palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Ernest Hemingway: A Fome como Boa Disciplina

Ernest Hemingway

Se você não se alimentava bem em Paris, tinha sempre uma fome danada, pois todas as padarias exibiam coisas maravilhosas em suas vitrinas e muitas pessoas comiam ao ar livre, em mesas na calçada, de modo que por toda a parte via comida ou sentia o seu cheiro. Se você abandonou o jornalismo e ninguém nos Estados Unidos se interessa em publicar o que está escrevendo, se é obrigado a mentir em casa, explicando que já almoçara com alguém, o melhor que tem a fazer é passear nos jardins do Luxembourg, onde não via nem cheirava comida, desde a Place de l’Observatoire até a rue de Vaugirard. Poderá sempre entrar no Musée du Luxembourg, onde todos os quadros ficam mais vivos, mais claros e mais belos quando se está com a barriga vazia, roído de fome.

Aprendi a compreender Cézanne muito melhor, a entender realmente como é que pintava suas paisagens quando estava faminto. Costumava perguntar a mim mesmo se ele também tinha passado fome quando pintava, mas imaginava que talvez apenas se tivesse esquecido de comer. Era um daqueles pensamentos doentios mas brilhantes que nos ocorrem quando estamos com falta de sono ou de comida. Mais tarde, bem mais tarde, concluí que Cézanne provavelmente passara fome, mas de maneira diferente.

Depois de ter saído do Luxembourg, você poderia andar pela estreita rue Férou até a Place St. Sulpice sem ver restaurante algum, somente a praça silenciosa, com seus bancos e suas árvores. Havia uma fonte com leões, e pombos andavam nas calçadas ou pousavam nas estátuas dos bispos.

No lado norte da praça ficavam a igreja e lojas que vendiam objetos religiosos e paramentos.

Para além da praça é que não podia prosseguir em direção ao rio sem passar por lojas que vendiam frutas, legumes, vinhos, ou por padarias e pastelarias. Mas, escolhendo cuidadosamente o caminho, conseguiria avançar pela direita, ao redor da igreja de pedra, cinzenta e branca, chegar à rue de l’Odéon e virar de novo à direita em direção à livraria de Sylvia Beach, sem encontrar muitos lugares onde se vendessem coisas de comer. A rue de l’Odéon era desprovida de restaurantes até chegar à praça, onde havia três.

Quando chegasse à rue de l’Odéon, nº 12, a fome estaria contida mas por outro lado, todos os seus sentidos estariam aguçados. As fotografias lhe pareceriam diferentes e descobriria livros que nunca tinha visto antes.

– Você está magro demais, Hemingway – diria Sylvia. – Você anda comendo o suficiente?

– Claro que sim!

– O que é que comeu no almoço?

Apesar das cólicas, eu diria: – Ainda não almocei. Agora é que estou indo para casa.

– Ás três da tarde?

– Não sabia que era tão tarde assim.

– Adrienne disse outro dia que gostaria que você e Hadley fossem jantar com ela. Convidaremos Fargue também. Você gosta do Fargue, não gosta? Ou Larbaud. Você gosta dele. Sei que você gosta dele. Ou qualquer outro de quem você realmente goste. Você falará com Hadley?

– Sei que ela adorará aceitar esse convite.

– Eu lhe enviarei uma carta pneumática para combinar tudo. Quanto a você, Hemingway, não trabalhe tanto, pois não está se alimentando adequadamente.

– Cuidarei disso.

– Vá logo para casa, antes que seja tarde demais para o almoço.

– Guardam o almoço para mim.

– Comida fria também faz mal. Coma um bom almoço quente.

– Chegou alguma carta para mim?

– Acho que não. Mas deixe-me ver.

Foi ver e encontrou um recado. Levantou os olhos, satisfeita, e depois abriu uma porta da sua escrivaninha, que estava fechada a chave.

– Isto chegou enquanto eu estava fora – disse ela.

Era uma carta e dava a impressão de conter dinheiro.

– Wedderkop – disse Sylvia.

– Deve vir do Der Querschnitt – disse eu. – Você esteve com Wedderkop?

– Não. Mas ele passou por aqui, com o George. Ele falará com você, não se preocupe. Talvez quisesse primeiro pagar o que lhe deve.

– São estes seiscentos francos. E diz que receberei mais.

– Foi ótimo você me ter lembrado da correspondência!

Meus parabéns, Dr. Sabe-Tudo.

