palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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William Somerset Maugham e o casal incompatível de O Fio da Navalha

William Somerset Maugham

– É aqui que vives? – perguntou Isabel. Ele riu baixinho ao ver a expressão do seu rosto.

– Sim. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem quarto de banho. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh, não; está muito bom. Não desejo mais do que isto.

– Mas que tipo de gente mora aqui?

– Não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odéon, aposentada; no outro quarto com casa de banho, a amante de um sujeito que a vem visitar de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito sossegado e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e achava graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele, enorme, ali sobre a mesa? – perguntou ela.

– Aquele? É o meu dicionário grego.

– Quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Estás a estudar grego?

– Estou. Por quê? Porque me deu vontade. – Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Não achas que devias contar-me o que andaste a fazer todo este tempo que estiveste em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo quanto há de importante na literatura francesa, e posso ler o latim, prosa, pelo menos, com a mesma facilidade com que leio o francês. Claro que o grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Antes de chegares, ia três noites por semana a sua casa.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele, sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Não podes imaginar como é emocionante ler a Odisséia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado para o outro do quartinho.

– Há um ou dois meses, estive a ler Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!… É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei!

– Quando é que pretendes voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Disseste que, se ao cabo de dois anos não alcançasses o que buscavas, darias a experiência por mal sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– Que esperas encontrar?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou a Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, poderia pensar que ele estava a troçar. – Quero ter a certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia desta forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos que a Humanidade faz essas perguntas – replicou ela, sorrindo. – Se tivessem resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry riu-se.

– Não rias como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que não podem deixar de perguntar, e continuarão a perguntar. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroeck, por exemplo.

– Quem é?

– Oh, apenas um tipo que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quisera dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm de ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, vês, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. De contrário, teria de fazer como os outros e procurar ganhar dinheiro.

– Mas não dás valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu sorrindo.

– Quanto tempo achas que isso levará?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretendes fazer com toda essa sabedoria?

– Se algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Estás tão deslocado, Larry. És americano. O teu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas estás a perder tanta coisa! Como é que consegues ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos a viver a mais maravilhosa aventura que o Mundo jamais conheceu? A Europa está pronta. Somos a maior, a mais poderosa nação do Mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É teu dever participar do progresso da tua pátria. Já te esqueceste, não sabes como é empolgante a vida na América, hoje em dia. Tens a certeza de que não estás a agir assim por não teres coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo o americano? Oh, sei que de certo modo trabalhas, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às tuas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América, se todos se esquivassem como tu?

– És muito severa, querida – replicou sorrindo. – A resposta a isso é que nem todos sentem o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; esqueces-te de que tenho tanta sede de saber como… Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, possa dar à Humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se falhar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue vencer.

– E quanto a mim? Não tenho valor algum para ti?

– Muitíssimo. Quero que te cases comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– Como? Minha mãe não está em condições de me dar um dólar. Além do mais, mesmo que pudesse, não o faria. Acharia um erro ajudar-te a viver na ociosidade.

– Não quero nada de tua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente, aqui em Paris. Poderíamos ter uma casa pequena e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com metade.

– Mas como! – Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua-de-mel e à Grécia no Outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não te lembras de que falávamos em viajar juntos pelo Mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não desta forma. Não quero ir em segunda classe, nos navios, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem casa de banho, nem comer em restaurantes baratos.

– Em Outubro passado, viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imenso. Poderíamos percorrer o Mundo inteiro, com três mil dólares por ano.

– Mas quero ter filhos, Larry.

– Está bem. Irão conosco.

– És tão tolo! – disse ela, rindo. – Sabes quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil e duzentos e cinqüenta dólares. E quanto pensas que ganha uma ama? – Isabel animava-se, à medida que as idéias lhe ocorriam. – És muito pouco prático. Não sabes o que me pedes. Sou nova, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar o golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. És capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem vestida como as outras do seu meio? Compreendes o que significa, Larry, ter de comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um que seja novo? Não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus quero o meu carro particular. E que pensas que iria fazer o dia inteiro enquanto estivesses a ler na biblioteca? Andar pelas ruas, namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo, a vigiar os meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos…

– Oh, Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh, sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam, em consideração por ele, mas não poderíamos aceitar porque não teria vestido, nem estaríamos em posição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente mal vestida e suja; nada teria a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – De súbito, percebeu a expressão dos seus olhos, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Achas que sou tola, não é verdade? Achas que sou fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que digas o que estás a dizer. – Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; fitaram-se frente a frente.

