Blog do Yuri

palavras aos homens e mulheres da Madrugada

A experiência da paternidade e o conceito do Pai Universal

 

Paternidade

Aproveitando que hoje é dia dos pais, segue um trecho do Livro de Urântia no qual é explicitada a importância da experiência da paternidade para a compreensão de Deus enquanto Pai Universal:

« (…) Nos sete mundos das mansões, os mortais ascendentes têm amplas oportunidades de compensar todas e quaisquer privações experienciais sofridas nos seus mundos de origem, seja devido à herança, ao ambiente ou a um término prematuro infeliz da carreira na carne. Isso é verdadeiro em todos os sentidos, salvo para a vida sexual mortal e para os ajustamentos que a acompanham. Milhares de mortais alcançam os mundos das mansões sem se haverem beneficiado particularmente da disciplina derivada das relações sexuais usuais nas suas esferas de nascimento. A experiência nos mundos das mansões pouca oportunidade pode dar para compensar essas privações bastante pessoais. A experiência sexual, em um sentido físico, faz parte do passado para os seres ascendentes; entretanto, na associação estreita com os Filhos e Filhas Materiais, tanto individualmente quanto como membros das suas famílias, esses mortais sexualmente carentes serão capazes de compensar os aspectos sociais, intelectuais, emocionais e espirituais em tudo o que houverem sido deficientes. Assim, a todos aqueles humanos, a quem as circunstâncias ou o juízo errôneo houverem privado dos benefícios de ligações sexuais vantajosas nos mundos evolucionários, aqui, na capital do sistema, são oferecidas oportunidades plenas de adquirir essas experiências mortais essenciais, em associação íntima e amorosa com as supernas criaturas sexuadas Adâmicas de residência permanente nas capitais dos sistemas.

« Nenhum mortal sobrevivente, nenhum ser intermediário, ou serafim, pode ascender ao Paraíso, alcançar o Pai, nem ser incorporado ao Corpo de Finalidade, sem haver passado pela experiência sublime de estabelecer uma relação de paternidade com as crianças em evolução, dos mundos, ou sem ter alguma outra experiência análoga e equivalente. A relação entre a criança e os seus pais é fundamental para o conceito essencial que devemos ter do Pai Universal e suas crianças no universo. Portanto, essa experiência torna-se indispensável à educação experiencial de todos os ascendentes.

« As criaturas intermediárias ascendentes e os serafins evolucionários devem passar por essa experiência de paternidade, em associação com os Filhos e Filhas Materiais da sede-central do sistema. Assim, esses ascendentes não-reprodutores ganham uma experiência de paternidade, ajudando aos Adãos e Evas, em Jerusém, na criação e na educação da sua progênie.

« Todos os mortais sobreviventes que não experimentaram a paternidade, nos mundos evolucionários, devem também adquirir esse aperfeiçoamento necessário enquanto permanecem nos lares dos Filhos Materiais de Jerusém, e como pais colaboradores desses esplêndidos pais e mães. Isso é verdade, exceto no caso em que esses mortais tenham sido capazes de compensar as suas deficiências nos berçários do sistema, localizados no primeiro mundo de cultura transicional de Jerusém.

« Esse berçário probatório de Satânia é mantido por algumas personalidades moronciais no mundo dos finalitores, onde a metade do planeta se dedica a esse trabalho de educar as crianças. Aqui, algumas crianças, filhas dos mortais sobreviventes, são recebidas e recompostas, tais como aquelas que pereceram nos mundos evolucionários antes de adquirirem o status espiritual como indivíduos. A ascensão de qualquer dos seus progenitores naturais garante que a essa criança mortal dos reinos seja outorgada a repersonalização, no planeta dos finalitores do sistema; e que ali lhe seja permitido demonstrar, pelo próprio livre-arbítrio subseqüente, se fará ou não a escolha de seguir o caminho da ascensão mortal dos progenitores. As crianças, aqui, apresentam-se como no mundo do seu nascimento, exceto pela ausência da diferenciação sexual. Não há reprodução à maneira mortal, após a experiência da vida nos mundos habitados.

