palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Projeto de Lei: o cartório do cartório do cartório

Em vez de acabar com os cartórios — esse graaaande avanço civilizacional — deviam criar o “cartório do cartório” e o “cartório do cartório do cartório”. Seria assim: primeiro você vai ao cartório reconhecer firma, depois vai com o tabelião ao cartório do cartório que reconhecerá o reconhecedor da firma e assim por diante. Entendeu? Vou esmiuçar. Dá até para dividir o Uber com os funcionários. Com o primeiro tabelião, do cartório, e com o segundo, do cartório do cartório, você vai até o cartório do cartório do cartório que reconhecerá que os dois tabeliões anteriores são confiáveis e reconheceram a firma corretamente. Obviamente, se a pessoa achasse o processo todo muito trabalhoso, poderia recorrer a uma agência de sósias, a qual possuiria atores treinados em imitar a assinatura do cliente. Aí o ator, fingindo ser você, iria até o cartório e, em seguida, ao cartório do cartório e ao cartório do cartório do cartório. Os despachantes poderiam oferecer esse serviço. Claro, é possível que algum legislador, notando a tramóia, decidisse criar o cartório do cartório do cartório do cartório, no qual haveria, graças ao banco de dados do TSE, o reconhecimento da digital. Por que não colocariam reconhecimento da digital no primeiro cartório? Ora, e acabar com os empregos gerados pelo cartório do cartório, do cartório do cartório do cartório e do cartório do cartório do cartório do cartório? Sacanagem. Os parasitas também são gente, precisam sobreviver.

Chow! Chow!