– Larry, se não possuísses um dólar, mas tivesses um emprego que te rendesse três mil dólares por ano, não hesitaria em me casar contigo. Cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até venceres. Mas isso que queres significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Não passaria de uma escrava até ao dia da minha morte. E para quê? Para que pudesses passar anos a procurar respostas a perguntas que tu próprio consideras insolúveis. Estás em erro. Um homem tem de trabalhar. E para isso que está no Mundo. É assim que contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Achas que, pelo fato de convencer os meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no Mundo. É uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Pintaste um quadro muito negro da vida em Paris com um rendimento módico. Sabes, não é bem assim. Uma mulher pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessantes do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliá. Tens uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharias divertido vê-los trocar idéias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não sejas tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Sabes que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensas que eles perceberiam que consideravas aquilo como uma espécie de aventura? Não se sentiriam à vontade, nem tu tampouco; e não tirarias nenhum proveito, a não ser o de poderes depois contar a Emily de Montadour e a Gracie de Château-Gaillard como acharas divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos, no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez tenhas razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Em que ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a tua. Minha mãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que quisesse, não a poderia deixar.

– Isto significa que, a não ser que esteja disposto a voltar para Chicago, não te casarás comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava de arriscar.

– Sim, Larry, significa isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se à janela e ficou a olhar para fora. Guardou silêncio por um espaço de tempo que pareceu interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera em frente dele, e olhou para o espelho, mas com olhos que nada viam. O coração batia-lhe loucamente e estava morta de apreensão. Finalmente, Larry voltou-se:

– Gostaria de poder levar-te a compreender como a vida que te ofereço é mais cheia do que qualquer outra que possas ter imaginado. Gostaria que pudesses ver como a vida do espírito é mais emocionante e rica em experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste Mundo. Há poucos dias, estive a ler Descartes. Que desembaraço, que graça, que dez. Céus!

Isabel interrompeu-o, em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vês que me pedes uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei de repetir que sou apenas uma rapariga medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que me quero divertir enquanto posso? Oh, Larry, gosto tanto, tanto, de ti! Isso é uma fantasia; não te conduzirá a parte alguma. No teu próprio interesse, imploro-te que desistas. Sê homem, Larry, e cumpre o teu dever de homem. Estás a perder anos preciosos, de que outros estão a tirar o máximo proveito. Larry, se me tens amor, não me trocarás por um sonho. Já te divertiste bastante. Volta conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar a minha alma.

– Oh, Larry, por que falas dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele com um estranho brilho nos olhos.

– Como é que podes brincar? Não vês que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que fizermos agora irá afetar toda a nossa vida.

– Sei isso. Crê-me, estou a falar sério.

Ela suspirou.

– Se não queres ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não creio que não seja razoável. Acho que só disseste disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. – Se não se sentisse tão infeliz, teria rido. – Meu pobre Larry, estás doido varrido.

Lentamente, tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina, e Isabel apreciara-o muito.

– Se gostasses de mim, não me farias sofrer tanto.

– Gosto de ti. Infelizmente, às vezes, nós não podemos fazer o que nos bem parece sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não queres guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Podes usá-lo no dedo. Isto não altera a nossa amizade, não é assim?

– Sempre hei-de gostar de ti, Larry.

– Guarda-o, então, que me darás prazer.

Ela hesitou. depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande de mais.

– Podes mandá-lo apertar. Vamos ao bar do Ritz, tomar um drink.