– É realmente muito engraçado que a Alemanha seja o único lugar onde posso vender alguma coisa. A Wedderkop e ao Frankfurter Zeitung.

– É mesmo! Mas não se aborreça. Você pode vender alguns contos ao Ford – disse ela para me provocar.

– A trinta francos a página! Faça os cálculos: um conto, cada três meses, no The Transatlantic. Um conto de cinco páginas dá cento e cinquenta francos por trimestre. São seiscentos francos por ano.

– Mas, Hemingway, não se preocupe com o que lhe rendem agora. O essencial é você poder escrevê-los.

– Sei. Posso escrevê-los. Mas ninguém os comprará. Não tem entrado dinheiro algum desde que abandonei o jornalismo.

– Estou certa de que conseguirá colocá-los. Você não acaba de receber esse dinheiro?

– Desculpe-me, Sylvia. Perdoe-me por falar nos meus problemas.

– Desculpá-lo de quê? Fale sempre disso ou do assunto que quiser. Você não sabe que todos os escritores sempre falam de suas dificuldades? Mas prometa-me que não se preocupará demais e comerá bastante.

– Prometo.

– Então vá para casa agora e almoce.

J. J. Benítez e Júlio Verne: a mesma pessoa?

 J.J. Benítez e Jules Verne

Siempre lo dije. Una de las posibles claves del éxito de mis libros se asienta en la verosimilitud de cuanto escribo. Todo ha sido escrupulosamente verificado de la mano de la ciencia. Ello explica la confianza y, en ocasiones, la extrema e ingenua credulidad de los lectores, que no atinan a distinguir la realidad de la ficción. Y dime, viejo tramposo, ¿puede darse algo más hermoso y romántico?

La gente sueña despierta, olvidando, aunque sólo sea momentánea y temporalmente, sus más inmediatas y prosaicas realidades. ¡Viva Verne, sí, señor! En 1865, a raíz de la publicación en el Journal des Débats de mi novela De la Tierra a la Luna, sucedió algo prodigioso y tierno. Conforme iban apareciendo los capítulos del libro, los ciudadanos fueron volcándose en la acción y en la trama, compartiendo las venturas y desventuras del héroe: Ardan. ¡Cientos de lectores escribieron al periódico solicitando una plaza en el obús que debía viajar a la Luna! ¿Hay algo más sublime? ¡Y para qué vamos a hablar de La vuelta al mundo en ochenta días! ¿Julio Verne un "iluminado"? ¿Cómo pudo prever este loco semejante audacia? Los lectores me preguntan y se hacen cruces, perplejos ante mi "profecía". La verdad, como casi siempre, es mucho más elemental y terrestre. La idea surgió merced a mi pasión por los periódicos. Un buen día leí una noticia que me entusiasmó: ya era posible dar la vuelta al mundo en menos de tres meses. El artículo incluso me proporcionó el itinerario… Fueron suficientes algunos ligeros "retoques" y del anuncio turístico de la agencia Cook brotó una novela.

¿Yo un "iluminado"? No… Yo, Julio Verne, sólo soy un incomprendido, un árbol muerto, un viejo oso acosado por la diabetes, amenazado de ceguera, cojo y definitivamente solo. El 27 de agosto del pasado año, mi querido hermano Paul también me dejaba… Jamás imaginé que le sobreviviría. ¡Ah, Paul, cómo te añoro! Tú fuiste mi consejero, mi guía y mi confidente. ¿En quién descansaré ahora? Tu muerte anuncia la mía. 1897 suma "7"… ¿Serán ésos los años que me restan para emprender contigo y con Anne la última y azul singladura de los cielos? ¿Será 1905 el año de mi desaparición? Estoy listo. Mi equipaje cabe en mi corazón. Fui un hombre que amó… tardíamente. Quizá eso me salve…

Pero partiré de este mundo con una íntima tristeza. Sólo tú, Paul, y Anne lo sabíais. Ahora no hay tiempo para rectificar… Salgo de la vida con decenas de novelas, sí… Muchas de ellas — dicen — admirables… Pero en la obra de Verne falta "alguien" y "algo"… Dos palabras son suficientes para resumir el lamentable "vacío" de estos treinta y cinco años de trabajo:

JESÚS DE NAZARET Y AMOR.

A pesar de mi admiración por Él, no he sido valiente. Mi secreto sueño — escribir sobre el Hijo del Hombre — queda pendiente…

En cuanto al AMOR, sí, con mayúsculas, mi obra queda igualmente vacía.

