

— Calma, George. Não vai acontecer nada. É uma bobagem.

— Mas o governo emitiu o alerta! Não é brincadeira!

— Ah, o governo… — suspirou o outro. — E você ainda acredita no governo? — e deu uma risadinha. — Vocês democratas são engraçados: se o Trump faz alguma coisa boa real, de verdade, vocês não acreditam. Se o governador democrata do Havaí diz que estamos sendo atacados pelo… como chama? King Kong-un?

— Kim Jong-un.

— Mesma coisa — e pigarreou. — Enfim, só porque o governo daqui é democrata vocês dão crédito pra ele. Uma bobagem.

George mal podia acreditar no estado de negação em que se encontrava mergulhado o velho jardineiro: estaria caduco?

— Tom, fique aqui com a gente. Ou então corra pra casa. Esqueça nosso jardim.

O velho voltou a rir:

— Sabe, George. Eu sou casado com uma nativa havaiana. Mas já fui casado antes, lá no Texas. Um dia, descobri que essa minha primeira mulher tinha um caso com um safado que morava a uma milha da minha casa. Peguei meu Colt 1911 e fui atrás do sujeito. Ele vivia nas aforas da cidade, já no meio do mato. Quando eu já estava dando a volta na casa, para surpreendê-lo pelos fundos, ouvi disparos de fuzil. Quase me atirei ao chão de tanto susto.

— Mas o que isso tem a… — começou George, aflito.

— Calma — atalhou-o o velho jardineiro, sorrindo. — Enfim… quando eu já ia me jogar ao chão, vi o sujeitinho treinando tiro ao alvo no meio da mata que tinha atrás da casa dele. O desgraçado tinha um fuzil AR-15! Sabe o que eu fiz?

— Hum.

— Meti o rabo entre as pernas, pedi o divórcio e me mudei para o Havaí: para não passar vergonha. E aí tive a sorte de conhecer a Mary.

— Pelo amor de Deus, Tom! O que você tá tentando me dizer, homem?

— Você viu o que os jornais disseram sobre o Trump no dia 3 de Janeiro? Disseram que, na noite anterior, ele havia respondido às ameaças do King Kong na internet.

— Kim Jong!

— Então! Foi o que eu disse! — e sorriu, concordante. — Enfim, ele respondeu às ameaças do coreano na internet, dizendo que o botão dele, Trump, o botão de disparar as bombas atômicas, é muito maior que o botão do ditadorzinho comunista. E que além disso é um botão que funciona! — e colocou a mão no ombro do interlocutor. — Olha, George, quando eu morava no Texas, eu era um cara bem doido: mas não era idiota! Esses tiranos podem não acreditar na existência das almas, mas acreditam na existência dos corpos e na perpetuação da sua própria dinastia, da sua descendência. Um ataque americano transformaria a Coréia do Norte num deserto. Ficaria pior que Cartago, faltando apenas que alguém lhe despejasse toneladas de sal. É óbvio que o King Kong sabe disso tão bem quanto eu.

Martha surgiu no topo da escada bufando, o pesado cortador de grama entre os braços:

— Pode ir cortar, Tom — disse, entregando-lhe a geringonça.

— Ah, obriga….

Mas, sem terminar de ouvi-lo, Martha apenas o empurrou para fora, fechando com estrondo a porta do porão:

— Você está maluco, George?! — rosnou ela, o dedo indicador em riste. — Quer passar os últimos minutos de nossas vidas conversando com um republicano que votou no Trump? É por culpa dessa gente que estamos sendo atacados.

A família, pois, permaneceu trancada no porão por mais meia hora, ao fim da qual o governo local se pronunciou confessando que havia ocorrido um erro da parte de um funcionário da Agência de Gestão de Emergência do Havaí: não havia nenhuma ameaça real. Quando voltaram à cozinha, viram pela janela que Tom ainda cortava tranquilamente a grama do jardim traseiro, enquanto, em meio ao rugido da máquina, cantarolava uma incompreensível canção country de amor e morte.

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Na Wikipédia: 2018 Hawaii false missile alert.

O cartunista João Spacca comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Já que o João Spacca deve estar ocupado, desenhando um de seus cartuns, e já que ele comentou meu livro comigo apenas mediante um longo email pessoal — com questões e com uma abordagem que, em sua totalidade, não dizem respeito ao público em geral (sem falar nos spoilers) — selecionei apenas uns trechinhos para postar aqui:

“Não pensei que fosse capaz de dizer isto ao fim da leitura, mas “A Sábia Ingenuidade do Dr. Pinto Grande” [Editora Record] é um livro extraordinário.”

