palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Rodrigo Gurgel: “Dr. João Pinto Grande — um herói para o nosso tempo”

Resenha crítica de Rodrigo Gurgel, crítico da Folha de S. Paulo  e do Jornal Rascunho:

O mais recente livro de Yuri Vieira, A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, esconde, sob o título atrevido, ao menos dois contos que merecem leitura cuidadosa.

“Amarás ao teu vizinho” é uma aventura da qual participa o personagem que dá nome à coletânea. O substantivo aventura, contudo, não expressa com acerto a índole e o tom da narrativa, composta, em grande parte, de longos diálogos, pois os riscos e peripécias enfrentados pelo protagonista extrapolam o campo das façanhas heroicas a que o senso comum está acostumado, avançando para camadas menos superficiais do comportamento humano.

No primeiro diálogo, o protagonista encontra-se, no portão de sua casa, com Francisco, morador do “único casebre miserável da rua”, sempre disposto, quando bêbado, a conversar com o Dr. João. O diálogo é sugestivo, bem construído, com leves tiradas humorísticas — a analogia entre o desenho do Pica-Pau e a ideia budista da vida como sofrimento, por exemplo, quebra o tom filosófico e paternalista que Pinto Grande concede às suas falas, tão longas que obrigam o paciente Francisco a isolar-se em sua curiosa busca do samádi. No final da narrativa, aliás, o próprio Dr. João, recordando esse diálogo, reconhecerá o erro de trocar “caridade por papo-cabeça sobre o amor”, trecho que demonstra o controle de Yuri Vieira sobre suas histórias: o que, no início, parecia hesitação ou descuido com os rumos da trama, revela-se introdução adequada ao tema que será aprofundado no segundo diálogo.

Na verdade, o conto esconde detalhado planejamento: desde o primeiro parágrafo, duas linhas narrativas se anunciam, ambas marcadas pelo tema da “vizinhança”: o diálogo com Francisco, vizinho pobre e desprezado por toda a rua, inclusive pela própria família, e a visita ao casal Josif e Draga, antigos vizinhos de Pinto Grande, quando era adolescente, com os quais jantará minutos depois.

Quanto mais avançamos nessa noite em que a relação com o próximo será triturada, exposta em suas contradições e levada a paroxismos, mais percebemos o intrincado enredo a que fomos conduzidos: o jantar transforma-se numa descida ao vale do Flegetonte, para conhecer não só a violência contra nossos semelhantes, mas também homens distintos: os que soçobram diante do apelo a diferentes gestos de agressão e aqueles que, dominando seus instintos, recusam o Mal.

Yuri Vieira constrói, assim, raro exemplo de conto filosófico — e não ideológico. Não se trata de uma peça de propaganda política ou religiosa, não há ideias a priori que o autor deseja propagandear. A interrogação a respeito de nossa relação com o Outro manifesta-se nas situações vividas durante o jantar, em longo e diversificado diálogo, quando os personagens se entrechocam num antagonismo crescente. Os extremos a que somos levados, do inocente diálogo com Chico ao terrível embate na casa dos iugoslavos, são representações realistas dos encontros e desencontros a que estamos fadados — e não meras abstrações de um ideólogo que desejou escrever ficção. O conto dá concretude às escolhas humanas, tantas vezes próximas do completo desatino. E dessa noche oscura, em que os personagens se debatem à procura de saídas para o desespero, emerge, no final perfeito, a límpida figura do Dr. João Pinto Grande, plenamente livre em seu repúdio ao Mal.

O gênero do conto é conduzido, assim, a regiões pouco visitadas em nossa literatura contemporânea: longe dos insignificantes quebra-cabeças linguísticos ou dos narradores ambíguos — que, na verdade, escondem escritores preguiçosos —, o leitor terá de respirar numa atmosfera espessa, hostil, de informações adversas, na qual pieguice e vitimismo são substituídos pela correta — e esquecida — consciência do que é uma virtude.

Verdugos hipócritas

“A menina branca” segue chave diversa. Nesse conto, o destino de Edgard, o protagonista, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o Brasil luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela nos recorda a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em A marca humana.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

O narrador de “A menina branca” nos sequestra desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo é perfeito.

Yuri também demonstra timing correto e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por um inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

A narrativa, contudo, esconde, nas entrelinhas da derrocada de Edgard, crítica perturbadora: o personagem erra não por sua própria vontade, mas pressionado pelo que se costuma chamar, na falta de expressão menos demagógica, de opinião pública. É o paradoxo do nosso tempo: ser levado ao erro pela vontade cega do politicamente correto — e depois ver-se condenado por esses mesmos verdugos hipócritas.

Yuri Vieira não sofre, decididamente, de narratofobia. E agora sinto-me obrigado a ler todos os contos.