Y a la sombra de ambas frustraciones, otros pequeños-grandes sueños incumplidos me escoltarán hasta la tumba, la que Roze tiene preparada para mí:

REESCRIBIR LA HISTORIA… ¿Y por qué no?

ESTUDIAR ESAS MISTERIOSAS "LUCES" QUE, DICEN LOS PERIÓDICOS NORTEAMERICANOS, HAN EMPEZADO A SURCAR LOS CIELOS DESDE 1897.

ABRIR LA CONCIENCIA DE LA HUMANIDAD CON LA ESPADA MÁGICA DEL ESOTERISMO, YA APUNTADO SUBTERRÁNEAMENTE EN MIS LIBROS…

Pero muero optimista. De igual forma que yo, Julio Verne, continué la truncada labor de Alan Poe, otro hombre, más audaz y resuelto que yo en el dominio de las cosas aparentemente imposibles, nacerá un día, no muy lejano, y llevará a buen fin lo que este viejo oso, culo de plomo, ha dejado inconcluso…

Y ese hombre seré yo, Julio Verne, de acuerdo con lo que me ha sido revelado. He aquí la revelación, que nace de mi propio epitafio:

VERS L’IMMORTALITÉ ET L’ETERNELLE JEUNESSE

(HACIA LA INMORTALIDAD Y LA ETERNA JUVENTUD)

Mandé construir mi tumba, bajo el espíritu de este epitafio.

En su eslabón está el camino que conduce a la inmortalidad, a través del secreto de la eterna juventud.

Mi nombre envuelve el camino.

Por él fui y, por él, he de volver.

El número de los días que excederán a los millares de los días de mi vida, será el de las centenas de los días de mi muerte.

El número de los días que excederán al de las centenas de los días de mi muerte, será el de los millares de los días de mi vida.

El número de los días de mi vida y el número de los días de mi muerte tendrán, como veréis, el mismo número secreto.

Por mis obras me conocéis, y

por mis obras me reconoceréis.

______

Yo, Julio Verne, de Juan José Benítez.

O trecho acima seria um excerto do diário perdido de Jules Verne – na verdade, uma biografia do autor francês escrita por Benítez na primeira pessoa. Nele, “Verne” anuncia a vinda de um “outro homem”, um outro escritor que faria o que ele deixou de fazer. E acrescenta: “E esse homem serei eu, Júlio Verne, de acordo com o que me foi revelado”. Quem aí tiver saco para fazer todos os cálculos numerológicos citados perceberá que Benítez – autor de vários livros sobre OVNIs e da série Operação Cavalo de Tróia (que trata da vida de Jesus tal como a retrata o Livro de Urântia) – perceberá que Benítez está tentando nos dizer que ele e Jules Verne são a mesma pessoa.

Ah, esses escritores…

Mario Vargas Llosa fala da patrulha esquerdista

Mario Vargas Llosa

Por que é tão difícil para os intelectuais da sua geração abandonar as idéias obsoletas da esquerda?

A esquerda tem o controle do establishment cultural. Ela domina o mundo acadêmico, as editoras e até os setores de cultura dos jornais e de revistas de direita. Isso dá um poder de chantagem enorme à esquerda. Todo escritor, desde muito jovem, sabe que não ser de esquerda significa defrontar portas fechadas. Por outro lado, ser esquerdista garante regalias. A esquerda fracassou em tudo, menos no controle da cultura. Isso foi possível porque a direita é muito ignorante e também por não ter se preocupado em utilizar a cultura ideologicamente, politicamente. A esquerda, sim. Como resultado, muitos intelectuais e artistas, inclusive aqueles que não militam na esquerda, jamais se atrevem a criticá-la. Isso não ocorre apenas na América Latina. Conheci um ambiente assim na França dos anos 60. Não ser de esquerda dava muita dor de cabeça.

Foi o que aconteceu quando o senhor rompeu com Cuba, em 1971?

Sim. Quando rompi abertamente com Cuba, parecia que eu tinha contraído a peste. Eu era atacado por todos os lados em manifestos muito violentos. Desde então, tive de dedicar uma parte considerável da minha vida não apenas a defender minhas idéias, mas também a dizer o que eu não sou. Na lógica dos patrulheiros, quem não é comunista só pode ser nazista, defender o apartheid na África do Sul e ser a favor da Guerra do Vietnã. Explicar cada dia, cada semana, que não se é nada disso é um trabalho muito chato e incômodo. Por isso, muitos escritores dizem que são de esquerda só para ser deixado em paz.