« Os estudantes dos mundos das mansões que têm uma ou mais crianças no berçário probatório do mundo dos finalitores, e que apresentam deficiências quanto à experiência essencial da paternidade, podem solicitar a permissão de um Melquisedeque para efetivar a sua transferência temporária, dos deveres da ascensão, nos mundos das mansões, para o mundo dos finalitores, onde lhes é dada a oportunidade de funcionar como progenitores solidários dos seus próprios filhos e outras crianças. Esse serviço de incumbência da paternidade pode ser, mais tarde, creditado em Jerusém como equivalente à metade da educação a que esses seres ascendentes devem submeter-se nas famílias dos Filhos e Filhas Materiais.(…)»

Fonte: The Urantia Book.

Yarny e My Writing Spot

No post anterior comentei sobre o quão conveniente seria, para empresas que vendem ebooks e para seus autores associados, o uso de um processador de textos específico para escritores – contendo todas as facilidades já referidas – que, além de tudo, ainda salvasse os textos na nuvem e os exportasse no formato(EPUB, MOBI, PDF, etc.) e no padrão exigidos pelos respectivos ereaders. Estou sempre pesquisando sobre essas coisas – e isso desde 2000, ano em que criei meus primeiros ebooks para o velho Rocket eBook – mas acabei escrevendo o post anterior num impulso, sem ter averiguado mais a fundo se tal processador de texto já não existiria por aí. E não é que encontrei dois tipos?

O Yarny oferece boa parte das funções que considero úteis para a escritura de ficção – abas para perfis de personagens, locações e idéias em geral -, salva na nuvem, mas, claro, para poder ter acesso ao programa completo é preciso pagar uma assinatura mensal ou anual.

Já o My Writing Spot é gratuito, e isso apenas porque não é senão um aplicativo criado por um usuário comum graças ao Google App Engine. Ou seja, ele já salva os textos na nuvem da própria Google! O problema é que, embora a privacidade dos nossos textos esteja garantida, ficamos dependentes da conta do sujeito que o criou.

Enfim, ainda não encontrei o que eu havia imaginado: um processador de textos oferecido pela própria empresa responsável pela venda dos ebooks. Acho que seria interessante porque, já que ela só teria a ganhar ao oferecer tal serviço, o mesmo poderia ser gratuito para o autor. Bom, do mesmo modo que a Google comprou o Writely e o transformou no Google Docs, não seria ruim se ela ou a Amazon repetissem a dose com um desses dois.
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Publicado no Digestivo Cultural.

Amazon! Google! Help me!

¿Quem sou eu para dar ideias à Amazon e à Google? “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada.” Mas… ¿e daí? Darei as ideias assim mesmo.

Em 2009, postei aqui um artigo intitulado Softwares para ficcionistas. Obviamente, tratava de programas específicos para escritores de ficção, mormente de processadores de texto contendo facilidades tais como “tabelas com o perfil dos personagens, abas para ideias gerais e anotações referentes ao andamento da trama, mapas com eventos importantes da narrativa, tabelas com locações e, claro, a subdivisão do trabalho em capítulos e cenas”. Quem nunca escreveu um texto literário com mais de 50 páginas nem imagina o quanto tudo isto pode ser útil. Na época, aderi ao WriteItNow, que comprei baratinho, com o direito de atualizá-lo sempre que novas versões são lançadas. Mas houve um problema: comecei a escrever em vários computadores diferentes, mudei de cidade, depois voltei à cidade anterior, o que, por razões óbvias, me tornou paranoico com tantos becapes e confuso com as cópias do trabalho: “¿Qual é mesmo a mais recente?”. Enfim, senti necessidade de um software que salvasse o trabalho na nuvem, tal como o CeltX (cuja versão gratuita tem funções limitadas e só é apta para confeccionar roteiros de cinema) ou o Adobe Story (idem). Ora, ora… Se a Amazon e a Google entraram para valer no mercado de ebooks, ¿por que não oferecem – gratuitamente – um aplicativo semelhante aos citados que possa salvar o trabalho na nuvem? Ambas já oferecem espaço gratuito (Google Drive e Cloud Drive), a Google inclusive oferece um editor de textos simples. ¿Que tal oferecer também um editor para escritores de ficção? Não fosse esse receio de perder o trabalho (e de me perder no meio das várias versões), usaria apenas o WriteItNow. Mas a Google e a Amazon seriam inteligentes em unir o útil ao agradável. O aplicativo poderia inclusive já exportar o documento (ebook) no formato exigido pelas empresas. ¿O que acham?