— Você não pode dizer “vírus chinês”: isto é ra-cis-mo!
— Deixa de falar abobrinha, Tiago. Eu nem sei qual é a raça do vírus. Não sei se é pequinês, shih tzu, pug, chow chow…
— Ha-ha. Muito engraçado. Vírus não é exatamente um ser vivo. Só vive quando está dentro de você.
— Tá, mas deixa eu voltar aonde parei. Não quero ficar falando das características do zumbi microscópico. Eu só estava dizendo que o vírus chow chow ou pug (você decide a raça), enfim, que ele é uma arma do Partido Comunista deles. Isso é óbvio.
— E eles iam começar matando o próprio povo? Tá bom.
— Caramba, você não entende nada de comunista mesmo. Quem mais mata comunista nesse mundo é outro comunista, garoto.
— Querem parar com essa discussão na hora do almoço? Deixa o menino falar o que quiser, Alfredo.
— E não tô deixando? Mas eu também posso dizer o que eu penso, oras. Esse garoto, depois que entrou na universidade, ficou bobo. Impressionante! Não posso nem falar que “a coisa tá preta” que já me chama de racista. Tô de saco cheio.
— Bom, enquanto as aulas não voltarem, você vai ter de me aturar.
— E vê se pára de me tratar por “você”. Eu sou seu pai e pago as contas. Diga “senhor”, ouviu?
— Ai, que saco.
Tapa na boca.
— Parem já com isso, pelo amor de Deus!
O filho sai e, ao entrar no quarto, bate a porta.
— Esse moleque anda muito impertinente, Marisa. Pior que o vírus chinês é o vírus que ele pegou na faculdade. E ainda arranjou aquela lambisgóia pra namorar. Porra! A menina é careca! Que coisa mais feia!
— Uê, não era você o apaixonado pela Sinéad O’Connor? Vivia cantando pra mim “nothing compares to you”…
— Não compara a Sinéad com a lambisgóia. Nada compares to Sinéad! Ela não tinha um pentagrama satânico tatuado na cabeça e nem piercing nos mamilos.
— Ué! E como você sabe que a Gislaine tem piercing nos mamilos?
— Nossa, Marisa, como você é desatenta. A garota não usa sutiã e vem de camiseta aqui. Você acha que aquilo é o quê? A chave onde você liga e desliga a psicopatia dela?
— Ai, Alfredo, essa quarentena tem de acabar. Vocês dois vão me deixar louca!
— É a faculdade e a… como ela chama?
— Quem?
— A namorada dele, porra.
— Gislaine.
— Então, é ela e a faculdade que estão deixando nosso filho doido e, de tabela, nós dois. Em plena era da Fake news, o moleque foi escolher logo jornalismo para estudar. Que palhaçada.
— Tá, Alfredo, tudo bem. Também não estou satisfeita. Mas você precisa ter mais paciência. Desse jeito você vai acabar enfartando.
— Pelo menos essa agonia acabaria logo.
— Credo, meu amor! Não fala isso.
— Já tem político idiota querendo arrastar a coisa por mais alguns meses. Tem filho da puta dizendo que a quarentena tinha de durar até 2022! Imagine! Se a gente ficar desse jeito mais quinze dias, a empresa vai quebrar e vou acabar na rua.
De máscara, o filho sai do quarto, levando uma mochila às costas.
— Aonde você pensa que vai?
— Já falei com a Gislaine. Vamos morar juntos.
— Mas, meu filho, como vocês vão se manter?
— A gente dá um jeito, mãe. Aqui é que eu não fico mais.
— Deixa ele, Marisa. Assim pelo menos ele vai ver o que é bom pra tosse. Tá achando que sustentar uma esposa é fácil? Uma família então…
— Não tem problema. O Rogério também vai ajudar.
— Ah, é? E agora você vai depender de dinheiro de amigo?
— Ele não é só meu amigo. O Rô também namora a Gislaine. Somos um trisal.
— Meu filho!
— Puta que o pariu! Tá vendo, Marisa? Aquela garota é o cão. É uma islâmica ao contrário! Em breve terá quatro maridos e, em seguida, um harém.
— Pára de falar besteira, pai.
— Besteira? Eu já notei a maneira como ela fala com você: te trata feito um discípulo, um seguidor. Você é todo desafiador comigo, com seu próprio pai que sempre te amou e cuidou de você, e só falta lamber o chão que a Gilânia pisa.
— Gislaine.
— E o que eu disse? Gislânia. Aposto que você é coprófogo e ainda come a merda dela. Seu palhaço fresco.
— Eu e o Rô já bebemos mesmo o mijo dela. Nós três, no chuveiro…
A mãe fica zonza:
— Ai, ai, meu Deus, preciso me sentar.
— Sai daqui, moleque! Vai lá pra tariqa da sua mestra, vai. Vai pro ashram dela. Vai lá beber xixi e só volte quando estiver arrependido, trabalhando de terno e gravata.
— Vou mesmo. Não suporto mais essa caretice, esse conservadorismo hipócrita de vocês.
— Ah, é, somos hipócritas: eu e sua mãe ficamos zangados na sua frente e, mais tarde, na cama, comemos o cocô um do outro.
— Vai, meu filho, vai. Antes que seu pai tenha um troço.
— Tchau pra vocês.
— Isso! Chô chô. Se manda. Chow chow! Vai lá se contaminar ainda mais com esse vírus universitário seu.
— Lula livre!
O filho sai e bate a porta.
— Não disse que a gente devia ter tido uns cinco filhos? Agora não temos mais nenhum.
— Ai, Alfredo, não fala assim.
— Falo, sim, falo. Senão eu explodo!