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Fonte: Revista Veja, edição 2187 – “Queremos ser pobres”, uma entrevista com Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2010.

¿Quem nunca levou uma porta na cara por criticar a esquerda? O principal elogio que meu primeiro livro recebeu, e do qual muito me orgulho, foi escrito pelo filósofo Olavo de Carvalho… (Nem irei falar das entrevistas no You Tube…) ¿Será que vocês podem imaginar o que isso significa quando se faz necessário conseguir um trabalho em jornal, revista, editora, agência de publicidade (sim, até em publicidade) e quejandos? Houve quem me aconselhasse a desaparecer com tal elogio, afinal, a vida de quem escreve, nos dias de hoje, é um site aberto. E basta uma rápida visita ao Google, feita pelo empregador, para que mais uma porta se feche… No entanto, ¿por qual razão eu esconderia o elogio de uma das pessoas cuja inteligência e cujo caráter eu mais respeito? Como já dizia Louis Pauwels, “o público em geral não sabe que estamos em guerra civil nos meios da cultura. Contudo, o resultado dessa guerra determinará o destino cotidiano”.

Luis Fernando Allen e Woody Veríssimo

Woody Allen e Luis Fernando Veríssimo

Alguns contos do Luis Fernando Veríssimo parecem ter sido escritos pelo Woody Allen. E vice-versa. Já havia notado isso? Não? Então procure pelos contos humorísticos desses dois. É possível, por exemplo, colocar a assinatura de Veríssimo sob o conto Conde Drácula, de Woody Allen, e ninguém duvidará que foi o gaúcho quem o escreveu. Da mesma forma, escreva Woody Allen sob os contos Brincadeira e Suspiros , ambos de Veríssimo, e ninguém duvidará dessa suposta autoria. Não estou dizendo que um tenha imitado o outro, nada disso. Creio apenas que sejam ambos do mesmo planeta criativo.

Luis Fernando Allen e Woody Veríssimo. Nada mais, nada menos. Esses dois são muito parecidos. Se brasileiro fosse, Woody Allen teria escrito, anos a fio, maravilhas sobre os petistas e demais sanguessugas do progressismo. Tal como fez Luis Fernando Veríssimo. Se norte-americano, Luis Fernando Veríssimo teria elogiado Obama na imprensa ianque, tal como o liberal Woody Allen. E teria feito piadas semelhantes sobre os religiosos, os conservadores, a Igreja, a família, as feministas, os psicanalistas, os capitalistas, os comunistas e assim por diante, todas dignas de perdão e muitas risadas, porque piadas. Claro, ele as teria feito em inglês e cinematograficamente, porque, em português, ele as fez, pois estão escritas, publicadas e à venda nas melhores livrarias. Aliás, que pena que Veríssimo seja — conforme reza a lenda — tão tímido. E que pena a economia brasileira, tão keynesiana, tão subjugada pelo Estado, seja também tão tímida. Do contrário, tal como Allen, Veríssimo teria migrado em algum momento para o cinema e nos brindado com excelentes comédias. (Filmes são caros, você sabe. Economias tímidas não suportam muitos filmes ao ano.) Bem, alguns filmes ou comédias televisivas foram realizados sob sua influência — inevitável, já que certos contos de Luis Fernando Veríssimo são verdadeiros roteiros — mas nenhum haveria de se comparar a um longa-metragem original escrito e dirigido por ele. Talvez o carma de se defender uma economia atrelada ao Estado seja este: ter todo o talento para se tornar um ótimo cineasta e não poder sê-lo porque um filme de humor tão refinado seria um investimento demasiado grande para um retorno financeiro tão mirrado. Sim, infelizmente, o humor refinado não é muito popular. Mas, num país de capitalismo mais saudável, como o norte-americano, o retorno seria o bastante para tornar a atividade auto-sustentável, tal como a de Woody Allen, que não lança blockbusters, mas que sempre consegue rodar ao menos um filme por ano. Detalhes…

Gosto desses dois autores porque seu humor fala diretamente ao meu senso de humor. São excelentes ao explorar o contraste existente na fronteira entre o convencional e o ridículo. Por isso não me importa mais a visão de mundo que apresentam explícita ou implicitamente em suas obras ou fora delas. E tampouco dou atenção ao que dizem a sério por aí. Da mesma forma, prefiro mil vezes mais ouvir as músicas geniais do Caetano Veloso a saber o que o compositor baiano pensa sobre as eleições, o presidente, a economia, etc. Quero que o mundo continue sendo um mundo em que todos eles possam falar o que lhes der nas telha. Mas que não parem de fazer o que sabem fazer melhor.