Eugene O’Neil: o papel do escritor

Cumpre ao dramaturgo, hoje em dia, cavar até às raízes do mal moderno tal como o sente – a morte do antigo Deus e o fracasso da ciência e do materialismo em apresentar um outro Deus que satisfaça ao primitivo instinto religioso sobrevivente, a fim de que nele o homem encontre um sentido para a vida, com o qual se conforte dos temores da morte. Qualquer pessoa que atualmente tente realizar uma grande obra, parece-me, deve ter este magno assunto por detrás de todos os pequenos assuntos de suas peças e novelas, ou estará simplesmente arranhando a superfície das coisas, não pertencendo senão à categoria dum proporcionador de divertimentos de salão.

Eugene O’Neil em carta dirigida a um amigo.

Monteiro Lobato: livro é sobremesa

Quando Monteiro Lobato vendeu a fazenda que herdou da família para investir em sua primeira editora, muitos escritores e editores lhe asseguraram que tal empreendimento não era senão uma loucura já que, naquela época, um bom livro raramente vendia mais que mil exemplares ao longo de cinco anos. Logo, diziam-lhe, quando conseguiria recuperar essa grana? Provavelmente nunca. Contudo, além de ser um grande escritor, Lobato era também um empreendedor de visão: partindo do princípio de que “livro é sobremesa: tem que ser posto debaixo do nariz do freguês”, foi a diversas agências de Correio da cidade de São Paulo e reuniu numa lista enorme os endereços de todo e qualquer tipo de comércio existente Brasil afora: quitandas, mercadinhos, docerias, bancas de revistas, farmácias e, claro, livrarias. Escreveu então a seus proprietários oferecendo o livro Reinações de Narizinho em consignação, com o cuidado de guardar para si qualquer risco proveniente do negócio: se o livro não fosse vendido, ele pagaria do próprio bolso pelo retorno da mercadoria. E foi assim que, em um ano, vendeu 50 mil exemplares de seu famoso livro infantil.

Como é possível que, em pleno século XXI, com internet e tudo mais, a venda de um bom livro não ultrapasse os 1000 exemplares anuais? Há menos leitores hoje do que havia em 1931? Duvido.

Hilda Hilst: “Que besteira, meu Deus!”

Em 1998, pouco antes de me mudar para a Casa do Sol, a revista Bundas — lançada pelo Ziraldo no ano seguinte em oposição paródica à revista Caras — enviou um jornalista para entrevistar Hilda Hilst. Nessa entrevista, como é de praxe entre a nossa intelligentsia, foi-lhe perguntado algo sobre sexo e ela respondeu que já não atribuía tanta importância ao tema, tendo inclusive abraçado a castidade desde que completara 50 anos. Não me recordo do conteúdo exato da matéria publicada, mas me lembro bem do exemplo dado por ela para ilustrar esse desinteresse recente: certa feita, um amigo-secretário lhe pediu para usar seu banheiro privado, uma vez que o chuveiro do banheiro de hóspedes estava queimado. Minutos depois, enquanto ela se dirigia para o quarto, esse amigo surgiu à sua frente, no corredor, completamente nu, distraído, enxugando os cabelos com a toalha. Ela então olhou para o pau dele e… caiu na gargalhada. Ele, que não a havia visto, ficou deveras encabulado com aquela reação:

— O que é que foi, Hilda?

Ela apontou para o pau dele e, ainda às gargalhadas, quase sem fôlego, comentou:

— Mas é por isso?! É por causa dessa coisa que tanta gente chora pelos cantos, que tanta gente se mata? Que besteira, meu Deus!

Eu sei que amigo era esse, mas, infelizmente, a matéria foi publicada apenas em 1999, quando ele já havia se mudado da casa, e, claro, a coisa toda sobrou para mim, o novo “amigo secretário”. Durante pelo menos dois anos tive de ouvir:

— Yuri, o que a Hilda viu de tão engraçado e ridículo no seu pau?

— Não era o meu, cacete!!

— Yuri, é verdade que seu pau fez a Hilda desistir para sempre do sexo?

— Não era o meu, porra!

O lema da revista Bundas era: “Quem coloca a bunda em Caras não coloca a cara na Bundas”. Mas, caramba, precisavam colocar um pau? (Não era o meu, caralho.)

Hilda Hilst e a força sexual

Há sempre uma “galera de teatro” planejando adaptar um dos livros da trilogia erótica da Hilda Hilst. E, em geral, parecem considerar o tema algo super cor-de-rosa, como se o sexo, em si mesmo, fosse a maravilha das maravilhas. O que eles desconhecem é a declaração que Hilda repetia ao menos três vezes por dia: “Sexo é um terror! Um terror!”. Claro que ela, até os 50 anos de idade, curtiu muito o sexo. Mas também aprendeu direitinho o que esse “diabo em potencial” é capaz de fazer com uma pessoa. Que o digam dois de seus namorados: Cássio, que após o rompimento do namoro metralhou a portaria do prédio dela; e Wilson que, em situação semelhante, a rendeu toda uma noite mantendo um revólver apontado para sua cabeça. Por essas e outras, Hilda ficou muito impressionada com um livro que lhe emprestei: A Força Sexual ou o Dragão Alado, de Omraam Mikhaël Aïvanhov. Mesmo que a pessoa não creia literalmente nas colocações do autor — porque suas descrições são demasiado bizarras e fantásticas — deveria no mínimo encarar suas palavras de maneira simbólica. O ato sexual reiterado cria liames invisíveis entre os envolvidos e, quando um deles tenta romper tal ligação, a dor causada no outro pode até mesmo enlouquecê-lo. Claro, o amor nos salva desse “diabo”. Mas quem disse que todos os que se julgam sexualmente maduros conhecem de fato o amor?

Outra questão tratada por Aïvanhov também chamou a atenção de Hilda: a força sexual é inerentemente uma força criativa. Isto parece óbvio se pensarmos meramente na função estrita dos órgãos sexuais. Mas ele não se referia apenas à reprodução humana: a força sexual alimenta nossa criatividade em todos os âmbitos. E, segundo ele, essa força deve vir de Deus, do contrário, a pessoa se torna uma vampira sexual: incapaz de voltar-se devotamente para o Criador, o sujeito já não consegue receber essa “energia” senão mediante a relação sexual ou, em certo nível, mediante a paixão platônica. Foi quando leu sobre isso que Hilda me falou do seu livro Júbilo Memória Noviciado da Paixão: seu título tem as mesmas iniciais de Júlio de Mesquita Neto, ex-diretor do jornal O Estado de São Paulo, por quem foi apaixonada. No fundo, seu título deveria ser Júlio de Mesquita Neto da Paixão. O jornalista, já um homem casado, além de bastante sério, conservador, não quis manter nenhum relacionamento ilícito com a poeta. Hilda me disse que ele chegou a lhe confessar: “Hilda, tenho medo de você”. Ela resgatou esse fato para exemplificar algo que ela própria já havia notado antes: todos os seus livros de poemas foram escritos ao embalo de alguma paixão, na maior parte dos casos, regada a muito sexo. E, quando finalizava o livro, acabava também o relacionamento com o homem que o inspirara.

— Será que eu os vampirizava? — me perguntou.

— Não sei, Hilda. É possível. Mas vai saber…

O mais triste é que essa falta de conexão com Deus, seja ela permanente ou passageira, leva a pessoa ao vampirismo sexual com os pretextos criativos mais variados: às vezes estão apenas recriando seu próprio ego; noutras estão alimentando sua “biografia” com mais um caso sensacional; ou então estão criando uma obra de arte, uma conspiração, um plano de domínio político/comercial, ou até mesmo uma nova invenção tecnológica. Seja como for, se o agente criador não estiver assegurado por um, digamos, “fio-céu”, acabará causando um choque, um trauma emocional dos mais intensos em suas vítimas. Os vampiros não ligam para Deus: o que sua criatividade exige é “sangue” e, conseqüentemente, choro e ranger de dentes.

A minoria das minorias

Neguinho vem me falar de minorias e de preconceito… Meu, você já tentou ser um escritor no Brasil? É como ser um travesti extraterrestre. Aliás, você leu quantos livros este ano?

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Se você pretende ser um escritor profissional num país de analfabetos funcionais, saiba que a mãe da sua futura namorada preferirá ser apresentada a um pretendente que seja simultaneamente judeu muçulmano negro xavante travesti esquerdista. (Ora, ao menos um tal pretendente deve ter usufruído de várias cotas e agora tem um emprego público estável.)

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Em 1997, após concluir os contos d’A Tragicomédia Acadêmica, deixei Brasília e voltei a São Paulo onde me tornei sócio de um estúdio fotográfico. Mas um dos meus sócios só me apresentava às pessoas assim: “Este é o Yuri, meu amigo escritor”. Eu ficava roxo de vergonha como se ele tivesse dito: “Este é o Yuri, meu amigo que é simultaneamente chinês bosquímano xavante muçulmano judeu comunista direitista e travesti”. Ora, vocês precisam ver a cara de incredulidade de quem olha para um suposto escritor de vinte e poucos anos. Dava vontade de me jogar debaixo da mesa. Acho que a única pessoa que aceitou esse meu rótulo de primeira foi a Duda, personagem do meu relato A Bacante da Boca do Lixo. A vida dela era tão maluca que certamente teria acreditado se eu me confessasse um extraterrestre. Bom, ao menos ela lia. Aliás, só quem lê muito, só quem possui uma imaginação ampla, acredita na possibilidade de se deparar com uma coisa tão bizarra quanto um escritor. É por isso que Hilda Hilst, Bruno Tolentino e Olavo de Carvalho, ao me conhecerem, não me presentearam com nenhum sorriso escarninho. (Sem falar, é claro, que os três já haviam passado pela mesma situação.) Enfim, foi por essas e outras que limitaram-se a me dizer: “Vou ler seu livro”.

Fonte: meu Facebook.

Um conselho de Fernando Pessoa

Um conselho que todo escritor deve seguir é o do Fernando Pessoa: “Faça o romance antes que ele lhe seja feito”. Por exemplo: quer matar alguém? Mate-o num poema, num conto, num romance. Em vez de ir até a UnB com uma metralhadora e meia dúzia de granadas, escrevi A Tragicomédia Acadêmica.

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