Malditos ingleses

Ela deixou o irmão sozinho no carro e retornou correndo à clínica psiquiátrica:
— Doutor, você acabou de lhe dar alta, mas ele continua surtado.
— Seu irmão está tranqüilo, dona Paula, não se preocupe.
— Tranqüilo? Ele ainda acha que é Napoleão!
— Ah, sim: ele se identifica como Napoleão. Mas isso não é nada.
— Como assim “nada”, doutor? Isso é horrível!
— Horrível por quê? No STF, há rábulas que se identificam como juízes; no Planalto, há um ladrão que se identifica como presidente; na Europa, há um rapaz que se identifica como Miss Holanda; nas TVs, há militantes que se identificam como jornalistas, e assim por diante. Por que seu irmão não pode ser Napoleão?
— Mas… mas… tudo isso é loucura!
— Exato! — e o psiquiatra sorriu. — Logo, se a sociedade está louca, por que seu irmão deveria ser normal? Para ele se sentir desconfortável? Deslocado? Não, não. E o que é a normalidade afinal? Ora, tenha certeza de que ele está mais adaptado ao momento presente do que nós dois.
— Doutor Rodrigo, o senhor não… — mas, de súbito, ela se calou. De cenhos franzidos, ambos passaram a ouvir gritos e protestos vindos de fora. Assustada, Paula saiu à rua e se deparou com uma cena terrível: a torcida do Internacional de Porto Alegre depredava o carro com seu irmão lá dentro. Atrás do veículo, alguns torcedores atendiam seus colegas feridos, deitados no asfalto.
— Parem com isso! Estão assustando meu irmão, ele é um doente mental!
— Não falei que ele era louco? — disse um torcedor.
Outro torcedor, mancando, se aproximou:
— Moça, foi ele quem nos atropelou! Estávamos apenas atravessando a rua e ele jogou o carro na nossa direção.
— Ninguém o provocou — disse uma torcedora.
— Meu Deus… — murmurou Paula, que, batendo à janela com os nós dos dedos, pedia ao irmão para baixar o vidro.
— Malditos ingleses… — balbuciou ele, assim que a obedeceu. — Pensaram que eu não ia reconhecer seus uniformes.
MORAL: Coadunar com a loucura é caminhar para o desastre.

Trecho de “O doente imaginário”, de Molière

Ato III, Cena III de “O doente imaginário”, de Molière.

O não-vacinado e o vacinado

BERALDO
Posso pedir-lhe, meu irmão, antes de tudo, que não se irrite durante a nossa conversa?

ARGAN
Muito bem.

BERALDO
E respondas sem rancor a tudo que eu possa dizer?

ARGAN
Sim.

BERALDO
E raciocinarmos juntos sobre o que temos de falar, com o espírito livre de toda paixão?

ARGAN
Sim, que diabo! Acabe com o preâmbulo!

BERALDO
De onde lhe vem a idéia de meter sua filha num convento?

ARGAN
Vem do fato de eu ser dono de minha família e poder fazer com ela o que me parecer melhor!

BERALDO
Sua mulher não se cansa de aconselhar que você se livre de suas filhas; e eu não duvido de que, por espírito religioso, ela se encante de ver as duas como freiras.

ARGAN
Agora chegamos ao ponto. Já está em jogo a minha pobre mulher. É ela quem pratica todo o mal; ninguém gosta dela!

BERALDO
Não, meu caro irmão. Sua mulher tem as melhores intenções para com sua família, e não liga a qualquer interesse; e lhe dedica uma ternura maravilhosa; e mostra por suas filhas uma afeição e uma bondade inconcebíveis. Tudo isto é certo. Não falemos disto e voltemos a Angélica. Por que quer você entregá-la ao filho desse médico?

ARGAN
Porque quero um genro que me convenha.

BERALDO
Parece até que você quer casar com ele! Pois eu lhe digo; apareceu um melhor partido para sua filha.

ARGAN
Mas o que escolhi é melhor partido para mim.

BERALDO
Mas o marido é para ela ou para você?

ARGAN
Para ela e para mim: quero na família as pessoas de que preciso.

BERALDO
E por isso se Luizinha fosse mais crescida, você lhe arranjaria um farmacêutico?

ARGAN
Por que não?

BERALDO
Será que você estará sempre enrabichado pelos seus doutores e farmacêuticos, e deseja ser doente a ponto de contrariar a natureza?

ARGAN
Que é que você acha, meu irmão?

BERALDO
Não vejo ninguém menos doente do que você; eu gostaria de ter a sua saúde! Uma grande prova de que você se sente bem e tem uma resistência incrível, é que todos esses clisteres não conseguiram derrubá-lo e você consegue ficar em pé depois de tantas inundações.

ARGAN
Mas são estas coisas que me conservam! O Doutor Purgon afirma: eu morrerei se passar três dias sem sua assistência!