– Está bem. – Isabel admirou-se de tudo se ter passado tão simplesmente. Não chorara. Nada parecia ter mudado; só já não se casaria com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Sentia-se como que lesada, mas, ao mesmo tempo, experimentou uma ligeira satisfação por se terem comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry, na ocasião. Mas isso era sempre difícil de saber. O rosto suave, os olhos escuros, eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar, tirara o chapéu e pusera-o sobre a cama; agora, em frente do espelho, colocava-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: querias desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para ti. – Como Larry não respondesse, ela voltou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry fechou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este envolveu-os num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que idéia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele tipo tenha muita fé na minha virgindade disse ela.

Foram de táxi ao Ritz e ali tomaram uma bebida. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se vêem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com ampla reserva de conversa fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se estabelecesse um silêncio que seria depois difícil de romper. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não lhe deixar suspeitas de que estava magoada e infeliz. Dali a pouco, sugeriu que Larry a levasse até casa. Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não te esqueças de que vens almoçar conosco amanhã. Não há perigo! – Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.

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O Fio da Navalha, de William Somerset Maugham.

(Tradução de Lígia Junqueira Smith.)

Esse romance foi adaptado ao cinema em 1946 (com Tyrone Power) e em 1984 (com Bill Murray). São muito bons, mas, em ambos os casos, vem à tona aquele velho truísmo: o livro é muito melhor que o filme. (Aliás, vale lembrar que, enquanto o personagem Larry se recusava a retornar a Chicago, na mesma cidade, no 533 West Diversey Parkway, os maiores mistérios do mundo eram revelados…)

Last Day Dream (2009), de Chris Milk

Dizem que a vida inteira passa diante de nossos olhos à hora da morte…

Alfred Hitchcock: “Trocadilhos são a mais alta forma de literatura”

Desculpe, sem legendas, mas — como Hitchcock fala bem pausadamente — você irá entender.

Amar um escritor (ou músico, ator… hum? empreendedor?!)

Jack Kerouac

Jack Kerouac: Bonito, charmoso, mas…

Por Steven Pressfield.

¿Você está apaixonada por um escritor? ¿Tem certeza? ¿Está segura de que não quer tentar alguém mais fácil de lidar, tal como um peão de rodeio, um soldado do BOPE ou um dublê especialista em cenas com motos?

Dito isto, eis algumas orientações, nascidas da dolorosa experiência, para aquelas que tenham dado seu coração aos servidores da Musa literária. (As seguintes observações se aplicam igualmente, é claro, a atores, artistas, músicos, comediantes, empreendedores e a todos os demais membros desta espécie particularmente tumultuosa.) Caras amantes, por favor, mantenham em mente o que segue:

1) Escritores não são normais.

E.L. Doctorow considera a arte literária uma “forma socialmente aceitável de esquizofrenia”. O que ele quer dizer é que artistas e empreendedores são um pouco malucos. Eles ouvem a música que o restante de nós não consegue ouvir. E às vezes a busca dessa música os leva para longe de seu mais amável e gentil Eu. Nós devemos exercitar a paciência quando amamos artistas. Eles são conduzidos por forças que não entendem e não podem controlar.

2) Escritores vivem em suas cabeças.

O que é divertido para pessoas normais — paraquedismo, digamos; um final de semana em Aruba — não significa nada para seu escritor. A diversão dele está em sua própria cabeça. Um épico está sendo projetado dentro dela e ela está tomando ditado tão rápida e furiosamente quanto lhe é possível. “Quando trabalho, relaxo”, dizia Picasso. “Não fazer nada… me deixa cansado.”

O princípio unificador sob essa doideira artística é que escritores/artistas/empreendedores estão lutando contra a Resistência [conceito apresentado por Pressfield em seu livro A Guerra da Arte] — e com a inspiração. Eles caminham na corda-bamba sobre um desfiladeiro ardente de 300 metros de profundidade, simultaneamente duelando com o diabo e cortejando a divina oponente deste — a inspiração, a mágica, o “fluxo”.

3) Escritores não são governados pela razão.

Nós imaginamos que artistas e empreendedores são inteligentes, até mesmo brilhantes. Mas na verdade eles estão atuando por instinto e com os nervos à flor da pele. Não se deixe enganar por seu domínio da câmera Panavision 3D ou sua habilidade de dar seqüência a uma dúzia de sentenças completas. Eles estão patinando sobre gelo quebradiço. “Cada vez que escrevo um livro, todas as vezes que encaro aquele caderno de anotações”, disse Maya Angelou, “eu penso, ‘Nossa, agora eles vão me desmascarar’.”