Fica a dica.

Atualização de 18 de Julho: encontrei dois sites que oferecem serviço próximo ao proposto.
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Publicado no Digestivo Cultural.

Natalia ‘Saw Lady’ Paruz

No último final de semana, assisti ao filme Another Earth, que, embora não seja um filme extraordinário, exemplifica como um drama razoável – muito bem dirigido e com ótimos atores – pode tornar-se um bom filme de ficção científica de baixo orçamento. Ou o contrário: como um razoável filme de ficção científica de baixo orçamento pode tornar-se um bom drama. O argumento traz como pano de fundo o paroxismo da velha ideia do duplo: em vez de um outro personagem idêntico ao protagonista, surge no céu um duplo do planeta inteiro, uma Terra contendo os mesmos continentes, as mesmas cidades e, para angústia da população terráquea (aliás, qual seria a população terráquea original?), contendo provavelmente o duplo de cada um de seus habitantes. Mas, enfim, não é disso que quero tratar.

O caso é que, ao comentar a respeito no Twitter, recebi uma mensagem de Natalia Paruz, que participou da trilha sonora do filme. Ela, que toca “serra musical”, executa uma composição de Scott Munson homônima ao filme. (Veja a cena e ouça a música aqui.)

Veja e ouça também, abaixo, Natalia Paruz tocando no metrô de Nova Iorque.

A música tema de Star Trek:

“1905”, de Eyal Bat:

Sem dúvida, a serra musical de Natalia resume da melhor maneira possível o clima do filme.
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Publicado no Digestivo Cultural.

A Amazon e a burrocracia brasileira

A Amazon pretende abrir sua filial brasileira no quarto trimestre deste ano e, segundo informa a Reuters Brasil, a empresa pretende, de início, vender apenas produtos digitais, uma vez que nossa infraestrutura de Terceiro Mundo e nosso labirinto tributário vampiresco – necessário para bancar tantos políticos corruptos, além, é claro, do sem fim de servidores públicos parasitas (e, em grande parte, desnecessários) – não permitiriam o enraizamento da empresa caso ela entrasse de cara no varejo. (Se você já foi empresário, deve ter notado como o governo brasileiro atrapalha de todas as formas possíveis e kafkianas o enraizamento da sua plantinha capitalista.) Enfim, a Amazon vem aí, mas de mansinho, pois não está acostumada a funcionar em locais tão inóspitos à livre iniciativa. (Aliás, imagino que você já tenha visto, no site norte-americano da Amazon, os enormes impostos tupiniquins embutidos nos preços dos produtos – isto é, apenas quando vendidos para nós, claro. Nós, brasileiros, precisamos parar de acreditar que mega-impostos, giga-taxas e encargos trabalhistas inspirados em Mussolini fazem parte da natureza. São, isto sim, frutos de malandragem, de safadeza e de boas intenções do tipo que enchem o inferno. Do contrário, como disse alguém outro dia, “por ser pobre, só posso comprar quando viajo aos Estados Unidos”. Comprar no Brasil é coisa de gente rica.)

Leia trecho da matéria na Reuters:

A Amazon.com planeja abrir sua loja digital de livros no Brasil no quarto trimestre de 2012, buscando obter uma fatia no mercado online de rápido crescimento do país que inspirou o nome da empresa.

O grupo de comércio eletrônico norte-americano, cujo nome é uma homenagem ao rio mais extenso da América Latina, quer conquistar um espaço na maior economia da América Latina com seu tablet, o Kindle, e um catálogo de livros digitais (ebooks) em português, disseram representantes de editoras locais e uma fonte da indústria a par dos planos da empresa à Reuters.

A abordagem totalmente digital permitirá que a Amazon minimize os riscos que uma estreia de maiores proporções implicaria num país com problemas notórios de infraestrutura e um sistema tributário complexo e custoso. A empresa ainda terá de enfrentar uma desaceleração do crescimento econômico do Brasil que ameaça arrefecer o consumo.

“O Brasil seria o primeiro país em que a Amazon entra apenas com produtos digitais, e essa decisão foi tomada por motivos logísticos e dificuldades tributárias”, disse a fonte da indústria, que falou sob condição de anonimato.

“Ter uma operação completa de varejo? Esse é o objetivo”, acrescentou.