Ah, antes que eu me esqueça: tanto Allen quanto Veríssimo são músicos diletantes de jazz! Que coisa…

Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura 2010): El viaje a la ficción

Mario Vargas Llosa expone su visión sobre el fenómeno literario y los vínculos entre la realidad y la ficción.

Alguns poemas de Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos

O COVEIRO

Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: “Eterno companheiro
Da morte, quem matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Depois, tomando a enxada, gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
– “Ai, foi por isso que me fiz coveiro!”

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!
É o afrodístico leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,
Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetas células guarda!
Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

A ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!

AMOR E CRENÇA

Sabes que é Deus? Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?
Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?
Ah! Se queres saber a sua grandeza
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!
Deus é o Templo do Bem. Na altura imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a crença,
Ama, pois, crê em Deus e… sê bendita!

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! Quantos
Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!
No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o céu se alara.
E Deus lhe disse: “És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto.”

SONETO

A praça estava cheia. O condenado
Transpunha nobremente o cadafalso,
Puro do crime, isento de pecado,
Vítima augusta de indelével falso.

E na atitude do Crucificado,
O olhar azul pregado n’amplidão,
Pude rever naquele desgraçado
O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado
Se dispunha a vibrar sem compaixão
O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz – o criminoso – então,
Caiu na praça como fulminado
A soluçar: perdão, perdão, perdão!

ARIANA

Ela é o tipo perfeito da ariana.
Branca, nevada, púbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essência que de si dimana.

As níveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.

Dorme talvez. Em flácido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana.

Enquanto o amante pálido, a seu lado,
Medita, a fronte triste, o olhar velado,
No Mistério da Carne Soberana.

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Eu e Outras Poesias, de Augusto dos Anjos

Fernando Pessoa discorre sobre estética

Fernando Pessoa

« Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.»

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« O valor essencial da arte está em ela ser o indício da passagem do homem no mundo, o resumo da sua experiência emotiva dele; e, como é pela emoção, e pelo pensamento que a emoção provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experiência, regista-a ele nos fastos das suas emoções e não na crônica do seu pensamento cientifico, ou nas histórias dos seus regentes e dos seus donos [?]. Com a ciência buscamos compreender o mundo que habitamos, mas para nos utilizarmos dele; porque o prazer ou ânsia só da compreensão, tendo de ser gerais, levam à metafísica, que é já uma arte. Deixamos a nossa arte escrita para guia da experiência dos vindouros, e encaminhamento plausível das suas emoções. É a arte, e não a história, que é a mestra da vida.»

*

« A ciência descreve as coisas como são; a arte descreve-as como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não interessa.»

*

« A arte é a auto-expressão forcejando por ser absoluta.»

*

« O valor de uma obra de arte é tanto maior quanto é puramente artístico o meio de manifestar a idéia.»

*

« A arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção. Um grito, uma simples carta pertencem um à arte de cantar, à literatura a outra, inevitavelmente. O próprio gesto é artístico segundo é ou não interpretação de uma emoção. Porque no gesto há o fim do gesto e a expressão desse fim. Uma cousa reporta-se à vontade, a outra à emoção. Elegância ou deselegância de um gesto significam conformidade ou não-conformidade com a emoção que exprime. Assim uma estátua da dor é a fixação dos gestos que mostram a dor – e será tanto mais bela quanto mais justa e exatamente representar por esses gestos a emoção da dor, quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa emoção.»

*

Arte – Idealização

« Todo o material da arte repousa sobre uma abstração: a escultura, por exemplo, desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a 3 dimensão e o movimento portanto; a música desdenha tudo quanto não seja o som; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstração suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o som – acessório da palavra – não tem valor senão associado – por impercebida que seja essa associação. A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstração da realidade, tenta reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstração do seu material está a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior das artes.»

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« Porque a arte dá-nos, não a vida com beleza, que, porque é a vida [var.: concreta], passa, mas a beleza com vida, que, como é beleza [var.: abstrata], não pode perecer. A cada conceito da vida cabe não só uma metafísica, mas também uma moral. O que o metafísico não faz porque é falso, e o moralista não faz porque é mau, o esteta não faz porque é feio.»

