palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Tag: Literatura Page 19 of 28

A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói (excerto)

Liev Tolstói

« Ivan Ilitch via que estava morrendo e sentia-se constantemente desesperado. No fundo da alma sabia bem que estava morrendo; mas não só não conseguia habituar-se a essa idéia, como não a compreendia mesmo — era incapaz de compreendê-la.

« O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kieseweter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal — encerrava um raciocínio que lhe parecia exato em se tratando de Caio, mas não da sua própria pessoa. Caio era um homem em geral e devia morrer. Ele, porém, não era Caio, não era um homem em geral; era um homem à parte, inteiramente à parte dos outros seres: ele era Vânia [diminutivo de Ivan], com sua mamãe e seu papai, com Mítia e Volódia, com seus brinquedos, com sua pajem, com o cocheiro, depois com Kátenka, com todas as alegrias, todas as tristezas, todos os entusiasmos da infância, da adolescência, da juventude. Acaso conhecia Caio o cheiro daquela bola de couro listrada de que Vânia tanto gostava? Beijava Caio a mão de sua mãe como Vânia? Era para Caio que a saia de seda da mãe de Vânia fazia o seu doce frufru? Fora Caio quem protestara, na escola, por causa dos pasteizinhos? Tinha ele amado como Vânia?

« Seria Caio capaz de presidir, como ele, uma audiência?

« Caio é de fato mortal e é justo que morra. Mas eu, Vânia, Ivan Ilitch, com todas as minhas idéias, com todos os meus sentimentos — isso é coisa inteiramente diversa. E é impossível que eu tenha que morrer. Seria por demais horrível.

« Assim sentia ele.

« "Se eu tivesse que morrer como Caio, haveria de sabê-lo muito bem, minha intuição haveria de dizer-mo. Nunca, porém, me disse nada de semelhante. Eu e meus amigos compreendemos perfeitamente que somos muito diferentes de Caio. E eis que agora… É impossível e, entretanto, assim é. Como? Como compreender isso?"

« Não podia compreendê-lo e se esforçava por enxotar para longe de si essa idéia, como falsa, anormal, doentia e por substituí-la por outros pensamentos normais e sadios. Mas aquela idéia, ou melhor, aquela realidade, voltava e se erguia de novo diante dele.

« E para afastá-la chamava a si outras idéias, na esperança de nelas encontrar apoio. Tentava recorrer àquele estado de espírito que outrora ocultava aos seus olhos a idéia da morte. Mas coisa estranha! Tudo o que antes ocultava e destruía o sentimento da morte, agora não mais tinha esse poder. Ultimamente, Ivan Ilitch ocupava-se, a maior parte do tempo, tentando restabelecer esse estado de espírito que lhe dissimulava a morte. Ora dizia a si próprio: "Vou dedicar-me ao meu serviço. Antes, ele representava a minha vida". E ia para o tribunal, enxotando para longe dúvidas e hesitações. Conversava com os colegas e sentava-se, percorrendo a assistência com um olhar pensativo e distraído, segundo antigo hábito, e apoiando as duas mãos emagrecidas sobre os braços de sua poltrona de carvalho. Depois, como de costume, inclinava-se para o seu assessor, trocava com ele algumas reflexões em voz baixa, abria os autos e, bruscamente, erguendo os olhos e reaprumando-se na cadeira, pronunciava certas palavras, dando início à audiência. Mas, de súbito, a dor do lado, sem se preocupar com o processo em curso, começava a sua ação, surda, obstinada. Ivan Ilitch esforçava-se por desviar o pensamento dela, mas a maldita continuava a sua obra, chegava, postava-se diante dele e o olhava. Ivan Ilitch sentia-se paralisado, seus olhos se apagavam e ele indagava de novo: "Será possível que seja ela a única verdade?" Seus colegas, seus subordinados viam com espanto e tristeza que ele, um juiz tão brilhante, tão fino, se atrapalhava, cometia erros. Reaprumava-se, tentava dominar-se, conduzia mal ou bem a audiência até o fim e voltava para casa com a dolorosa sensação de que suas funções de magistrado não podiam ocultar-lhe o que desejaria não ver, que seu serviço não podia livrá-lo da presença dela. E o pior é que ela o desviava de seu trabalho não para que fizesse alguma coisa, mas só para que a olhasse direito nos olhos e sofresse de uma forma inexprimível, sem fazer absolutamente nada. Em seus esforços por fugir a esse estado, Ivan Ilitch procurava outras consolações, outros tapumes; e esses tapumes surgiam a um apelo seu e por um breve momento pareciam protegê-lo; mas quase que imediatamente após, sem desaparecer, se tornavam transparentes, como se ela os atravessasse, e nada conseguia ocultá-la.»