Representantes de duas editoras locais disseram à Reuters que suas empresas têm feito encontros e videoconferências nos meses recentes para negociar contratos com o responsável por conteúdo do Kindle, Pedro Huerta.

“Eles nos disseram que o plano é iniciar entre outubro e novembro”, disse um dos representantes sob condição de anonimato.

O porta-voz da Amazon Craig Berman recusou comentar o assunto.

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Publicado no Digestivo Cultural.

Milan Kundera fala da grafomania e do choque entre universos literários

 

Milan Kundera

Alguns dias mais tarde, Banaka [o escritor] fez sua aparição no café. Completamente bêbado, sentou-se no tamborete do bar, caiu dele duas vezes, tornou a se sentar, pediu uma aguardente de maçã e deitou a cabeça no balcão. Tamina percebeu que ele chorava.

— O que está acontecendo, senhor Banaka? — perguntou ela.

Banaka ergueu para ela um olhar lacrimoso e apontou com o dedo para o peito:

— Eu não sou, você compreende? Eu não sou! Eu não existo!

Depois foi ao banheiro e do banheiro diretamente para a rua, sem pagar.

Tamina contou o incidente a Hugo, que, à guisa de explicação, mostrou-lhe uma página de jornal em que havia muitas resenhas de livros e, a respeito da produção de Banaka, uma nota composta de quatro linhas sarcásticas.

O episódio de Banaka, que apontava o dedo indicador para o peito, chorando, porque não existia, me lembra um verso de O divã ocidental-oriental de Goethe: “Estamos vivos quando outros homens vivem?” Na pergunta de Goethe se esconde todo o mistério da condição de escritor: o homem, pelo fato de escrever livros, transforma-se em universo (não se fala do universo de Balzac, no universo de Tchekhov, no universo de Kafka?) e o próprio de um universo é justamente ser único. A existência de um outro universo o ameaça na sua própria essência.

Dois sapateiros,desde que tenham suas lojas exatamente na mesma rua, podem viver em perfeita harmonia. Mas se começarem a escrever um livro acerca da vida dos sapateiros, eles vão logo incomodar um ao outro e fazer entre si a pergunta: Um sapateiro está vivo quando vivem outros sapateiros?

Tamina tem a impressão de que um só olhar estranho pode destruir todo o valor de seus diários íntimos, e Goethe está convencido de que um só olhar de um só ser humano que não esteja presente nas linhas da sua obra coloca em questão a própria existência de Goethe. A diferença entre Tamina e Goethe é a diferença entre o homem e o escritor.

Aquele que escreve livros é tudo (um universo único para si mesmo e para todos os outros) ou nada. E porque nunca será dado a ninguém ser tudo, nós todos que escrevemos livros não somos nada. Somos desconhecidos, ciumentos, azedos, e desejamos a morte do outro. Nisso somos todos iguais: Banaka, Bibi, eu e Goethe.

A irresistível proliferação da grafomania entre os homens políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes me demonstra que todo homem, sem exceção, traz em si sua potencialidade de escritor, de modo que toda a espécie humana poderia com todo o direito sair na rua e gritar: “Somos todos escritores!”

Pois cada um de nós sofre com a idéia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto ainda é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras.

Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais.

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Trecho d’ O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera.

Otto Maria Carpeaux e a inexistente Idade das Trevas

No ensaio “História do Humanismo e das Renascenças”, Otto Maria Carpeaux prova, por A mais B, que considerar a Idade Média como uma “Idade das Trevas” não passa de preconceito caipira. (T.S. Eliot chamaria isto de “provincianismo temporal”, coisa de quem se isola em seu próprio tempo e se torna cego para outras épocas.)