BERALDO
Se você não tomar cuidado, ele lhe dará tanta assistência que o enviará ao outro mundo.

ARGAN
Vamos lá: raciocinemos, meu irmão. Você não acredita na medicina?

BERALDO
Não, meu irmão: e não vejo necessidade de crer para ter saúde.

ARGAN
O quê? Você não acha verdadeira uma coisa estabelecida por todos e por todos os séculos reverenciada?

BERALDO
Muito ao contrário, cá entre nós, acho-a uma das maiores loucuras dos homens; e, contemplando as coisas como filósofo, não vejo palhaçada mais divertida, nada de mais ridículo, que um homem a querer curar outro.

ARGAN
Por que, meu irmão, você não quer aceitar que um homem possa curar outro?

BERALDO
Por um simples fato; as peças de nossa máquina são mistérios; até hoje os homens não entendem patavina destas coisas; e a natureza colocou véus demasiado espessos, diante dos nossos olhos, para que possamos enxergar alguma coisa.

ARGAN
Na sua opinião, os médicos não sabem nada?

BERALDO
Sabem grande quantidade de humanidades, sabem falar em belo latim, sabem batizar em grego todas as doenças, defini-las e classificá-las; mas, quando se trata de curar não sabem nada de nada.

ARGAN
Mas pelo menos vamos convir: nessa matéria, os médicos sabem mais que os outros.

BERALDO
Sabem o que eu já disse e que não cura grande coisa; e toda a excelência de sua arte e uma pomposa parlapatice, um especioso dialeto, a oferecer palavras como razões e promessas como efeitos.

ARGAN
Mas, meu irmão: há pessoas tão sensatas e hábeis quanto você, e essas pessoas, quando adoecem, chamam médicos.

BERALDO
Aí está uma marca da fraqueza humana, e não uma verdade da arte médica.

ARGAN
Mas os médicos certamente crêem na verdade de sua arte. Pois se servem dela para si mesmos.

BERALDO
É que há entre eles os que estão, eles próprios, atolados no erro popular, de onde tiram proveito: e outros que aproveitam sem acreditar no erro. Veja o Doutor Purgon, por exemplo, homem sem a menor finura: é médico, da cabeça aos pés; um homem que crê nas suas regras mais do que em todas as demonstrações matemáticas, e julgaria crime examiná-las: não vê nada de obscuro na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil: e, com uma impetuosidade de prevenção, uma confiança cega, uma total brutalidade de senso comum e de razão, sai por aí a dar lavagens e sangrias! Não devemos querer mal a ele por tudo quanto deseja fazer por você: é com a melhor boa-fé do mundo que irá mandá-lo para o outro mundo. Quando o matar, terá feito com você o que fez com a mulher e os filhos e o que acabará fazendo com ele mesmo.

ARGAN
Você tem é implicância com ele! Mas vamos ao fato: que devemos fazer quando adoecemos?

BERALDO
Nada.

ARGAN
Nada?

BERALDO
Nada. Nada de ficar em repouso. Quando deixamos agir a natureza, ela se safa docemente da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência que estragam tudo; e quase todos os homens morrem dos seus remédios, não de suas doenças.

ARGAN
Mas é preciso concordar, meu irmão: pode-se ajudar a natureza por certos meios.

BERALDO
Santo Deus! Estas são idéias que gostamos de cultivar; em todos os tempos, surgem entre os homens belas fantasias em que acabamos acreditando, porque é agradável imaginá-las verdadeiras. Quando um médico fala de ajudar, de socorrer, de aliviar, de arrancar da natureza o que a aflige e de lhe dar o que lhe falta, de restabelecê-la no pleno gozo de suas funções, quando fala de corrigir o sangue, de temperar as entranhas e o cérebro, de esvaziar as glândulas, de sossegar o peito, de consertar o fígado, de fortificar o coração, de restabelecer e conservar o calor natural, e de ter segredos para prolongar a vida, está falando justamente do romance da medicina. Mas quando se vai à verdade da experiência, não se encontra nada disto: tudo é como os belos sonhos, que ao despertar nos deixam apenas a tristeza de ter acreditado neles.