________

A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói.

Thomas Mann: o artista, a beleza e o abismo

Thomas Mann

« Lá estava sentado o mestre, o artista honrado, o autor do Miserável, que abdicara de maneira tão exemplarmente pura ao ciganismo e às profundezas turvas; que negara sua simpatia ao abismo e rechaçara o objeto, aquele que se elevara; dominador de toda a sua sabedoria e emancipado de toda ironia, habituado às obrigações que impunha a confiança em massa, ele, cuja fama oficialmente notabilizara seu nome e cujo estilo era dado como base para a educação dos rapazes – ali sentava, suas pálpebras estavam fechadas, só de vez em quando aparecia, por baixo e de lado para logo se esconder de novo, um irônico e desolado olhar, e seus lábios frouxos, avivados cosmeticamente, formavam palavras soltas daquilo que seu cérebro, meio dormente, produzia em estranha lógica de sonho.

« Porque a beleza, Fédon – tome bem nota disso – só a beleza é divina e visível ao mesmo tempo, e assim é também o caminho do sensual, é o caminho do artista para o espírito, pequeno Fédon. Mas crê você, meu querido, que aquele para quem o caminho ao espiritual passa pelos sentidos porventura possa alcançar a sabedoria e a dignidade? Ou acredita você (deixo-lhe a decisão) que este seja um caminho perigoso-encantador, na verdade um caminho errado e pecaminoso, que leva necessariamente à confusão? Pois deve saber que nós, artistas, não podemos seguir o caminho da beleza sem que Eros se associe e se arvore em guia; sim, sejamos heróis e honestos guerreiros a nosso modo, não obstante seremos como mulheres. A paixão é nossa elevação e nosso anseio deve continuar a ser o amor – isto é nosso prazer e nossa vergonha. Vê você, agora, que nós, poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que forçosamente nos perdemos, forçosamente continuamos devassos e aventureiros de emoções? A glorificação de nosso estilo é mentira e idiotice; nossa fama e posição de honra, uma farsa; a confiança do povo em nós, altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte é um arrojado e proibido empreendimento. Pois como poderia servir de educador aquele a quem é inata uma tendência incorrigível e natural para o abismo? Bem que gostaríamos de negá-lo e alcançar dignidade, mas para que lado quer que nos voltemos, ele nos atrai.

« Assim declinamos do reconhecimento solúvel, pois o reconhecimento, Fédon, não tem dignidade nem severidade; ele é sábio, compreensível, perdoa sem pose nem forma; ele tem simpatia para com o abismo, ele é o abismo. A este, pois, rejeitamos com determinação e daí em diante nossa aspiração é exclusivamente à beleza, isto quer dizer, à simplicidade, à grandeza e à nova severidade da segunda ingenuidade e da forma.

« Mas forma e ingenuidade, Fédon, levam à embriaguez e à cobiça, levam o nobre talvez à medonha injúria do sentimento, que sua própria bela severidade repudia como infame, levam ao abismo — também elas levam ao abismo. A nós, poetas, digo, levam para lá, pois nós não conseguimos elevar-nos, só conseguimos digressionar. E agora vou embora, Fédon, fique você aqui; e só quando não mais me vir, então vá também você.»

______

A Morte em Veneza, de Thomas Mann.

Sêneca: Da Brevidade da Vida (excerto)

 Sêneca

« Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única coisa em que a avareza é justificada.

« Por isso, agrada me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: "Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres prematuramente."

« Qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejais tudo como se fôsseis imortais.

« Ouvirás muitos dizerem: "Aos cinqüenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de meus encargos." E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve mais para nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o qüinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!»

_______

Da Brevidade da Vida, de Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C. — 65 d.C.).

C. S. Lewis e o divórcio entre o Céu e o Inferno

C.S. Lewis

« O Sr. William Blake escreveu o livro O Matrimônio do Céu e do Inferno. Se escrevi sobre o abismo entre os dois, isto não é porque me julgo um antagonista à altura de tão grande gênio, nem mesmo porque esteja absolutamente certo de ter entendido o que ele pretendia; mas, num sentido ou outro a tentativa de realizar essa união é perene. Essa tentativa tem como base a crença de que a realidade jamais se apresenta a nós num sentido absoluto, havendo sempre uma opção inevitável a ser feita; mas que, com habilidade e paciência e (acima de tudo) tempo suficiente, algum meio de abranger ambas as alternativa pode ser sempre encontrado. Que o simples desenvolvimento, ajuste ou refinamento, irá de alguma forma transformar o mal em bem, sem que sejamos chamados para uma rejeição final e total de qualquer coisa que desejemos reter.