Leia trecho do referido ensaio:

O aspecto sentimental das ruínas romanas levou os humanistas a criarem o esquema tripartido da História Universal: Antiguidade, “séculos escuros” da Idade Média, Época Moderna, começando com o renascimento das letras clássicas pelos próprios humanistas. O êxito completo deste conceito historiográfico explica-se, em parte, pela admiração que já os eruditos medievais tinham à civilização romana: já o abade Servantus Lupus de Ferrières (+ 862) se congratula com o renascimento dos estudos latinos em sua época; o cluniacense Bernardus de Morlas, no seu poema didático De contemptu mundi (c. 1140), lamenta a falta de cultura do seu tempo, lembrando a civilização dos antigos romanos; entre muitos outros, Johannes de Garlandia (+ 1258) reconhece a superioridade intelectual dos pagãos da Antiguidade. Daí vai só um passo para o grito de júbilo do humanista: “O saeculum! o litterae! Iuvat vivere etsi quiescere nondum iuvat, Billlibalde, vigent studia, florent ingenia! Heu tu accipe laqueum barbaries, exilium prospice!” (Ulricus de Hutten, em carta a Willibald Pirkheimer, de 25 de outubro de 1518); essa consciência de ter saído enfim de um período de trevas decidiu o êxito do esquema tripartido da História Universal. Ao orgulho dos intelectuais juntaram-se outros motivos, de origem emocional: durante toda a “Idade Média”, a forte reação contra a corrupção moral do clero levou a comparações menos lisonjeiras com a pureza da Igreja primitiva e às esperanças heréticas de uma “renovatio“, de uma “Terceira Igreja”, puramente espiritual: assim aconteceu com os franciscanos espiritualistas e joaquimistas dos séculos XIII e XIV. Enquanto os humanistas, buscando sempre as “fontes”, estiveram interessados em questões religiosas, aprofundaram a comparação com a Igreja primitiva, de Poggio Bracciolini, no seu De miseria humanae conditionis, até Erasmo, com as suas edições do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A Reforma pensou ter vencido a “noite do Papado” (expressão de Lutero), e o esquema tripartido, com o seu duplo fundamento literário e religioso, sobreviveu ao humanismo e zelo reformador, gerando ainda no século XVIII a expressão “Dark Ages” (William Robertson), e dominando até hoje os manuais e a linguagem. Até no abismo absoluto que Oswald Spengler cavou entre a Antiguidade e a civilização moderna, reconhecem-se os vestígios da velha retórica.

A historiografia atual já não admite esse conceito; não existe cisão absoluta entre a Antiguidade e os séculos seguintes, e sim uma evolução contínua. Os historiadores dos séculos passados fixaram o “Fim da Antiguidade” em datas diferentes: em 375, pretenso começo das grandes migrações dos bárbaros, que, no entanto, haviam começado já muito antes; ou então em 476, ano do pretenso fim do Império Romano, que, no entanto, continuava no seu novo centro, Bizâncio. A análise imparcial dos fatos revela, ao contrário, uma solidificação das instituições e resíduos culturais da Antiguidade, no século VI. Com efeito, um cataclismo, uma catástrofe, nunca pode servir de data para o começo de uma nova era. A época pós-antiga do mundo cristão-ocidental começa com uma data de valor positivo: com a elaboração, no século VI, dos três grandes Códigos, nos quais a herança se cristalizou.

O século VI é a época das grandes codificações. Até mesmo o judaísmo termina então o imenso trabalho da codificação das suas leis pós-mosaicas tradicionais: o Talmude. A igreja ocidental, possuindo já um texto latino autêntico da Bíblia, a Vulgata de São Jerônimo, começa a organizar um corpo de escritos autentificados dos chamados Padres da Igreja: em 496 (a data não é certa), o Papa Gelásio I promulga a Epistola decretalis de recipiendis libris, na qual autentifica os opuscula de Cipriano, Gregório Nazianzeno, Basílio, Hilário de Poitiers, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e Próspero Aquitanense, constituindo assim o corpo patrístico que significa o aproveitamento da filosofia e da literatura greco-romanas a serviço da teologia cristã. Já por volta de 400, sob a influência de Ambrósio, conceitos cristãos tinham penetrado no direito romano (Collatio legum mosaicarum et romanarum); agora, o imperador Justiniano termina esse processo com a grande codificação que é principalmente obra do seu conselheiro jurídico Triboniano: o Corpus Juris é de 529 e a segunda edição, que inclui as Instituiones e os Digesta seu Pandectae, de 534; o conjunto é a criação literária mais poderosa do espírito romano – é o fundamento institucional do humanismo europeu.