¿Como lidar com um artista? Como um treinador trata um cavalo de corrida. Lembre-se, você é a única com a tabela de alimentação e o cronômetro. Sua montaria ficará com o coração derretido por você se ele souber que você se importa e que você o deixará, e até mesmo o ajudará a, disputar sua corrida.

4) Escritores são primitivos.

¿Você já leu Crônicas, livro de memórias de Bob Dylan? O relato sobre como Mister D junta as peças para formar um álbum soa como a saga de um xamã do Neolítico planejando para sua tribo a caça outonal a um mastodonte.  Deuses e monstros aparecem; jornadas épicas são realizadas; incensos e encantamentos são oferecidos. Comparado ao método de trabalho de Dylan, Hunter Thompson parece um modelo de ordem civilizada.

Artistas e empreendedores requerem a supervisão de adultos. Não importa o quão eloquentemente eles apresentem seu caso, por baixo eles estão numa intensa batalha, como você, para encontrar e manter seu equilíbrio emocional. Eles são inseguros, grandiosos, ciumentos, fascinantes, volúveis, românticos.

¿Você é um artista? Dê uma folga à sua parceira. Amá-lo não é um dia de sol na praia. Você é um mala, querido.

Tente visitar o planeta Terra tão frequentemente quanto possível e, quando você vier, vá acampar por uns tempos. Esteja realmente presente. Ouça de verdade. Lembre-se que sua namorada / namorado/ esposa tem de lidar com o fato de que você está servindo a Musa. Sua companheira se aflige ao sentir que é a número 2 em seu coração. Tranqüilize-a. Sexo, flores, espumantes levam a um bom caminho.

Lembre-se que sua parceira pode ser tão insegura, grandiosa, ciumenta, fascinante, volúvel e romântica quanto você.

5) Uma última palavra aos amantes de artistas.

Antes de tudo, ¿por que alguns de nós sentem-se atraídos por artistas? Buscamos nos aproximar da mágica? ¿Estamos intoxicados com o poder de nosso cônjuge para produzir maravilhas com fumaça azulada, cabelos longos e uma Fender Stratocaster?

Dois avisos: se você pretende se aproximar daquela mágica por causa do ímpeto e do burburinho, esteja pronta para pagar o preço.

Mas aqui vai o Principal. Se você é conduzida ao poder do seu artista por sentir que há um dom similar dentro de si mesma, mas você não sabe o que fazer (ou falta a coragem) para acessá-lo, pare e pense bem. Esse frio na barriga pode não ser amor. Pode ser a Resistência. Sua própria Resistência retendo, com mãos frias, seu único, autêntico e ainda-latente dom.

Neste caso, o amor pode ser, para ambos, um choque frontal de trens. Em vez disso, seja amiga do seu artista — e faça seu próprio trabalho.

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Fonte: Loving A Writer By STEVEN PRESSFIELD.
Traduzido por Yuri Vieira.

Apenas um comentário: achei bastante singular o fato de Steven Pressfield incluir na categoria de escritores/artistas a figura do entrepreneur (empreendedor, empresário). Num país como o Brasil onde 100 milhões de habitantes, por intermédio do Estado, vivem às custas dos outros cerca de 84 milhões, ser um empreendedor é como ser Vincent van Gogh. É possível até imaginar as angústias, o desespero e talvez mesmo a tragédia de tentar ser um empresário, de tentar começar de baixo e vencer pelo próprio esforço e mérito. (Bom, eu tentei, mas não o suficiente para arrancar a orelha.) Tantos impostos — para bancar essa gente toda –, tantos encargos e leis trabalhistas esdrúxulos, tudo em nome da idéia de “distribuição de renda”, que não faz senão criar uma nova elite: a elite dos que se penduram nas tetas do Estado sem nada produzir, sem nada criar, sem nada arriscar. Como se a vida não fosse, como diria Riobaldo (Grande Sertão: Veredas) como se a vida não fosse um “descuido prosseguido”. E o pior é que nem eu mesmo, por mais que tente, consigo escapar disso: quase todo trabalho que me chamam para fazer em vídeo — enquanto roteirista e diretor —  é ou para o governo ou bancado com alguma “lei de incentivo”. (É assim fora do circuito Rio-São Paulo, o qual, em época de eleições, também “lava a sua égua.”) E o pior: sempre que vou à bancarrota sou obrigado a “me virar nos trinta”. No Brasil, se você não é burocrata, se não é funcionário do Estado, no curto e médio prazos está perdido. Porque no longo prazo a pirâmide irá ceder: não é possível sugar tanto a tantos por tanto tempo.  Os empreendedores brasileiros — e aqui estão incluídos até mesmo os camelôs — dão o sangue para pintar girassóis, mas os demais querem apenas saber o quanto irão embolsar do preço do quadro…