« Acredito que esta crença represente um erro desastroso. Não é possível levar conosco toda a nossa bagagem em todas as jornadas. Em uma dessas viagens até mesmo a sua mão direita ou o seu olho direito podem estar entre as coisas que precisará deixar para trás. Não estamos vivendo em um mundo onde todas as estradas são raios de um círculo e onde todas, se seguidas suficientemente, acabarão por se aproximar gradualmente e terminar se encontrando no centro. Pelo contrário, estamos num mundo em que cada estrada, depois de alguns quilômetros, se divide em duas, e cada uma destas mais uma vez em duas, e em cada encruzilhada você tem de tomar uma decisão. Mesmo no nível biológico, a vida não é como um rio mas como uma árvore. Ela não se move na direção da unidade, mas se distancia dela e as criaturas se afastam cada vez mais das outras, à medida que se aperfeiçoam. O bem, quando amadurece, se mostra cada vez mais diferente, não só do mal, mas de qualquer outro bem.

« Não julgo que todos os que escolhem as estradas erradas perecem; mas o seu resgate consiste em serem colocados de volta na estrada certa. Uma soma errada pode ser corrigida, mas somente fazendo um retrospecto até achar o erro e continuando a partir desse ponto, e não apenas “avançando”. O mal pode ser desfeito, mas não pode “transformar-se” em bem. O tempo não pode curá-lo. O encanto precisa ser quebrado, pouco a pouco, “com murmúrios de trás para diante, a fim de obter a separação” — caso contrário não dá resultado. Continua prevalecendo a necessidade de alternativa. Se insistimos em conservar o Inferno (ou mesmo a terra) não veremos o Céu. Acredito que qualquer homem que chegue ao Céu descobrirá que aquilo que abandonou (mesmo arrancando o seu olho direito) não ficou perdido: que o âmago daquilo que estava realmente buscando, mesmo em seus mais depravados desejos, continua ali, além de qualquer expectativa, esperando por ele nos “Países Altos”. Nesse sentido, os que tiverem completado a jornada (e somente estes) poderão verdadeiramente dizer que o bem é tudo e que o Céu está em toda parte. Mas nós, deste lado da estrada, não devemos tentar antecipar essa visão retrospectiva. Se fizermos isso, é provável que adotemos o falso e desastroso conceito de que tudo é bom e qualquer lugar é o Céu.

« E a terra? você pode perguntar. A terra, penso eu, não irá ser considerada por ninguém, no final, como sendo um lugar muito definido. Penso que se for escolhida a terra em vez do Céu, ela irá mostrar ter sido, todo o tempo, apenas uma região no Inferno: e a terra, se colocada em sujeição ao Céu, terá sido desde o início uma parte do próprio Céu.

« Só quero dizer mais uma ou duas coisas sobre este livro. Primeiro, devo reconhecer minha dívida de gratidão a um escritor cujo nome esqueci. Li um artigo seu numa revista americana chamada Scientifiction (Ficção Científica). A qualidade do meu material celeste, que não se curva nem quebra, foi-me sugerida por ele, embora tivesse feito uso da fantasia para um propósito diferente e muito engenhoso. O seu herói viajou para o passado: e ali, muito adequadamente, encontrou pingos de chuva que o feriam como balas e sanduíches que não se podiam comer — porque, naturalmente, nada no passado pode ser alterado. Com menos originalidade, mas (espero) com igual propriedade, transferi esta idéia para a eternidade. Se o autor dessa história porventura ler estas linhas peço que aceite minha gratidão. A segunda coisa é esta. Peço aos leitores que se lembrem tratar-se de uma fantasia. Ela tem naturalmente, ou foi essa a minha intenção, uma moral. Mas as condições além da morte não passam de uma suposição imaginaria: não são sequer um palpite ou uma especulação quanto ao que pode realmente aguardar-nos. A última coisa que desejo seria despertar curiosidade fatual quanto aos detalhes da vida após-morte.»

_______

O Grande Abismo (prefácio), de C.S. Lewis.