Essas codificações marcam uma data e, ao mesmo tempo, uma delimitação. Religião judaico-cristã, ciência grega, direito romano: eis a herança da Antiguidade, lançando os fundamentos da civilização ocidental. As regiões e nações que não receberam aquela herança ficaram excluídas da comunidade ocidental, entrando nela somente século depois e em circunstâncias bem diferentes. E todas as outras influências alheias, que o Ocidente recebeu mais tarde, já não se incorporaram bem na nossa civilização; tornaram-se influências “exóticas”. Nem os elementos de pintura chinesa que, trazidos pelos viajantes do século XIII, influíram em Giotto; nem as riquezas ornamentais da Índia que a arquitetura da época dos descobrimentos imitou; nem a abundância fantástica das Mil e uma Noites arábicas nem a pacífica sabedoria chinesa de que o Rococó gostava; nem o budismo que os pessimistas do século XIX apregoaram – nada disso entrou realmente em nossa civilização; continuou sempre “exotismo”. A sorte dos documentos literários do Ocidente entre nós confirma a distinção entre o “exotismo” greco-romano, que faz parte da nossa cultura, e o “exotismo” oriental, que ficou fora dela. Há certas obras da Antiguidade clássica que ninguém conseguiu traduzir bem para as línguas modernas, como as de Píndaro; contudo Píndaro é uma das maiores e mais persistentes influências nas nossas literaturas. Das literaturas orientais recebemos e conservamos definitivamente apenas algumas poucas obras, traduzidas (se é lícita a expressão) de maneira antes inexata, razão por que se tornaram obras nossas. Hafiz é, para nós, um nome; as traduções exatas apenas servem de ajuda de leitura ao especialista; mas o Westoestlicher Diwan, de Goethe, só ligeiramente inspirado no poeta persa, é uma das grande obras líricas da literatura ocidental. Omar Khajjam é, para nós, menos do que um nome; as traduções literais só constituem a delícia dos bibliófilos; mas a tradução libérrima de Edward Fitzgerald, quase obra independente, é obra “clássica” da língua inglesa. E que mais? As grande coleções orientais de fábulas e contos, das quais as literaturas medieval e renascentista se aproveitaram, forneceram apenas matéria-prima novelística. As traduções de Li Tai Po que d’Hervey-Saint-Denys e Hans Bethge popularizaram, na França e na Alemanha, são belas poesias neo-românticas, nas quais os sinólogos são incapazes de reconhecer os originais. O que não provém daquela herança antiga, continua inassimilável; e com isso o conceito “Literatura do Ocidente” está justificado.

(…)