Marc Chagall fala sobre o amor e a arte

Marc Chagall (1887-1985)

« Tudo pode mudar em nosso mundo desmoralizado exceto o coração, o amor do homem e seu empenho em conhecer o divino. A pintura, como toda a poesia, tem uma parte no divino; as pessoas sentem isso hoje, do mesmo modo que costumavam sentir outrora. Que pobreza cercou minha infância, que provações experimentou meu pai, com seus nove filhos! E, no entanto, ele estava sempre cheio de amor e, à sua maneira, era um poeta. Foi através dele que pressenti, pela primeira vez, a existência da poesia neste mundo. Depois senti-a durante as noites quando contemplava o céu escuro. Aprendi então que também existia um outro mundo. Isso fez brotar lágrimas em meus olhos, tão profunda foi a comoção que se apossou de mim.»

Marc Chagall (1887-1985)

Algumas pinturas de Chagall (clique sobre as imagens para ampliá-las):

Chagall - A Crucificação Branca (1938) Chagall - Passeio (1917) Chagall - Aniversário (1915) Chagall - Mensagem bíblica (1960-1966) Chagall - Matrimônio chagall - Auto-retrato com paleta (1917)

Veja mais trabalhos de Marc Chagall, aqui.

John Barth: Fazer amor e contar histórias

John Barth

«Fazer amor e contar histórias, ambos exigem mais do que boa técnica — mas é só da técnica que podemos falar! (…) escrever e ler ou contar e ouvir eram literalmente maneiras de fazer amor. (…) o próprio relacionamento entre o contador e o ouvinte era de natureza erótica. O papel de quem contava, ele achava, sem levar em consideração o seu sexo, era essencialmente masculino e o do ouvinte ou leitor, feminino, e a história era o veículo de seu relacionamento. (…) A narrativa, para resumir (…), era uma relação de amor, não uma violação: seu sucesso dependia do consentimento e da cooperação do leitor, que ela poderia reter ou a qualquer momento retirar; também da sua própria combinação de experiência e talento para o trabalho, e a habilidade do autor em suscitar, manter e satisfazer o seu interesse — uma habilidade da qual dependia sua vida figurativa, tão certamente como a literal, de Scheherazade.»

John Barth, em Quimera

Giraut de Bornelh: O amor, os olhos e o coração

Guiraut de Borneil

“Assim, pelos olhos, o amor atinge o coração:
Pois os olhos são os espiões do coração.
E vão investigando
O que agradaria a este possuir.
E quando entram em pleno acordo
E, firmes, os três em um só se harmonizam,
Nesse instante nasce o amor perfeito, nasce
Daquilo que os olhos tornaram bem vindo ao coração.
O amor não pode nascer nem ter início senão
Por esse movimento originado do pendor natural.
Pela graça e o comando
Dos três, e do prazer deles,
Nasce o amor, cuja clara esperança
Segue dando conforto aos seus amigos.
Pois, como sabem todos os amantes
Verdadeiros, o amor é bondade perfeita,
Oriunda — ninguém duvida — do coração e dos olhos.
Os olhos o fazem florescer; o coração o amadurece.”

— Amor, fruto da semente pelos três plantada.
Giraut de Bornelh (Circa 1138-1200?)

Extraído do livro: O Poder do Mito, de Joseph Campbell.

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