ARGAN
Muito bem! Toda a ciência do mundo está guardada na sua cabeça! E você sabe mais que todos os grandes médicos do século!

BERALDO
Nos discursos e na ação, são pessoas diferentes esses seus grandes médicos: quando falam, são os mais hábeis do mundo; quando agem, são os mais ignorantes dos homens.

ARGAN
Ah! Pelo que vejo, você é um grande doutor, e eu gostaria que aqui estivesse algum desses senhores, para revidar seus raciocínios e baixar o seu topete.

BERALDO
Não me atribuo a tarefa de combater a medicina, meu irmão; cada um corra o risco de crer no que quiser. O que eu digo é entre nós; e eu gostaria de levá-lo, para divertir-se sobre o assunto, a ver alguma das comédias de Molière.

ARGAN
Aí está um bom impertinente, esse Molière, com suas comédias! E não deixa de ser um gaiato, quando zomba de gente honesta como os médicos!

BERALDO
Não é dos médicos que ele zomba: é do ridículo da medicina.

ARGAN
Fica-lhe muito bem meter-se a controlar a medicina! Aí está um belo joão-ninguém, a zombar de consultas e receitas, a atacar a corporação dos médicos, a exibir no teatro pessoas verdadeiras como os doutores!

BERALDO
Que é que você quer que ele exiba? Todas as profissões? Aí se exibem também todos os dias os príncipes e os reis, gente tão decente quanto os médicos.

ARGAN
Com mil demônios! Se eu fosse médico, me vingaria de sua impertinência! E quando adoecer, deixem morrer sem socorro esse senhor Molière! Eu o deixaria falando sozinho, não lhe receitaria a menor sangria, o menor clister! E lhe diria: morra, morra! Isto te ensinará a zombar da Faculdade!

BERALDO
Que cólera contra ele!

ARGAN
Estou com raiva, sim! É um tolo! E se os médicos têm juízo, farão o que eu digo!

BERALDO
Terá mais juízo do que os seus médicos, porque não lhes pedirá socorro.

ARGAN
Pior para ele, se não usa remédios.

BERALDO
Para isto tem suas razões; e sustenta que só os robustos e vigorosos podem fazê-lo, suportando os remédios e ao mesmo tempo a doença; quanto a ele, diz que só tem forças para carregar seu próprio mal.

ARGAN
Que razões tolas! Chega de falar desse homem: isto me esquenta a bílis e me faz piorar.

BERALDO
Para mudar de assunto, quero dizer-lhe: você não deve mandar sua filha para um convento pelo fato de ela mostrar suas pequenas repugnâncias. Para a escolha de um genro, não se deve seguir cegamente a paixão que o arrebata. Neste assunto, deve-se procurar atender um pouco às inclinações da jovem. Trata-se de uma escolha para toda a vida, e dela depende a felicidade do casamento.

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A peça pode ser baixada, em PDF, neste link.

Honolulu, 13 de Janeiro de 2018 (conto)

Naquela manhã de sábado, William e Lindsay ainda dormiam em seus respectivos quartos, quando George C. Morgado, o pai, lhes bateu violentamente à porta:

— Bill! Levanta! Rápido! — e enquanto esmurrava a porta da filha: — Acorda, Lin! Vamos!

O homem estava tão agitado e seus gritos foram tão estridentes que as crianças, muito assustadas, deixaram a cama de um pulo:

— Que foi, papai? O que está acontecendo?

— Venham! — disse, arrastando-os pelas mãos.

— Calma, pai! Tá me machucando… — resmungou a menina, que vestia apenas uma camiseta enorme que lhe atingia os joelhos.

O pai, de olhos esbugalhados, a respiração opressa, não lhes fez caso: limitou-se a conduzi-los escada abaixo até a sala. Na cozinha, Martha, a mãe, enchia um engradado plástico com várias garrafas de água mineral, sacolas de pão, caixas de cereal, embalagens de comida congelada e demais mantimentos a esse modo. William não gostou nada de ver aquela agitação:

— Ah, não! Eu não vou acampar hoje! Tenho aula de surfe à tarde.