Renascença como marco decisivo da civilização ocidental: este conceito enquadra-se bem no esquema tripartido da História Universal, na qual deveria haver duas cesuras, a queda do Império Romano e a renascença de Atenas e Roma pelo esforço dos humanistas. Mas, que é a Renascença? O uso da expressão pelos historiadores foi inaugurado por Michelet e Burckhardt; o conceito, porém, é mais antigo. Os historiadores das artes plásticas no século XVIII tinham em consideração especial aqueles poucos artistas modernos – Leonardo, Miguel Ângelo, Rafael, Correggio, Ticiano – que pareciam dignos de participar das glórias da Antiguidade clássica. Os românticos gostavam de acrescentar o nome de Dürer, e até de alguns artistas posteriores, como Rubens, Van Dyck, e Claude Lorrain. São estes, mais ou menos, os nomes que definem o gosto artístico de Goethe. Segundo a opinião dos classicistas ortodoxos, a humanidade moderna é, em geral, incapaz de atingir o esplendor da arte antiga; contudo, a imitação assídua das obras de arte greco-romanas, durante o século XVI, teria produzido aqueles poucos artistas sobremaneira geniais, dignos de ser venerados no Panteão da arte clássica. Ao mesmo tempo, a historiografia literária dos românticos fez renascer as “literatures du Midi de l’Europe” (Sismondi): Ariosto e Tasso, Camões e Cervantes. Fortaleceu-se a opinião segundo a qual o século XVI teria sido época de uma prosperidade excepcional da civilização humana, já liberta das cadeias medievais pelo heroísmo geográfico de Colombo, pelo heroísmo religioso de Lutero e pelo heroísmo científico dos Copérnicos e Galileus; e tudo isto se devia ao estudo da Antiguidade pelos humanistas! No famoso livro de Jacob Burckhardt, porém a ênfase já é dada ao século XV. Com efeito, o trabalho principal dos humanistas pertencem a este século; e os italianizantes ingleses da época, os pré-rafaelistas, já tinham descoberto o esplendor maior das artes plásticas “antes de Rafael”: Brunelleschi, Ghiberti, Donatello, Masaccio, Fra Filippo Lippi, Bellini, Mantegna, Botticelli e Perugino. O “Cinquecento” foi substituído, na admiração geral, pelo “Quattrocento”. Mas o recuo do conceito historiográfico não parou aqui. Já na exposição de Burckhardt aparece, como “primeiro homem moderno”, Francesco Petrarca, que nasceu em 1304: e começaram a celebrar, como pai da arte moderna, o grande Giotto, que nasceu em 1267, dois anos depois de Dante, considerado até então como o maior espírito da Idade Média, ser nomeado inaugurador da Renascença. O único obstáculo foi a questão religiosa: os homens da Renascença passaram por libertadores, enquanto que Dante foi o poeta máximo do cristianismo medieval, o poeta do tomismo; e a aversão à escolástica era muito forte. Mas já se havia chamado a atenção para as energias religiosas no movimento renascentista, mesmo em Erasmo; Thode explicou os elementos de espírito novo em Dante e Giotto pela influência da reforma religiosa de São Francisco; e Burdach construiu uma nova linha de evolução: “Humanismo – Renascença – Reforma”, com o apogeu do humanismo no século XIV, em Petrarca e Cola di Rienzo, e com as raízes do movimento inteiro na religiosidade franciscana. Quase ao mesmo tempo, Duhem fez a descoberta surpreendente de que os conceitos da astronomia e da física modernas já se encontravam em nominalistas como Johannes Buridanus, Nicolaus Oresmius e outros escolásticos menos ortodoxos do século XIV. Desde então, o conceito “renascença medieval” já não parecia paradoxo. Afinal, Aristóteles é um dos espíritos mais poderosos da Antiguidade grega – e a assimilação da sua filosofia, no século XIII, por São Tomás e a sua escola, não teria sido uma renascença? A palavra já aparece com o artigo indefinido e no plural. Até uma época bem anterior revela ao estudioso conhecimentos tão amplos da Antiguidade clássica, que se fala de uma “renascença do século XII”. A “Idade Média”, considerada antigamente como época estática de ortodoxia petrificada, perdeu esse aspecto: apresenta-se com a nova característica de época de intensas lutas espirituais, com renovações periódicas, das quais a primeira foi a renovação dos estudos clássicos na corte de Carlos Magno: a “renascença carolíngia” do século IX. É possível continuar essa série de renascenças, para trás e para frente. A renovação do espírito romano no século VI, pela atividade legislativa do Imperador Justiniano, pela regra dos monges de São Bento, pelo governo autenticamente romano do Papa Gregório, o Grande, é uma renascença. Até na Roma do imperador Augusto, a revivificação da poesia grega por Horácio, Virgílio, e pelos poetas elegíacos, é uma renascença. São renascenças, posteriormente, o classicismo francês do “siècle de Louis le Grand”, o classicismo alemão de Weimar, e até a ressurreição da “Antiguidade dionisíaca”, em Nietzsche. Agora, já não é possível confundir atuação do espírito greco-romano no Ocidente com a conservação estática da herança antiga no islamismo: a história espiritual do Ocidente, segundo Mandonnet, é uma seqüência de renascenças.

Essas renascenças consecutivas constituem um fenômeno inquietante: tentativas sempre repetidas de apoderar-se da substância da civilização antiga; sempre repetidas, porque talvez sempre malogradas. Afirma-se a influência imensa das letras greco-romanas nas literaturas medievais e modernas. Parece, porém, que todas as épocas souberam escolher na Antiguidade apenas o que lhes era afim: cada época logrou somente criar uma imagem da Antiguidade segundo a sua própria imagem, de modo que já a época seguinte ficava na obrigação de abandonar o erro e incidir em novo erro. “Erros férteis”, no sentido do pragmatismo. No fundo, a Antiguidade não influiu realmente nas literaturas modernas; só agiu como medida, como critério, e fato de, durante treze séculos, o critério da nossa civilização não ser imanente, mas encontrar-se fora, numa outra civilização, alheia e já passada, é a marca mais característica da cultura ocidental.

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Publicado no Digestivo Cultural.

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