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Os desvios ideativos da poesia moderna

« Emoção que não seja vaga, pensamento que o seja não prestam. Os modernos poetas franceses têm o contrário: são nítidos e (…) na emoção e vagos, deploravelmente vagos na idéia. Uma obra literária procura sentimentos que têm que ver com: a idéia, a emoção, a imaginação (que vem a ser uma combinação inteira de idéia e emoção). A idéia deve ser nítida, a emoção vaga, a imaginação, como é composta essencialmente de ambos, ao mesmo tempo vaga e nítida. – A arte deve dirigir-se a estas 3 faculdades, que não a uma ou duas delas isoladamente.»

*

« Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la, podia ser produto da vontade. Como não provém, só pode ser, essencialmente, produto do instinto; pois que instinto e vontade são as únicas duas qualidades que operam. A obra de arte é, portanto, uma produção do instinto. O drama, sendo primariamente uma obra de arte, é-o também.»

*

Introdução à Estética

« Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança, tantos séculos de tantas cousas, que sintam e portanto se exprimam com a limpidez, e a inocência de sentidos, de Safo ou de Anacreonte, nem é legítimo, nem razoável. Não é no conteúdo da sensibilidade que está a arte, ou a falta dela: é no uso que se faz desse conteúdo.

« Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal. A matéria da arte, da sensibilidade, a forma, dirige-a a inteligência. E na forma há, ainda, duas partes a considerar: a forma concreta ou material, que se prende com a matéria mesma da obra, e a forma abstrata ou imaterial, que se prende só com a inteligência e depende de suas leis imutáveis.

« Três são as leis da forma abstrata, e, como são da forma abstrata, aplicam-se a todas as artes e a todas as formas de cada arte. Abdicar delas é abdicar da mesma arte. Podemos eleger quebrar tais leis; não podemos, porém, elegendo-o, presumir que fazemos arte, pois a arte consiste, mais que em qualquer outra cousa, na obediência a essas leis. As três leis da forma abstrata são: a unidade; a universalidade ou objetividade; e (…).

« Por unidade se entende que a obra de arte há-de produzir uma impressão total definida, e que cada seu elemento deve contribuir para a produção dessa impressão; não havendo nela nem elemento que não sirva para esse fim, nem falta de elemento que possa servir para esse fim. É uma falha artística, por exempla, a introdução em um poema de um trecho, por belo que seja, que não tenha relação necessária com o conjunto do poema, como o é, mais palpavelmente, a introdução em um drama de uma cena em que, por grande que seja a força ou a graça própria, a ação pára ou não progride, ou, o que é pior, se atrasa.

« Por universalidade, ou objetividade, se entende que a obra de arte há-de ser imediatamente compreensível a quem tenha o nível mental necessário para poder compreendê-la.

« Quanto mais altamente intelectual for uma obra de arte, maior será, em princípio, a sua universalidade, pois que a inteligência abstrata é a mesma em todos os tempos e em todos os lugares – dada a espécie humana no nível de tê-la -, enquanto a sensibilidade varia de tempo para tempo e de lugar para lugar.

« Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impressão ou emoção do artista que a constrói, impressão ou emoção que, como tal, é própria e intransmissível. Se o valor dessa emoção, para quem a sente, é o ser própria, deve gozar-se simplesmente, e não exprimir-se. Se o valor dela, porém, é mais alguma cousa, (…).