A mãe virou-se instantaneamente para ele: seus movimentos e sua agitação eram de puro frenesi.

— Pro porão! Pro porão! — gritou ela, fitando-os com uma expressão perplexa, insana.

Lindsay começou a chorar:

— Não fui eu! Não fui eu! Foi o Bill — protestou, sem saber do que falava, mas já prenunciando um castigo inédito qualquer.

Comovida, a mãe largou o engradado sobre a mesa e a pegou no colo:

— Calma, meu bem! Nós vamos sobreviver — retrucou, sem ter apreendido senão o choro da menina.

— Rápido, Martha! — berrou o pai, colocando uma mochila às costas. — Leve-a para o porão! Eu pego o engradado.

William assistia a tudo boquiaberto:

— O que está acontecendo com vocês dois? Alguém por acaso vem prender a gente?

Não responderam. Sustentando a menina no braço direito, a mãe o segurou com a outra mão, correndo em seguida até a porta do porão, onde se meteu escada abaixo arrastando o menino pelos degraus.

— Ai, mãe!

O pai veio logo atrás com o engradado, fechando atrás de si a porta, que era de metal e tinha uma tranca quádrupla por dentro. Lindsay soluçava.

— Calma, meu bem. Nós vamos sobreviver.

Martha esticou um colchonete no piso e se sentou nele, agarrada à filha. O menino não quis acompanhá-las.

— Vocês não vão explicar nada?

Nervosíssimo, George caminhava de um lado para o outro do pequeno cômodo, o celular em punho, o rosto iluminado pela tela brilhante.

— George, o que eles dizem? — perguntou Martha.

O marido estacou:

— A mesma coisa: “não é um exercício”.

— For God’s sake! — exclamou o garoto. — Do que vocês estão falando?!

O pai o fitou intensamente e pareceu meditar por alguns segundos. Por fim, tomou-o pelo braço e o levou até o lado oposto do porão. Então abaixou-se, encarando o filho:

— Bill, você já é praticamente um rapaz, vai completar doze anos no próximo mês. Eu preciso que você tenha coragem, porque vou te contar o que é, ok?

— Ok.

— Precisa agir como um homem. Entende?

O menino gostou de ser chamado de homem:

— Claro, papai — respondeu, o peito estufado.

George engoliu em seco:

— Veja a mensagem que o governo do Estado do Havaí nos enviou — e lhe indicou a tela do celular: “AMEAÇA DE MÍSSIL BALÍSTICO CHEGA AO HAVAÍ. PROCURE ABRIGO IMEDIATO. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO”.

— Não entendo, papai — tornou o menino, franzindo o cenho. — O que isso significa?

— Um ataque… — começou o pai, quase gritando, mas refreou-se. E então, olhando a esposa e a filha de esguelha, sussurrou: — Um ataque nuclear. A Coréia do Norte disparou mísseis contra nós.

O menino arregalou os grandes olhos azuis, fitou o pai, ensaiou uma expressão heróica de adulto e, de lábios trêmulos, perguntou:

— Não é… um trote? Pode ser uma pegadinha.

— Não, Bill. Os canais de TV e o rádio confirmaram a informação.

Essa notícia foi grave demais para aquele adulto recente — e o menino, pois, caiu em prantos.

— Não! Não! Não quero morrer! — finalmente gritou e, ato seguido, correu na direção do colchonete, atirando-se nos braços da mãe.

— Minhas crianças! Minhas crianças! — choramingava ela, afagando-os.

O pai sacudiu a cabeça, arrependido, e logo retomou sua peregrinação pelo porão, o celular em punho, o rosto pálido e iluminado como o de um vampiro à luz do luar. No WhatsApp, os parentes e amigos trocavam mensagens desesperadas, indagando uns aos outros se já estavam todos prontos para o impacto. Michael, pai de George, enviara uma mensagem amorosa, despendido-se do filho e afirmando que havia sido uma honra ter tido uma família tão liberal, tão progressista, tão inteligente, tão unida em prol dos mesmos ideais. Seu irmão, Michael Junior, ainda conseguia ter algum senso de humor em meio ao pânico geral: “Pelo menos não encontraremos mais republicanos lá no céu — se é que existe um céu”.