Este foi o livro que o poeta Bruno Tolentino me indicou após conversarmos longamente sobre Swedenborg, O Livro de Urântia, vida após a morte, projeções astrais, Salvação e quejandos. O título em inglês soa ainda mais antagônico ao livro de William Blake: “The Great Divorce”.

A Loucura vangloria-se pela criação da mulher (via Erasmo de Rotterdam)

Erasmo de Rotterdam

« Mas, já é tempo de que, seguindo o exemplo de Homero, passemos, alternadamente, dos habitantes do céu aos da terra, onde nada se descobre de feliz e de alegre que não seja obra minha.

« Primeiro, vós bem vedes com que providência a natureza, esta mãe produtora do gênero humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura. Segundo a definição dos estóicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda não satisfeito com isso, uniu Júpiter à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Cólera, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a Concupiscência, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade mais madura. Quanto ao que pode a razão contra esses dois tiranos, demonstra-o bem a conduta normal dos homens. Prescreve os deveres da honestidade, grita contra os vícios a ponto de ficar rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os vícios riem-se de sua rainha, gritam ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até que a pobre soberana, não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os seus rivais.

« De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a administração dos negócios, era justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua pequeníssima dose de razão, mas, querendo Júpiter prevenir melhor esse inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás, costuma fazer quanto ao resto. Dei-lhe uma opinião verdadeiramente digna de mim: — Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do mesmo.

« Quando Plutão pareceu hesitar se devia incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou no dos brutos, não quis com isso significar que a mulher fosse um verdadeiro bicho, mas pretendeu, ao contrário, exprimir com essa dúvida a imensa dose de loucura do querido animal. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia, só fará mostrar-se duplamente louca, procedendo mais ou menos como quem tentasse untar um boi, malgrado seu, com o mesmo óleo com que costumam ungir-se os atletas. Acreditai-me, pois, que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da virtude, ou afeta uma falsa inclinação, ou não faz senão multiplicar os próprios defeitos. E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.

« Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou a Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me o fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens.

« Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem a todas as outras coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania mesmo sobre os mais bárbaros tiranos. Sabereis de que provém aquele feio aspecto, aquela pele híspida, aquela barba cerrada, que muitas vezes fazem parecer velho um homem que se ache ainda na flor dos anos? Eu vo-lo direi: provém do maldito vício da prudência, do qual são privadas as mulheres, que por isso conservam sempre a frescura da face, a sutileza da voz, a maciez da carne, parecendo não acabar nunca, para elas, a flor da juventude. Além disso, que outra preocupação têm as mulheres, a não ser a de proporcionar aos homens o maior prazer possível? Não será essa a única razão dos enfeites, do carmim, dos banhos, dos penteados, dos perfumes, das essências aromáticas, e tantos outros artifícios e modas sempre diferentes de vestir-se e disfarçar os defeitos, realçando a graça do rosto, dos olhos, da cor? Quereis prova mais evidente de que só a loucura constitui o ascendente das mulheres sobre os homens? Os homens tudo concedem às mulheres por causa da volúpia, e, por conseguinte, é só com a loucura que as mulheres agradam aos homens. Para confirmar ainda mais essa conclusão, basta refletir nas tolices que se dizem, nas loucuras que se fazem com as mulheres, quando se anseia por extinguir o fogo do amor.

« Já vos revelei, portanto, a fonte do primeiro e supremo prazer da vida. Concordo que alguns existam (sobretudo certos velhos mais bebedores que mulherengos) cujo supremo prazer seja a devassidão. Deixo indecisa a questão de saber se é possível um bom banquete sem mulheres. O que é certo é que mesa alguma nos pode agradar sem o condimento da loucura. E tanto isso é verdade que, quando nenhum dos convidados se julga maluco ou, pelo menos, não finge sê-lo, é pago um bobo, ou convidado um engraçado filante que, com suas piadas, suas brincadeiras, suas bobagens, expulse da mesa o silêncio e a melancolia.»

_____

Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam (1466-1536).

Harold Bloom e os livros que valem a pena ser lidos

 Harold Bloom

« Os motivos para ler, como para escrever, são muito diversos, e muitas vezes não claros mesmo para os leitores ou escritores mais autoconscientes. Talvez o motivo último para metáfora, ou para a escrita e leitura de uma linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, estar em outra parte. Nesta afirmação eu sigo Nietzsche, que nos advertia que aquilo para que conseguimos encontrar palavras já está morto em nosso coração, de modo que há sempre uma espécie de desprezo no ato de falar. Hamlet concorda com Nietzsche, e os dois talvez tenham estendido o desprezo ao ato de escrever. Mas não lemos para descarregar nossos corações, portanto não há desprezo no ato de ler. As tradições nos dizem que o eu livre e solitário escreve para vencer a mortalidade. Creio que o eu, em sua busca para ser livre e solitário, em última análise lê com um só objetivo: encarar a grandeza. Esse confronto mal disfarça o desejo de juntar-se à grandeza, que é a base da experiência estética outrora chamada de o Sublime: a busca de uma transcendência de limites. Nosso destino comum é a velhice, a doença, a morte, o esquecimento. Nossa esperança comum, tênue mas persistente, é alguma versão de sobrevivência.