« Todos nós sentimos a dor e o delírio do Rei Lear de Shakespeare; esse delírio, contudo, é, diagnosticavelmente, o da demência senil, de que não podemos ter experiência, pois quem cai em demência senil nem pode perceber Shakespeare, nem qualquer outra causa. Porque é, então, que, sendo esse delírio tão caracterizadamente o do demente senil, o sentimos tanto nós, que não temos conhecimento desse delírio? Porque Shakespeare pôs nesse delírio só aquela parte que nele é humano, e afastou a que nele seria, ou particular do indivíduo Lear, ou especial do demente senil. Todo o processo mórbido envolve essencialmente ou um excesso, ou um abatimento, de função; ou uma hipertrofia, ou uma atrofia, de órgão. O desvio, que constitui a doença, está na distância a que fica o excesso, ou o abatimento, do nível da função normal; na dessemelhança que se estabelece entre o órgão hipertrofiado, ou atrofiado, e o órgão são. Assim a doença é, ao mesmo tempo, e no mesmo ato, um excesso ou abatimento do normal, e um desvio (ou diferença) desse normal. Se, apresentando um caso de doença mental, o apresentarmos pelo lado em que é excesso ou abatimento da função normal, com isso mesmo o apresentamos como ligação a essa função, e compreensível para quem a tenha; se, porém, o apresentarmos pelo lado em que é desvio ou diferença, com isso mesmo o apresentamos como desligado ou separado dessa função, e incompreensível, portanto, a quem não esteja no mesmo caso mórbido, o que será pouca gente, senão pouquíssima. As duas maneiras são comparáveis à maneira racional, e à dogmática ou aforística, de apresentar uma conclusão: o raciocinador leva o ouvinte ou lente até à conclusão por um processo gradual, e ainda que a conclusão seja estranha ou paradoxal, torna-se em certo modo aceitável por se tornar compreensível como se chegou até ela; o dogmático põe a conclusão sem explicar como chegou a ela, e sucede, como se não vê relação entre o ponto de partida e o de chegada, que só quem tenha feito o raciocínio necessário, ou quem aceite a conclusão sem raciocínio, pode convir nessa conclusão.

« Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou já em toda outra mente humana. O que compete, pois, ao artista que quer exprimir determinado sentimento, por exemplo, é extrair desse sentimento aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos análogos dos outros homens, e não o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses sentimentos.

« A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impressão, e uma só; deve ter um sentido, e só um; seja sugestivo o processo, ou explícito. Isto se vê claramente no emprego do epíteto em literatura. Muito se tem bradado contra o emprego de adjetivos estranhos, ou juntos a substantivos com os quais não parecem poder ligar-se. Não há, porém, adjetivos estranhos, nem é possível construir uma frase a que se não possa atribuir um sentido qualquer. O que é necessário é que esse «sentido qualquer» seja só um, e não possivelmente um de vários. Ésquilo, numa frase célebre, refere-se ao «riso inúmero das ondas»; o epíteto é daqueles a que é uso chamar ousados, pois que tudo é ousado para quem a nada se atreve. Toda a gente, porém, compreende a frase, nem lhe é atribuível mais que um sentido. Há, porém, uma poetisa francesa que deu a um seu livro o título, mimado desta frase, de O Coração inúmero, frase esta que pode ter vários sentidos, porém que não é certo que tenha este ou aquele. A «ousadia» do epíteto é igual no grego e na francesa; uma, porém, é a ousadia da inteligência, a outra a do capricho.

« Pode ser, no caso de um epíteto desta última ordem, que a sensibilidade de várias pessoas convenha na mesma interpretação, e, ainda, que essa interpretação seja – o que também poderia não acontecer – aquela mesma que lhe o autor deu. Como, porém, a sensibilidade é passageira e local, local e passageira é também a interpretação que dela procede.

« Estas considerações têm que ser interpretadas em relação às diversas artes, diversamente para cada uma, conforme sua matéria e fim. Aquele trecho musical cuja frescura e alegria me dá a mim a impressão de madrugada, pode dar a outro a impressão de Primavera. Como, porém, não é função da música definir as cousas, senão a emoção que geram, o trecho produziu, em verdade, a mesma impressão em mim e no outro, pois ambos sentimos nele frescura e alegria; o lembrar-me essa frescura a madrugada, e a outro a Primavera, é apenas a tradução pessoal que cada um de nós faz da sensação que recebeu, pois a sensação abstrata de alegria e de frescura é comum à madrugada e à Primavera. A um terceiro esse mesmo trecho poderia evocar, por exemplo, certa cena de amor, ou certa paisagem, sem que em alguma cousa saísse do seu fim próprio, logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam nele ligadas as idéias de frescura e alegria. Do mesmo modo a frase de Ésquilo “riso inúmero das ondas” não é diversa em mim e num veneziano por em mim evocar o Atlântico e nele o Adriático.»

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Obra em Prosa, de Fernando Pessoa. (Ele mesmo, e não do heterônimo Bernardo Soares.)

Imagino que esses trechos possam estar nesse livro, já que não encontrei, na internet, este outro a que me refiro. Eu costumava renovar o empréstimo desse livro semanas sobre semanas na biblioteca da UnB. Lia e relia sem parar. Claro, juntamente com o volume da Obra Poética.

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