— Imbecil — murmurou George para si mesmo.

Enquanto continuava lendo essas mensagens, a esposa e os filhos pranteavam a morte iminente. Fitando-os com ternura, George pensou que havia chegado a hora das despedidas: aquele porão não fora construído para resistir a uma desgraça dessa escala. Quando, a passos lentos, começava a se dirigir até eles, veio o estrondo:

— PAM! PAM! PAM! PAM!

Martha e as crianças, em uníssono, gritaram histericamente. George quase descomeu o coração de tanto susto. Alguém batia na porta metálica do porão:

— George! Você tá aí? George!

Acreditando tratar-se de um parente ou de um amigo a buscar abrigo, George galgou rapidamente a escada de dois em dois degraus. E abriu a porta: era Tom, o jardineiro.

— Oi, George. O que você está fazendo trancado aí dentro? Quer que eu volte depois?

Estranhando toda aquela calma, perguntou de rebate:

— Tom, você não está sabendo de nada?! O que veio fazer aqui? E sua família?

O velho sorriu:

— Eu vim pegar o cortador de grama. Hoje é dia, né.

— Mas… e sua família?

— Estão bem, graças a Deus. Obrigado por perguntar. Quer que eu volte depois?

— Tom, a Coréia do Norte está nos atacando! Um míssil nuclear pode nos atingir a qualquer instante. Venha pra dentro! — e tentou puxar o velho pelo braço.

Tom se desvencilhou:

— Calma, George. Não vai acontecer nada. É uma bobagem.

— Mas o governo emitiu o alerta! Não é brincadeira!

— Ah, o governo… — suspirou o outro. — E você ainda acredita no governo? — e deu uma risadinha. — Vocês democratas são engraçados: se o Trump faz alguma coisa boa real, de verdade, vocês não acreditam. Se o governador democrata do Havaí diz que estamos sendo atacados pelo… como chama? King Kong-un?

— Kim Jong-un.

— Mesma coisa — e pigarreou. — Enfim, só porque o governo daqui é democrata vocês dão crédito pra ele. Uma bobagem.

George mal podia acreditar no estado de negação em que se encontrava mergulhado o velho jardineiro: estaria caduco?

— Tom, fique aqui com a gente. Ou então corra pra casa. Esqueça nosso jardim.

O velho voltou a rir:

— Sabe, George. Eu sou casado com uma nativa havaiana. Mas já fui casado antes, lá no Texas. Um dia, descobri que essa minha primeira mulher tinha um caso com um safado que morava a uma milha da minha casa. Peguei meu Colt 1911 e fui atrás do sujeito. Ele vivia nas aforas da cidade, já no meio do mato. Quando eu já estava dando a volta na casa, para surpreendê-lo pelos fundos, ouvi disparos de fuzil. Quase me atirei ao chão de tanto susto.

— Mas o que isso tem a… — começou George, aflito.

— Calma — atalhou-o o velho jardineiro, sorrindo. — Enfim… quando eu já ia me jogar ao chão, vi o sujeitinho treinando tiro ao alvo no meio da mata que tinha atrás da casa dele. O desgraçado tinha um fuzil AR-15! Sabe o que eu fiz?

— Hum.

— Meti o rabo entre as pernas, pedi o divórcio e me mudei para o Havaí: para não passar vergonha. E aí tive a sorte de conhecer a Mary.

— Pelo amor de Deus, Tom! O que você tá tentando me dizer, homem?

— Você viu o que os jornais disseram sobre o Trump no dia 3 de Janeiro? Disseram que, na noite anterior, ele havia respondido às ameaças do King Kong na internet.

— Kim Jong!

— Então! Foi o que eu disse! — e sorriu, concordante. — Enfim, ele respondeu às ameaças do coreano na internet, dizendo que o botão dele, Trump, o botão de disparar as bombas atômicas, é muito maior que o botão do ditadorzinho comunista. E que além disso é um botão que funciona! — e colocou a mão no ombro do interlocutor. — Olha, George, quando eu morava no Texas, eu era um cara bem doido: mas não era idiota! Esses tiranos podem não acreditar na existência das almas, mas acreditam na existência dos corpos e na perpetuação da sua própria dinastia, da sua descendência. Um ataque americano transformaria a Coréia do Norte num deserto. Ficaria pior que Cartago, faltando apenas que alguém lhe despejasse toneladas de sal. É óbvio que o King Kong sabe disso tão bem quanto eu.

Martha surgiu no topo da escada bufando, o pesado cortador de grama entre os braços:

— Pode ir cortar, Tom — disse, entregando-lhe a geringonça.

— Ah, obriga….

Mas, sem terminar de ouvi-lo, Martha apenas o empurrou para fora, fechando com estrondo a porta do porão:

— Você está maluco, George?! — rosnou ela, o dedo indicador em riste. — Quer passar os últimos minutos de nossas vidas conversando com um republicano que votou no Trump? É por culpa dessa gente que estamos sendo atacados.

A família, pois, permaneceu trancada no porão por mais meia hora, ao fim da qual o governo local se pronunciou confessando que havia ocorrido um erro da parte de um funcionário da Agência de Gestão de Emergência do Havaí: não havia nenhuma ameaça real. Quando voltaram à cozinha, viram pela janela que Tom ainda cortava tranquilamente a grama do jardim traseiro, enquanto, em meio ao rugido da máquina, cantarolava uma incompreensível canção country de amor e morte.

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Na Wikipédia: 2018 Hawaii false missile alert.

O rei da lua

Este é o Rei da Lua, mas poderia ser Kant ou Descartes.

Hilda Hilst: “Que besteira, meu Deus!”

Em 1998, pouco antes de me mudar para a Casa do Sol, a revista Bundas — lançada pelo Ziraldo no ano seguinte em oposição paródica à revista Caras — enviou um jornalista para entrevistar Hilda Hilst. Nessa entrevista, como é de praxe entre a nossa intelligentsia, foi-lhe perguntado algo sobre sexo e ela respondeu que já não atribuía tanta importância ao tema, tendo inclusive abraçado a castidade desde que completara 50 anos. Não me recordo do conteúdo exato da matéria publicada, mas me lembro bem do exemplo dado por ela para ilustrar esse desinteresse recente: certa feita, um amigo-secretário lhe pediu para usar seu banheiro privado, uma vez que o chuveiro do banheiro de hóspedes estava queimado. Minutos depois, enquanto ela se dirigia para o quarto, esse amigo surgiu à sua frente, no corredor, completamente nu, distraído, enxugando os cabelos com a toalha. Ela então olhou para o pau dele e… caiu na gargalhada. Ele, que não a havia visto, ficou deveras encabulado com aquela reação:

— O que é que foi, Hilda?

Ela apontou para o pau dele e, ainda às gargalhadas, quase sem fôlego, comentou:

— Mas é por isso?! É por causa dessa coisa que tanta gente chora pelos cantos, que tanta gente se mata? Que besteira, meu Deus!

Eu sei que amigo era esse, mas, infelizmente, a matéria foi publicada apenas em 1999, quando ele já havia se mudado da casa, e, claro, a coisa toda sobrou para mim, o novo “amigo secretário”. Durante pelo menos dois anos tive de ouvir:

— Yuri, o que a Hilda viu de tão engraçado e ridículo no seu pau?

— Não era o meu, cacete!!

— Yuri, é verdade que seu pau fez a Hilda desistir para sempre do sexo?

— Não era o meu, porra!

O lema da revista Bundas era: “Quem coloca a bunda em Caras não coloca a cara na Bundas”. Mas, caramba, precisavam colocar um pau? (Não era o meu, caralho.)

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