« Encarar a grandeza quando lemos é um processo íntimo e dispendioso, e jamais esteve em grande voga crítica. Agora, mais que nunca, está fora de moda, quando a busca de liberdade e solidão é condenada como politicamente incorreta, egoísta e não adequada à nossa sociedade angustiada.»

(…)

« Que utilidade pode ter para um crítico individual, tão tardiamente na tradição, catalogar o Cânone ocidental como o vê? Mesmo nossas universidades de elite hoje estão inertes diante das continuadas levas de multiculturalistas. Ainda assim, ainda que nossas atuais modas prevaleçam para sempre, as escolhas canônicas de obras passadas e presentes têm seu próprio interesse e encanto, pois também elas fazem parte da continuada disputa que é a literatura. Todo mundo tem, ou deve ter, uma lista para uma ilha deserta, para o dia em que, fugindo de seus inimigos, seja lançado na praia, ou quando se afastar capengando, todas as guerras feitas, para passar o resto de seu tempo lendo tranqüilamente. Se eu pudesse ter um livro, seria Shakespeare completo; se dois, isso e a Bíblia. Três? Aí começam as complexidades. William Hazlitt, um dos poucos críticos definitivamente no Cânone, tem um esplêndido ensaio “Sobre a leitura de Velhos Livros”:

Não penso inteiramente o pior de um livro por ter sobrevivido ao autor uma ou duas gerações. Confio mais nos mortos que nos vivos. Os escritores contemporâneos podem em geral dividir-se em duas classes – nossos amigos e nossos inimigos. Dos primeiros, somos obrigados a pensar bem demais, e dos últimos estamos dispostos a pensar mal demais, receber muito prazer da folheada, ou julgar com justiça o mérito de uns e outros.

« Hazlitt manifesta uma cautela própria ao crítico numa era de crescente tardiedade. A superpopulação de livros (e autores), causada pela extensão e complexidade da história registrada do mundo, está no centro dos dilemas canônicos, hoje mais que nunca. “Que vou ler?” não é mais a questão, uma vez que tão poucos lêem hoje, na era da televisão e do cinema. A questão pragmática tornou-se: “Que não vou me dar o trabalho de ler?”»

(…)

« A ideologia desempenha um papel considerável na formação de um cânone literário se se quer insistir em que uma posição estética é em si uma ideologia, uma insistência comum a todos os seis ramos da Escola do Ressentimento: feministas, marxistas, lacanianos, neo-historicistas, desconstrucionistas, semióticos. Há, evidentemente, estética e estética, e os apóstolos que acreditam que o estudo literário deve ser uma franca cruzada pela transformação social obviamente manifestam uma estética diferente da minha versão pós-emersoniana de Pater e Wilde.»

(…)

« Por que, então, é a literatura tão vulnerável à investida de nossos idealistas sociais contemporâneos? Uma resposta parece ser a ilusão comum de que menos conhecimento e menos habilidade técnica são necessários para a produção ou compreensão da literatura de imaginação (como a chamávamos) que para outras artes.

« Se todos falássemos em notas musicais ou pinceladas, suponho que Stravinsky e Matisse estariam sujeitos aos riscos peculiares hoje sofridos pelos autores canônicos. Tentando ler muitas das obras apresentadas como alternativas do ressentimento ao Cânone, reflito que esses aspirantes devem acreditar que falaram prosa a vida inteira, ou então que suas sinceras paixões são já poemas, exigindo apenas uma pequena reescrita. Volto-me para minhas listas, esperando que os sobreviventes letrados encontrem entre si alguns autores e livros que ainda não encontraram, e colham as recompensas que só a literatura canônica oferece.»
_____

O Cânone Ocidental, de Harold Bloom.