[…]

“O conto do velho veterano de guerra nos conduz a um extremo dramático constrangedor e quase insuportável. Até onde vai aquilo? O sadismo do outro velho provocando, o dr. Pinto Grande com seu método blasé de dar corda, o velho… não queria abrir o livro, mas ei-lo, Josif, o sérvio.”

[…]

Reli o caso d’A Menina Branca, paródia de O Gato Preto, com o mesmo prazer – eu havia esquecido o […]. Muito bom, o mais brasileiro de todos (por que escrevi isto?).

[…]

“O último é uma excelente aula sobre os bitcoins. […] Interessantíssimo o personagem, muito engenhoso o desfecho. A lógica do bitcoin, sua especificidade, relativa ao lugar único que ocupa no grande quebra-cabeça virtual, e a negação do papel do Estado em controlá-la – apoiada na pergunta “para que uma moeda precisa de um Estado? – parece irrefutável. Anotei em certo momento que os bitcoins pareciam as mônadas de Leibnitz, pensando que iria surpreender você com a metáfora, mas logo adiante o dr. Pinto Grande foi muito mais longe. Pinto Grande é foda.”

[…]

“No meio desse último conto é que a arquitetura do livro se cristalizou na minha cabeça, e então que a constatação de que estava lendo um livro extraordinário se fez presente com grande naturalidade. Então lembrei dos demais contos.”

[…]

“Dr. João Pinto Grande é um escada, aquele ator não muito expressivo que serve de apoio para outros, personalidades mais fortes ou engraçadas, fazerem o seu show (pronto, acabo de escrever didaticamente para o “grande público”). ”

[…]

“O professor Olavo sempre diz que criou o COF para formar pessoas com quem pudesse conversar. Talvez você escreva com uma finalidade semelhante. Nos seus contos vivem pessoas que, no meio de circunstâncias insólitas ou banais, são capazes de interpretar a experiência presente evocando grandes quadros conceituais que alargam o horizonte e apaziguam nossas angústias. Sem essa capacidade, nosso cotidiano se enche de preocupações de saúde, compras e receitas veganas – já que política em casa virou tabu. Termino o livro lamentando a falta de oportunidade desse tipo de conversações no dia-a-dia, com uma espécie de saudade desses encontros insólitos, como se uma fome diferente tivesse sido despertada para um alimento desconhecido e raro.
Adorei ter lido, Yuri […]”

Daniel Gil comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Resenha de Daniel Gil, poeta, ensaísta e secretário executivo da UFRJ, publicada pela Revista Amálgama:

A CONSCIÊNCIA DE YURI

É desconcertante solicitar ao funcionário da livraria um exemplar de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande (Editora Record). A experiência faceciosa já se inicia desde então, quando o próprio leitor se vê de repente partícipe do humor de Yuri Vieira.

O escritor — que também é cineasta premiado — apresenta nesse volume de contos uma expressiva evolução desde a sua estreia com A Tragicomédia Acadêmica: Contos Imediatos do Terceiro Grau. Suas sentenças concertam mais concisão e sonoridade; o arcabouço complexo de recursos literários, que desde sempre engendrou suas narrativas, agora alcança homogeneidade; seu humor e suas intenções, quando não propositalmente explícitos, submergem de maneira acabada e segura nas entrelinhas.

Conquanto seja uma coleção de contos — e eles subsistam independentemente —, perpassa, em quase todos, o personagem de nome risível que lhe oferece unidade e título: o advogado João Pinto Grande. Sua presença contínua, porém, nem sempre faz dele um protagonista nas urdiduras. O advogado é em certa medida um herói discreto e bonachão, caso venhamos a utilizar o conceito de herói no sentido romântico: aquele que demonstra como um homem poderia ser; no caso específico, um homem que não separa a sua inteligência de um rigoroso idealismo moral. A unidade entre as diferentes estórias, logo, dá-se também pelo coincidente recorte no tempo — condição importantíssima, devido à atualidade das questões e dos elementos envolvidos (do feminismo aos bitcoins).

Uma característica especialmente distintiva de A sábia ingenuidade…, para além do humor cômico, é a presença de personagens que carregam opiniões robustas a respeito de polêmicas nada aconselháveis, o que exige, ao mesmo tempo, uma demonstração de domínio técnico-literário na composição — bem sucedido, é preciso dizer — e um profundo interesse intelectual pelos problemas contemporâneos, incluindo a variedade de posicionamentos. A respeito das supostas opiniões do próprio Yuri, poderíamos assinalar a fala do Dr. Pinto Grande no conto “O pedinte do metrô”, ao divagar sobre Deus: “Por que um artista ou escritor pode se colocar dentro de sua obra, representando-se mediante um personagem-avatar, e Deus não o poderia?”. Algo semelhante já havia sido observado pelo personagem Paulo César, no conto “A teologia da maconha”.

No entanto, Yuri Vieira abala de maneira intermitente as impressões mais cômodas do leitor. No conto “Amarás ao teu vizinho”, por exemplo, o advogado de nome jocoso pensa consigo mesmo, ao se lembrar de uma conversa sobre Herman Hesse: “Ora, escritores de ficção são artistas, não necessariamente bons intelectuais, filósofos ou guias espirituais”. Ainda sobre essa consciente confusão de perspectivas, concebida com zelo em todo o livro, é necessário notar que o próprio contista é personagem no conto de abertura — por consequência, o único deles a ser narrado em primeira pessoa. Os pontos de vista, a despeito, são expostos ali de modo a largar o leitor no campo das incertezas, tanto mais quando de súbito rebentam elementos fantásticos em cena — mecanismo já consolidado no estilo de Yuri.

A palavra consciência pode ser talvez a que melhor se associe à feitura de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, uma vez que seja preciso uma percepção muito clara das próprias faculdades para realizar com arte esse trabalho. Sobretudo no risco, todo gesto mais ingênuo seria fatalmente salientado. Yuri Vieira parece então herdar instrumentos importantes de uma tradição de comicidade da literatura brasileira, seja na descrição de detalhes falsamente dispensáveis — que o aproxima de Nelson Rodrigues —, seja no confronto heteróclito e burlesco de figuras morais — ao estilo machadiano. Quando emprega novidade nesses pertences, ganha lugar entre os mais talentosos (e engraçados) prosadores da atualidade.

Luis Vilar comenta “A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Resenha de Luis Vilar, editor-geral do Grupo CadaMinuto:

DR. JOÃO PINTO GRANDE TEM ALGO A LHE DIZER…

O novo livro de Yuri Vieira é um primor. Com bom humor e coragem para adentrar em temas espinhosos, ainda que estes para muitos pareçam teoria da conspiração, Vieira traz uma coletânea de contos em A Sábia Ingenuidade de Dr. João Pinto Grand (Editora Record) que nos faz rir ao mesmo tempo em que tememos pelo futuro secularista onde vamos sendo jogados. Tudo isso em nome de um “mundo melhor” com tantos “progressismos”…

O conto de abertura, em que somos apresentados ao personagem Nathan, fala da face do mal e do quanto ele nos encanta com um inferno cheio de boas intenções. Bem como o quanto os engenheiros sociais se aproveitam de sentimentos ingênuos despertados por vocábulos soltos como “liberdade”, “opressão”, “justiça” etc.

É que estes podem ser subvertidos em determinados contextos, como já explicava George Orwell ao falar da “novilíngua”. Embasbacado, o outro personagem do diálogo — que leva o nome de Yuri — vai assistindo pasmo à explanação de idéias lógicas, mas inacreditáveis, diante da forma como aprendemos a absorver o secularismo e suas “conquistas”. Será que neste conto não estaria o alterego do autor ao ser despertado para o que antes não via?

As referências da obra também são riquíssimas, passando pela cultura pop e até citando livros como Submissão, de Michel Houellebecq, que fala de uma França já islamizada.

Vieira também trata — com humor — da instrumentalização das minorias, que era algo que já aparecia em sua primeira obra de contos publicada pela Vide Editorial: A Tragicomédia Acadêmica.

Neste segundo livro, assim como no primeiro, não há ponto sem nó. Tudo é devidamente encaixado para mexer com as sensações do leitor, como o susto cômico ao se deparar com Lúcifer tão cara-a-cara num diálogo festivo.

Por sinal, muitos dos diálogos construídos por Yuri Vieira lembram do processo da maiêutica socrática, só que ao invés da busca da verdade, temos a exposição da revelação maquiavélica das “engenharias sociais”, o que não deixa de ser uma VERDADE.

Os contos do autor me lembraram a máxima de Nietzsche de que a arte passa a existir para que a verdade tão nua e crua não nos destrua ou desespere.

Fico a imaginar o esforço do autor para dar humor a assuntos tão sérios e espinhosos de nosso tempo, como o conflito entre o cristianismo e o islamismo, analisando de maneira direta a essência de cada uma dessas crenças. Ele pontua as diferenças de uma forma que vivo tentando fazer, mas jamais consegui. E acreditem: isso é posto em dois parágrafos, salvo engano. Parágrafos cirúrgicos e irrefutáveis.

Por traz de cada conto há História, Geografia, Filosofia e Teologia. Há pontos que podem — posteriormente — ser esmiuçados pelo leitor em outras obras técnicas. Sem querer ou querendo (não sei a intenção do autor), o Dr. João Pinto Grande (com perdão do trocadilho) acaba sendo uma ferramenta de introdução (risos).

Se, no ano passado, Vieira foi o responsável pelo melhor livro de contos que li em 2016, agora em 2017, afirmo sem medo de errar: ele repete a dose. Como é bom dizer isso de brasileiros. Nos deixa a sensação de que a nossa alta cultura vai sendo recuperada por aí. Mais que isto: prova que alta cultura nada tem a ver com esnobismo, intelectualismos ou formas pedantes.

É tudo tão simples quanto entender a forma direta com a qual escreve Ortega y Gasset, por exemplo. Não há firulas no Logos.

Yuri Vieira nos traz uma literatura que não tem aquela face “engajada”, cheia de pretensões e interesses inconfessáveis. Ele simplesmente nos diz que a grama é verde, atendendo à profecia de Chesterton. Mas não deixa de ser profundo. Um conselho: ao terminar cada conto, busque refletir um pouco sobre as idéias principais contidas ali. Pesquise sobre os temas ali abordados e veja o quanto do humor de Vieira é revelador. Você sairá mais rico dessa obra.

Os meus dois contos preferidos do livro foram “O machista feminista” e “A teologia da maconha”. Como li a obra durante a madrugada dessa terça-feira, dia 31 de Outubro, em pleno Dia das Bruxas, ainda aprendi outra coisa com Yuri Vieira: a ter que gargalhar em silêncio para não acordar a minha esposa que dormia tranquilamente ao meu lado. Ao mesmo tempo que ria, também me desesperava um pouco com o oceano de loucuras por onde minha cama navegava.

Eu, o motorista e a camisinha cor-de-rosa

Em 1997, por indicação da minha amiga Monica Fernandes, consegui trabalho na Chroma Filmes, ex-Adrenalina Filmes, uma produtora de cinema paulistana, na qual assumi a posição de assistente de produção. Trabalhei em menos de uma dezena de filmes publicitários porque, mais tarde, em 1998, eu e alguns amigos abrimos nosso próprio estúdio. Mas, dentre todos os filmes em que trabalhei na Chroma, o de que mais me lembro foi um comercial de chiclete. (Não consigo encontrar nenhum dos filmes no YouTube, provavelmente porque a produtora não existe há anos e também porque já há outras produtoras homônimas.) Enfim, o caso é que passamos uns dois dias rodando o comercial no Clube de Regatas Tietê, cujo protagonista era um time de basquete espantoso que mais parecia uma versão local dos Harlem Globetrotters: aqueles caras gigantes, todos negros, não erravam uma bola!

Após gravar as cenas de jogo, as cenas da platéia — na qual eu mesmo tive de participar como figurante, com um pseudo-entusiasmo nascido da minha pungente necessidade de dinheiro — chegou o momento de rodar as cenas de primeiro plano, as quais incluíam a de um jogador que deveria inflar uma enorme bola com a goma do chiclete. (O chiclete, aliás, ao sair do pacote, tinha o formato de uma bola de basquete, incluindo a divisão em gomos. Seu interior, como a do concorrente mais famoso, tinha um líquido viscoso adocicado, o qual, nas cenas de detalhe, foi simulado com xampu, corante e mel, já que no lugar do chiclete, nessa ocasião, foi utilizado um mocape do tamanho de uma bola de futebol, mocape esse criado por um japonês formado em engenharia naval.)

Voltando… a questão é que nenhum dos jogadores selecionados conseguia fazer uma bola convincente com o chiclete! E isso simplesmente porque o chiclete era uma boa porcaria. Partiu-se então para os mais diversos substitutos: três chicletes ao mesmo tempo, chicletes concorrentes, bexigas de borracha, etc. mas nada dava certo. Na época, não havia computação gráfica no Brasil com qualidade suficiente para enganar o público e satisfazer o Odorico Mendes, diretor do comercial. E então alguém teve a grande idéia:

— Por que não usamos uma camisinha?

— Sim, concordou o diretor, pode dar certo.

E então, claro, sobrou para o coitado do assistente de produção, eu, ir comprar uma camisinha que deveria ter a ponta arredondada — sem aquele apêndice que visa conter o esperma — e o principal: deveria ser cor-de-rosa. Fui até a van (ou seria uma Kombi?) e saí com o motorista nessa busca frenética, deixando todo um set de filmagens de braço cruzado a me aguardar com aquela paciência áspera e fatal que só os profissionais de São Paulo conhecem. (E é por isso que o nome Adrenalina era muito mais condizente com a produtora do que o agradável Chroma.) Passamos por umas três farmácias que só possuíam as tradicionais Jontex e Olla “cor da pele” — informação essa que passei ao motorista, que se irritou, porque era um negro de dois metros de altura, com um torso de geladeira — e, finalmente, numa quarta farmácia, após deixar o gaiato, porém irritado, motorista na van, vi-me de repente cercado por prateleiras com as mais diversas marcas de camisinhas. Já fui logo dizendo à atendente:

— Qual dessas é cor-de-rosa?

Ela me encarou de um jeito estranho, suspicaz, como se eu fosse um fetichista de um tipo inédito:

— Não sei. Mas deve estar escrito nos pacotes, não?

E, apressado, comecei a ler rótulo por rótulo, abrindo alguns que tinham a embalagem rosada e me decepcionando com o resultado:

— Você vai pagar por essas.

— Claro que vou. Vai separando aí.

Lá pelas tantas, após um intervalo de tempo que pode ter sido tanto de cinco quanto de quinze minutos — já estava imaginando a bronca do diretor e por isso o tempo se dilatava —, entrou na farmácia o negão de dois metros de altura com torso de geladeira tamanho família:

— E aí, Yuri? Já comprou a camisinha? Eu tenho que cumprir o horário, não posso ficar tanto tempo por conta.

A vendedora, o farmacêutico, os demais fregueses, enfim, todos arregalaram os olhos e nos observaram com um silêncio dos mais constrangedores e inconvenientes, alguns com uma ruga na testa, fruto de alguma cena imaginada a contragosto. Por que aquele rapaz franzino e tímido estava comprando camisinhas acompanhado por um negro enorme?

Olhei irritado para o sujeito:

— Por que você não esperou lá na van? Devia estar com o motor ligado.

— Eu tô com o motor ligado.

Olhei para fora e vi que, de fato, o maluco tinha largado o carro ligado junto ao meio-fio. Mas também notei que essa declaração dele fez com que algumas pessoas olhassem para a sua braguilha… Isso foi o suficiente para me deixar roxo de raiva. E de vergonha, claro. Felizmente, para meu alívio, dez segundos depois encontrei uma marca importada cuja camisinha era cor-de-rosa, de ponta arredondada e que ainda tinha sabor morango.

— Perfeita! — disse o motorista, aumentando o meu constrangimento e a minha irritação.

Paguei por todas as camisinhas cujo pacote abri, pela escolhida e corremos para o Clube de Regatas. Estava com mais pressa de sair dali do que de chegar ao set de filmagens. Uma vez no set, a chefe de produção, ao me ver, fechou a cara e correu na minha direção:

— Porra, meu! Finalmente! O Odorico já tava querendo o meu fígado.

— Ele vai curtir essa aí — respondi, entregando o pacote para o assistente de direção, que viera atrás dela.

Assim que o assistente saiu, ela se virou novamente para mim e, num tom meio aliviado, meio seco, disse:

— Beleza. Cadê as notas?

Arregalei os olhos e comecei a suar frio: eu esquecera as notas fiscais! Limitei-me a sacudir a cabeça negativamente e a mostrar as mãos vazias. Para quê… a mulher soltou os cachorros em mim, gritando histericamente, o que atraiu as atenções de todo o ginásio. Lembro que os epítetos mais elogiosos foram “burro” e QI Zero”.

— Como é que eu vou justificar esse gasto no orçamento agora? Vou descontar do seu cachê!

Concordei e fiquei xingando-a por dentro. Eu nunca esquecera as notas fiscais antes, mas era a primeira vez que trabalhava com ela. Não disse nada. De que adiantaria dizer que o negão de dois metros de altura atrapalhara minha concentração lá na farmácia? Naquela época eu era tremendamente tímido e não tinha o menor jogo de cintura em situações desse gênero. Hoje em dia, eu até me viraria para o cara e diria na frente de todos: “E aí, Zezão? Acha que essa cabe em você? A minha eu já achei: e é muito maior que a sua”. Em suma: vivendo, se fodendo e aprendendo.

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