Paul Johnson fala sobre criatividade e literatura

 Paul Johnson

« …o papel desempenhado pelas atividades. O castelo de cartas de Einstein era mais um exemplo de treinamento de caráter do que uma ajuda real ao pensamento criativo. Mas a maioria dos cientistas e muitos escritores têm sobre a mesa de trabalho apetrechos, bugigangas, jogos, quebra-cabeças, provavelmente por considerá-los úteis para o raciocínio. Não tenho dificuldade de concentração, e começo a escrever logo que sento à minha mesa (no cavalete ou na mesa de desenho), por isso não entendo com facilidade o raciocínio por trás desses apetrechos. Porém, em inúmeros casos, é evidente que a atividade espasmódica ou periódica ajuda o pensamento imaginativo. Assim, o fato de Dickens se levantar da mesa onde escrevia para fazer caretas diante de um espelho grande em seu estúdio não é, de forma alguma, algo incomum entre os escritores. Alguns deles desenvolvem tal resistência a escrever ou a continuar a escrever que é necessário recorrer a meios físicos para forçá-los a se concentrar. Certa ocasião, quando era editor, tive de trancar dois colaboradores em um sala vazia com uma máquina de escrever para que escrevessem ou terminassem um artigo, só permitindo que saíssem depois de concluído o trabalho. Mas muitos escritores não conseguem ter pensamentos criativos em uma sala de trabalho. Todos sabem que Wordsworth costumava compor seus versos enquanto caminhava ao ar livre, em torno do lago em Grasmere ou Rydal Water, ou descendo e subindo uma montanha. Ele memorizava as linhas que imaginava e só as colocava no papel quando voltava para casa. Às vezes, passavam-se vários dias, até semanas, para que ele colocasse no papel as palavras que tinha na cabeça. Não está claro se Wordsworth precisava caminhar para fazer poesia porque via coisas lá fora que poderia transformar em verso ou porque o simples movimento de caminhar estimulava seus pensamentos. Acredito na última opção, pois Wordsworth era, de alguma maneira, um homem distraído. Foi sua irmã Dorothy quem observou os trabalhos da natureza em detalhes surpreendentes e os anotou. Quando ambos estavam em Gowbarrow Bay, em Ullswater, quando os narcisos dançavam ao vento, foi Dorothy quem os observou e anotou em seu diário, transmitindo sua experiência visual ao irmão, que, algumas semanas mais tarde, compôs seu famoso poema. Sem Dorothy, o poema não existiria.

« No entanto, a experiência é a mãe, ou pelo menos uma das mães, da criatividade, e o que chamo de experiência é a combinação de observação e sentimento que leva a um momento criativo. Emily Dickinson não apenas observava as coisas na natureza (como Dorothy Wordsworth fazia); ela também se sentia forte, profunda ou perceptivelmente ligada a elas – e é isso que transforma seus pequenos poemas em algo de grande força e emoção. Os fortes sentimentos de Charlotte Brontë sobre sua vida, combinados a olhos e ouvidos perspicazes, a tornaram capaz de transformar a experiência, na primeira metade de Jane Eyre, em algo tão surpreendente em arte – um ato de criação raro, por sua beleza apaixonante, nos anais da literatura. Os escritores, em especial os romancistas, são extremamente criativos quando registram, embora transformados em ficção, suas experiências profundamente sentidas. Dickens sempre considerou David Copperfield seu melhor livro por esse motivo. Poder-se-ia dizer o mesmo sobre The Mill on the Floss, pois Maggie Tulliver é a jovem Mary Ann Evans, e tudo o que ela viveu e sentiu. Nesse romance maravilhoso, nas histórias de Scenes from Clerical Life, em Adam Bede e, até certo ponto, em Middlemarch, George Eliot escreve sobre coisas e pessoas que conheceu por intermédio da própria experiência direta e de seus sentimentos. Mais tarde, embora mais experiente como escritora, foi menos convincente. Para Daniel Deronda, seu romance sobre o problema judeu, e para Romola, passado na Florença renascentista, ela fez leituras cuidadosas, digeridas pela inteligência. Mas essas histórias não ganham vida do mesmo modo. Para o romancista, os livros não compensam a ausência do conhecimento direto e dos sentimentos. Flaubert escreveu Madame Bovary com emoção, a partir de suas últimas experiências com livros, e a diferença é clara. Bouvard et Pécuchet surgiu de uma biblioteca completa – natimorta. Quando vejo alguma romancista que conheço, sentada atrás de uma pilha de livros na sala de leitura da London Library, e tomando notas sem parar para seu próximo trabalho de ficção, digo com meus botões: “Ai, meu Deus!”

Page 19 of 28

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén