palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Rodrigo Gurgel apresenta seu livro “Muita Retórica – Pouca Literatura”

Palestra de Rodrigo Gurgel, o jurado “C” do Prêmio Jabuti, a respeito de seu livro Muita Retórica – Pouca Literatura. (O áudio está baixo até os primeiros 5 ou 6 minutos. Se não conseguir ouvi-lo desde o início, avance o vídeo até aí.)

Ebook é o presente deste Natal

De um artigo de Luís Antônio Giron na Revista Época:

Demorou, mas agora vai. O Brasil entra na era do livro digital com três anos de atraso. A chegada ao país dos e-readers como os americanos Kindle, da Amazon, e Nexus 7, do Google, iPad, da Apple, e do canadense Kobo, trazido pela Livraria Cultura, vai transformar rapidamente o mercado do livro. Não é preciso ser profeta para adivinhar o que está por vir, pois tudo já aconteceu nos mercados adiantados da América do Norte, Ásia e Europa. No entanto, o atraso no processo também tem suas vantagens. Vamos entrar na nova era em pleno período de compras de Natal com um acúmulo de conhecimentos. Podemos aprender com os erros e os acertos cometidos pelos outros.

Muitos brasileiros têm experimentado os efeitos da mudança. Os estudantes leem desde meados da década de 1990 livros pela internet pelos computadores convencionais, via sites como Gutenberg Project e Domínio Público. Agora poderão fazê-lo nos e-books e tablets com mais rapidez e conforto. Há cerca de 300 mil clientes moradores no Brasil cadastrados na Amazon e muitos deles compram e-books e possuem kindles, para não mencionar os milhares que carregam livros das lojas iBook e Amazon para seus tablets.

Continue a leitura aqui.

Passeata Contra o eBook

A Associação Nacional de Livrarias está mostrando que é tão inteligente e visionária quanto os organizadores e participantes da famigerada (e estúpida) Passeata Contra a Guitarra Elétrica, nos idos dos anos 60. Claro, não se trata de mera burrice, mas de covardia e esperteza do pior tipo. Sempre que empreendedores recorrem ao Estado para se defender da justa concorrência e, neste caso, da inovação, quem sai perdendo é o consumidor. Segundo afirma o Estadão:

Bicho-papão digital

Enquanto Amazon e Companhia das Letras fechavam contrato – o anúncio foi feito ontem -, a Associação Nacional de Livrarias, que representa as independentes, já se articulava para mandar carta em que expõe alguns receios com relação ao livro digital para Dilma Rousseff, Marta Suplicy e entidades do livro. Fará isso na próxima semana. Entre as sugestões, a de que a diferença de preço entre e-book e livro físico seja de até 30%. E no caso da editora que vende diretamente ao consumidor, que o desconto não exceda 5%.

Diz, com razão, o blog Revolução eBook:

O primeiro passo deveria ser, o quanto antes, adotar uma nova postura. É melhor encarar de frente a mudança tecnológica e se adaptar o mais rápido possível. Esse deveria ser o foco. Uma abordagem prática, para buscar soluções que não dependam dos outros, especialmente do governo. Sem pensar que o “novo” é sinônimo de “problema”. Há exemplos de outras associações de livreiros. que encararam o mercado digital com objetividade e procuraram se inserir de algum modo. Por que a ANL não se inspira na American Booksellers Association, que fez acordo com a Kobo, nos EUA, quase nos mesmos moldes que a Livraria Cultura, para inúmeras livrarias independentes? Ou, ainda, como fez a Australian Publishers Association, com o mesmo objetivo, na parceria com a The Copia?

Pessoalmente, só posso me sentir pessimista frente à possível reação do governo diante dessa proposta da Associação Nacional de Livrarias. O “Partido” já mostrou diversas vezes sua cara. Espero que ela, a proposta, se perca nas entranhas burocráticas de Brasília.

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Publicado no Digestivo Cultural.

Perdoando Deus — Clarice Lispector

“Perdoando Deus”, um conto de Clarice Lispector, do livro Felicidade clandestina, lido por Aracy Balabanian.

C. S. Lewis: “É o leitor instruído que pode ser enganado”

C. S. Lewis

A Fada não deu resposta alguma a isto, e a pressão constante do braço dela obrigou Mark, a não ser que estivesse preparado para lutar, a seguir com ela pelo corredor. A intimidade e autoridade do aperto era jocosamente ambíguo e ter-se-ia adaptado quase igualmente bem às relações entre polícia e preso, amante e amante, ama e criança. Mark sentiu que, se encontrassem alguém, pareceria um tolo.

Ela o levou para o seu próprio gabinete que era no segundo andar. A sala exterior estava cheia daquilo que ele já tinha aprendido a chamar Waips, moças da Polícia Institucional Auxiliar Feminina. Os homens desse serviço, embora muito mais numerosos, não se encontravam tantas vezes dentro de casa, mas sempre se viam Waips voando para cá e para lá, sempre que aparecia Miss Hardcastle. Longe de partilhar as características masculinas da sua chefe, eram (como dissera Feverstone uma vez) «femininas ao ponto de imbecilidade», pequenas e delgadas e penugentas e cheias de risos abafados.

Miss Hardcastle comportava-se com elas como se fosse um homem e se dirigia a elas em tons de galanteria meio jovial, meio feroz.

— Cocktails, Dolly — apregoou ela quando entraram na sala exterior. Quando chegaram ao gabinete interior, fez Mark sentar-se, mas ficou ela própria de pé, com as costas para o fogo e as pernas bem separadas. As bebidas foram trazidas e Dolly retirou-se, fechando a porta atrás dela. Mark tinha contado os seus agravos, resmungando, no caminho.
 
— Deixe disso, Studdock — disse Miss Hardcastle. — E faça o que fizer, não vá maçar o DA [Diretor-adjunto]. Já lhe disse que não precisa de se preocupar com toda essa gente pequena do terceiro andar, contanto que o tenha a ele do seu lado. Que presentemente tem. Mas não terá se continuar a ir até ele com queixas.

— Isso seria muito bom conselho, Miss Hardcastle — disse Mark —, se eu já tivesse o compromisso de aqui ficar. Mas não tenho. E por aquilo que já vi não gosto do local. Já quase decidi a ir para casa. Pensei apenas que era bom ter uma conversa com ele primeiro, para pôr tudo claro.

— Pôr as coisas a claro é a única que o DA não pode suportar — replicou Miss Hardcastle. — Não é assim que ele dirige este lugar. E lembre-se, ele sabe o que faz. Funciona, meu filho. Ainda não faz idéia alguma como funciona bem. Quanto a largar isto… você não é supersticioso, pois não? Eu sou, não penso que dê sorte deixar o NICE [Instituto Nacional de Experiências Coordenadas, uma organização de natureza totalitária]. Não precisa maçar a cabeça por causa de todos os Steeles e Cossers. Isso faz parte da sua aprendizagem. Neste momento fazem-no atravessar isso, mas, se agüentar, acaba por ficar por cima deles. Tudo o que tem de fazer é ficar quieto. Nenhum deles vai ficar aqui quando começarmos a andar.

— Foi essa a linha seguida por Cosser e Steele, justamente — disse Mark — , e não me pareceu que me sirva de muito quando chegar a hora.

— Sabe, Studdock — disse Miss Hardcastle —, tenho um fraco por si. E ainda bem que tenho. Porque se não tivesse, sentir-me-ia disposta a ficar ofendida com essa última observação.

— Eu não queria ser ofensivo — disse Mark. — Mas, que diabo, olhe a coisa do meu ponto de vista.

— Não serve, meu filho — disse Miss Hardcastle, sacudindo a cabeça. — Você conhece os fatos apenas o suficiente para que o seu ponto de vista valha seis pence. Ainda não compreendeu aquilo em que se meteu. Está sendo-lhe oferecida a oportunidade de chegar a algo muito maior do que um lugar no Governo. E só há duas alternativas, sabe. Ou se está dentro do NICE ou se está fora dele. E eu sei melhor do que você o que vai ser mais interessante.

— Eu compreendo isso — disse Mark. — Mas qualquer coisa é melhor do que estar nominalmente dentro e não ter nada que fazer. Dê-me um lugar real no Departamento de Sociologia e eu…

— Bolas! O departamento inteiro vai para a sucata. Tem de lá estar, no princípio, para efeitos de propaganda. Mas todos vão ser postos fora.

— Mas que garantia tenho eu de vir a ser um dos sucessores deles?

— Não vai ser. Eles não vão ter sucessores nenhuns. O trabalho real nada tem a ver com todos esses departamentos. O tipo de sociologia em que nós estamos interessados será feito pela minha gente, a polícia.

— Então onde é que eu entro?

— Se confiar em mim — disse a Fada, pousando o copo vazio e puxando um charuto — posso pô-lo em contato com um pedaço do seu trabalho real, aquilo para o que foi realmente trazido para cá, e já.

— Que é isso?

— Alcasan — disse Miss Hardcastle entre dentes. Tinha começado uma das suas intermináveis fumadelas fingidas. Depois, olhando de relance para Mark com um traço de desprezo. — Sabe de quem estou falando, não sabe?

— Quer dizer o radiologista, o homem que foi guilhotinado? — perguntou Mark que estava completamente desnorteado. A Fada acenou afirmativamente.

— Ele é para ser reabilitado — disse ela. — Gradualmente. Tenho todos os fatos no processo. Você começa com um pequeno artigo sossegado, sem pôr em causa a sua culpa, não logo de entrada, mas apenas insinuando que, é claro, ele era um membro do governo Quisling deles e havia um preconceito contra ele. Digamos que não se duvida que o veredito foi justo, mas que é inquietante compreender que ele teria quase com certeza sido o mesmo, ainda que ele estivesse inocente. Então, um dia ou dois depois, segue com um artigo de natureza completamente diferente. Estimativa popular do valor da sua obra. Pode obter os fatos, suficientes para esse tipo de artigo, numa tarde. Depois uma carta, bastante indignada, ao jornal que publicou o primeiro artigo, e indo muito mais longe. A execução foi um erro judiciário. Por essa altura…

— Mas que raio é a finalidade disso tudo?

— Estou lhe dizendo, Studdock. Alcasan é para ser reabilitado. Transformado num mártir. Uma perda irreparável para a raça humana.

— Mas para quê?

— Aí vai você outra vez! Resmunga por não lhe darem nada para fazer, e logo que eu sugiro um pedaço de trabalho autêntico, espera que lhe contem todo o plano de campanha antes de o fazer. Não faz sentido. Não é esse o caminho para se progredir aqui. A grande coisa é fazer o que nos dizem para fazer. Se realmente for mesmo bom, em breve compreenderá o que se passa. Mas tem de começar a fazer o trabalho. Você não parece perceber o que nós somos. Somos um exército.

— De qualquer maneira — disse Mark —, não sou um jornalista. Não vim para cá para escrever artigos de jornal. Tentei tornar isso claro para Feverstone logo de início.

— Quanto mais cedo deixar toda essa conversa sobre o que veio para cá fazer, tanto melhor fará carreira. Estou falando para o seu próprio bem, Studdock. Você é capaz de escrever. Essa é uma das coisas por que o querem aqui.

— Então vim para cá por causa de um mal-entendido — disse Mark. O elogio à sua vaidade literária, naquela altura da sua carreira, de forma alguma compensava a implicação de que a sua sociologia não tinha qualquer importância. — Não tenho intenção alguma de gastar a minha vida escrevendo artigos de jornal — disse ele. — E se tivesse, havia de querer saber um bom bocado mais sobre a política do NICE antes de me meter nisso.

— Não lhe disseram que é estritamente apolítico?

— Disseram-me tantas coisas que eu não sei se estou assentado na cabeça ou nos pés — disse Mark. — Mas não vejo como é que se vai começar uma manobra jornalística (que é mais ou menos aquilo em que a coisa consiste) sem ser de natureza política. São jornais da esquerda ou da direita que vão publicar toda essa porcaria a respeito de Alcasan?

— Ambos, doçura, ambos — disse Miss Hardcastle. — Será que não compreende nada? Pois não é absolutamente essencial manter uma esquerda feroz e uma feroz direita, ambas prontas a arrancar, e com terror uma da outra? É assim que fazemos as coisas. Qualquer oposição ao NICE é representada com uma falcatrua da esquerda nos jornais da direita e uma falcatrua da direita nos jornais da esquerda. Se for convenientemente feito, temos cada um dos lados oferecendo mais do que o outro em nosso apoio, para reputar as calúnias do inimigo. É claro que somos apolíticos. O poder autêntico sempre é.

— Não acredito que se possa fazer isso — disse Mark. — Não com os jornais que são lidos pelas pessoas instruídas.

— Isso mostra que ainda está no jardim de infância, queridinho — disse Miss Hardcastle. — Ainda não percebeu que é exatamente ao contrário.

— Que é que quer dizer?

— Ouça lá, meu tolo, é o leitor instruído que pode ser enganado. Todas as nossas dificuldades vêm dos outros. Quando é que encontrou um trabalhador que acredite nos jornais? Ele tem por garantido que todos eles são propaganda e passa por cima dos artigos de opinião. Ele compra o seu jornal pelos resultados do futebol e pelos pequenos parágrafos sobre moças que caem das janelas e cadáveres encontrados em apartamentos de Mayfair. Ele é nosso problema. Temos de o recondicionar. Mas o público instruído, as pessoas que lêem os semanários intelectuais, não precisam de recondicionamento. Já estão muito bem. Acreditarão em qualquer coisa.

— Como um dos da classe que menciona — disse Mark com um sorriso —, eu apenas não acredito nisso.

— Santo Deus! — disse a fada. — Onde estão os seus olhos? Olhe para aquilo com que os semanários têm conseguido sair-se bem! Olhe para o Weekly Question. Aí está um jornal para si. Quando apareceu o inglês básico, simplesmente como invenção de um professor de Cambridge, livre pensador, nada era muito bom para lhe chamarem; logo que foi adotado por um primeiro-ministro conservador tornou-se uma ameaça à pureza da nossa língua. E não foi a monarquia um absurdo dispendioso durante dez anos? E depois, quando o duque de Windsor abdicou, não se tornou o Question todo monárquico e legitimista durante cerca de uma quinzena? Perderam um único leitor? Não está vendo que o leitor instruído não pode parar de ler os semanários intelectuais, façam eles o que fizerem? Não pode. Foi condicionado.

— Bem — disse Mark —, tudo isso é muito interessante, Miss Hardcastle, mas nada tem a ver comigo. Em primeiro lugar, não quero de forma alguma tornar-me num jornalista, e se o fizesse, gostaria de ser um jornalista honesto.

— Muito bem — disse Miss Hardcastle. — Tudo o que vai fazer é ajudar a arruinar este país e talvez toda a raça humana. Além de destroçar a sua própria carreira.

O tom confidencial no qual ela tinha estado falando até então, desaparecera e havia um ar de ameaçadora finalidade na sua voz. O cidadão e o homem honesto que tinham despertado em Mark com a conversa desanimaram um pouco; o seu outro e bem mais forte «eu», o «eu» que estava ansioso, a todo o custo, por não ser colocado do lado de fora, saltou, totalmente alarmado.

— Eu não quero dizer — disse ele — que não esteja vendo as suas razões. Estava apenas a imaginar…

— Para mim é tudo igual, Studdock — disse Miss Hardcastle, sentando-se finalmente à sua escrivaninha. — Se você não gosta do emprego, isso, é claro, é assunto seu. Vá e arrume o caso com o DA. Ele não gosta que as pessoas se demitam, mas é claro que você pode. Ele vai ter de dizer qualquer coisa a Feverstone por o ter trazido para cá. Nós admitimos que você compreendia.

A menção de Feverstone colocou bruscamente diante de Mark, como realidade, o plano, que até então tinha sido levemente irreal, de regressar a Edgestow e de se contentar com a carreira de um professor de Bracton. Em que termos iria ele regressar? Continuaria a ser membro do círculo interior, mesmo em Bracton? Encontrar-se sem a confiança do Elemento Progressista, ser atirado para o meio dos Telfords e dos Jewels, parecia-lhe insuportável. E o salário de um simples professor parecia coisa pequena depois dos sonhos que vinha sonhando durante os últimos dias. A vida de casado já se estava a tornar mais dispendiosa do que ele tinha pensado. Então apareceu-lhe a dúvida aguda a respeito das duzentas libras para ser sócio do clube do NICE. Mas não, isso era absurdo. Eles não podiam com certeza importuná-lo com isso.

— Bem, evidentemente — disse numa voz vaga —, a primeira coisa é ir ter com o DA.

— Agora que se vai embora — disse a Fada —, há uma coisa que tenho de dizer: pus as cartas todas na mesa. Se alguma vez lhe passar pela cabeça que seria engraçado repetir qualquer coisa desta conversa no mundo exterior, siga o meu conselho e não o faça. Não seria de forma alguma saudável para a sua carreira futura.

— Oh, mas é claro — começou Mark.

— É melhor pôr-se andando agora — disse Miss Hardcastle. — Tenha uma agradável conversa com o DA. Tenha cuidado em não aborrecer o velho. Ele detesta tanto demissões.

Mark fez uma tentativa para prolongar a entrevista mas a Fada não o permitiu e em alguns segundos estava fora da porta.

Extraído do livro Aquela Força Medonha (vol.1), de C. S. Lewis.

Chesterton fala sobre a diferença entre o paganismo e o cristianismo no que toca à alegria e à tristeza

G.K.Chesterton

« Dizem que o paganismo é uma religião de alegria e o cristianismo é de tristeza. Seria igualmente fácil provar que o paganismo é pura tristeza e o cristianismo pura alegria. Esses conflitos nada significam e não levam a lugar algum. Tudo o que é humano deve conter em si alegria e tristeza; a única questão que interessa é como os dois ingredientes são equilibrados e divididos. E a coisa realmente interessante é a seguinte, que o pagão sentia-se em geral cada vez mais feliz à medida que se aproximava da terra, mas cada vez mais triste à medida que se aproximava dos céus.

« A alegria do melhor paganismo, como na jocosidade de Catulo ou Teócrito, é, de fato, uma alegria eterna que nunca deve ser esquecida por uma humanidade grata. Mas é uma alegria totalmente voltada para os fatos da vida, não envolvendo a origem dela. Para o pagão, as menores coisas são doces como os menores riachos que irrompem da montanha; mas as coisas maiores são amargas como o mar. Quando o pagão olha para o verdadeiro âmago do cosmos, ele de súbito se sente gelado. Por trás dos deuses, que são meramente despóticos, sentam-se as parcas, que são mortais. Melhor dizendo, as parcas são piores que mortais; elas estão mortas.

« E quando os racionalistas dizem que o mundo antigo era mais esclarecido que o mundo cristão, do seu ponto de vista eles estão certos. Pois quando dizem "esclarecido" querem dizer "obscurecido" por um incurável desespero. É profundamente verdadeiro que o mundo antigo era mais moderno do que o cristão. O vínculo comum está no fato de que os antigos e os modernos sentiram-se infelizes acerca da existência, acerca de todos os fatos da vida, ao passo que os medievais sentiam-se felizes pelo menos a respeito disso.

« Admito francamente que os pagãos, assim como os modernos, eram apenas infelizes acerca da totalidade dos fatos da vida — eles eram muito alegres acerca de tudo o mais. Concedo que os cristãos da Idade Média viviam em paz com a totalidade dos fatos da vida — estavam em guerra com tudo o mais. Mas se a questão girar em torno do primeiro pivô do cosmos, então havia mais contentamento cósmico nas estreitas e sangrentas ruas de Florença do que no teatro de Atenas ou no jardim aberto de Epicuro. Giotto viveu numa cidade mais sombria do que Eurípides, mas ele viveu num universo mais alegre.

« A massa humana tem sido forçada a sentir-se alegre acerca de coisas pequenas, mas a entristecer-se acerca de coisas grandes. Apesar disso (apresento o meu último dogma como uma provocação), não é natural para o homem ser assim. O homem se identifica mais consigo mesmo, é mais parecido com o homem quando a alegria é a coisa fundamental dentro dele e a dor é superficial. A melancolia deveria ser um inocente interlúdio, um estado de espírito delicado e fugaz; a pulsação permanente da alma deveria ser o louvor. O pessimismo é, na melhor das hipóteses, um meio-feriado emocional; a alegria é a ruidosa labuta pela qual vivem todas as coisas.

« No entanto, de acordo com a aparente condição do homem na ótica do pagão ou do agnóstico, essa primeira necessidade da natureza humana nunca pode ser satisfeita.

« A alegria deveria ser expansiva; mas, para o agnóstico, ela deve ser contraída, deve restringir-se a alguém bem-sucedido neste mundo. A dor deveria ser uma concentração; mas, para o agnóstico, a desolação dela se espalha por uma eternidade inimaginável. Isso é o que chamo de nascer de cabeça para baixo. Pode-se na verdade dizer que o cético está de pernas para o ar, pois seus pés vão dançando virados para cima em vão frenesi, enquanto o cérebro está no abismo.

« Para o homem moderno, os céus estão realmente embaixo da terra. A explicação é simples: ele está de ponta-cabeça, o que constitui um pedestal pouco resistente para apoiar-se. Mas quando ele houver novamente descoberto os próprios pés, saberá disso. O cristianismo satisfaz de repente e à perfeição o instinto ancestral do homem de estar virado para cima; e o satisfaz plenamente neste sentido: com seu credo a alegria se torna algo gigantesco e a tristeza algo especial e pequeno.

« A abóbada acima de nós não é surda porque o universo é um idiota: seu silêncio não é o silêncio sem piedade de um mundo sem fim e sem destino. O silêncio que nos cerca é antes uma pequena e compassiva quietude como a súbita quietude no quarto de um enfermo. Talvez a tragédia nos seja permitida como uma espécie de comédia benigna: porque a frenética energia das coisas divinas nos derrubaria como uma farsa de bêbados. Podemos aceitar as próprias lágrimas mais facilmente do que poderíamos aceitar a tremenda leveza dos anjos. Assim ficamos sentados talvez num quarto estrelado e silencioso, enquanto a risada dos céus é forte demais para os nossos ouvidos.

« A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão. E no fechamento deste caótico volume torno a abrir o estranho livrinho do qual proveio o cristianismo; e novamente sinto-me assombrado por uma espécie de confirmação. A tremenda figura que enche os evangelhos ergue-se altaneira nesse respeito, como em todos os outros, acima de todos os pensadores que jamais se consideraram elevados. A compaixão dele era natural, quase casual. Os estóicos, antigos e modernos, orgulhavam-se de ocultar as próprias lágrimas. Ele nunca ocultou as suas; mostrou-as claramente no rosto aberto ante qualquer visão do dia-a-dia, como a visão distante de sua cidade natal. No entanto, alguma coisa ele ocultou. Solenes super-homens e diplomatas imperiais orgulham-se de conter a própria ira. Ele nunca a conteve. Arremessou móveis pela escadaria frontal do Templo e perguntou aos homens como eles esperavam escapar da danação do inferno. No entanto, alguma coisa ele ocultou. Digo-o com reverência; havia naquela chocante personalidade um fio que deve ser chamado de timidez. Havia algo que ele encobria constantemente por meio de um abrupto silêncio ou um súbito isolamento. Havia uma certa coisa que era demasiado grande para Deus nos mostrar quando ele pisou sobre esta nossa terra. Às vezes imagino que era a sua alegria.»
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Ortodoxia, de G. K. Chesterton.

Trecho d’A República, de Platão: Sócrates descreve as quatro formas de deterioração do Estado

Sócrates

Antes de ler o diálogo abaixo, extraído d’A República, de Platão, vale lembrar que a proposta de Sócrates, no texto, não é descrever um Estado utópico. Ao responder a uma pergunta sobre a natureza da Justiça, e consequentemente sobre o que seria um “homem justo”, Sócrates propõe a analogia entre um ser humano e uma cidade-estado, uma vez que esta, sendo grande, teria elementos mais palpáveis e conspícuos, ou seja, elementos mais fáceis de se discernir e analisar. Assim, Sócrates descreve a cidade-estado, e suas diferentes formas de governo, para poder definir a natureza do “homem justo” em contraste com outros tipos de “homens degenerados”. (Yuri Vieira)

Glauco — Não vejo nisso dificuldade. Depois de teres esgotado o que diz respeito ao Estado, dizias quase o mesmo que agora, afirmando que achavas bom o Estado que acabavas de descrever [aristocracia] e o homem que lhe era semelhante, e isso, ao que tudo indica, apesar de teres a capacidade de nos falar de um Estado e de um homem ainda mais belos. No entanto, tu acrescentaste que as outras formas de governo são falhas, uma vez que aquela é boa. Dessas outras formas, ao que me lembro, afirmaste haver quatro espécies dignas de atenção e das quais importava ver os defeitos, assim como os dos homens que lhes são semelhantes, com o fito de que, depois de tê-los analisado e reconhecido qual o melhor e qual o pior, estivéssemos aptos a julgar se o melhor é o mais feliz, e o pior, o mais infeliz, ou se não é assim. Então, como eu indaguei quais seriam as quatro formas de governo, Polemarco e Adimanto interromperam-nos, e aí iniciaste a discussão que nos conduziu até este ponto.

Sócrates — Lembras-te disso com muita clareza.

Glauco — Assim, faz igual aos pugilistas e concede-me outra vez a mesma posição e, tendo em vista que te faço a mesma questão, procura dizer o que estavas para responder.

Sócrates — Farei, se o puder.

Glauco — Desejo saber quais são os quatro governos de que falavas.

Sócrates — É fácil satisfazer-te, pois que os governos a que me refiro são conhecidos. O primeiro e muito elogiado é o de Creta e da Lacedemônia; o segundo, que só se louva em segundo lugar, chama-se oligarquia. Trata-se de um governo repleto de vícios vários. Oposto a este vem, em seguida, a democracia. Por fim, vem a soberba tirania, contrária a todos os outros e que é a quarta e a última doença do Estado. Conheces acaso outro governo que se possa ordenar numa classe bem distinta? As monarquias hereditárias, os principados venais e governos que se lhes assemelham não são, em dada medida, senão formas intermediárias e encontram-se tanto entre os bárbaros como entre os gregos.

Glauco — Realmente dizem que os há muitos e estranhos.

Sócrates — Sabes que há tantas espécies de caráter como formas de governo? Ou pensas que essas formas provêm dos carvalhos e da rocha, e não dos costumes dos cidadãos, que arrastam todo o resto para o lado para que pendem?

Glauco — Não podem originar-se senão daí.

Sócrates — Portanto, se existem cinco espécies de cidades, o caráter da alma, nos indivíduos, será, igualmente, em número de cinco.

Glauco — Com toda a certeza.

Sócrates — Analisamos anteriormente o que corresponde à aristocracia e afirmamos, com razão, que é bom e justo.

Glauco — Sim.

Sócrates — Isto posto, não convirá passar em revista os caracteres inferiores: em primeiro lugar, o que ama a vitória e a honra, baseado no exemplo do governo da Lacedemônia; em segundo o oligárquico, o democrático e o tirânico? Depois de reconhecermos qual o mais injusto, oporemos este ao mais justo e poderemos aí terminar o nosso exame e ver como a pura justiça e a pura injustiça agem, respectivamente, no que diz respeito à felicidade ou à infelicidade do indivíduo, para que siga o caminho da injustiça, se nos deixarmos convencer por Trasímaco, ou a da justiça, se cedermos às razões que se manifestam a seu favor.

Glauco — Concordo plenamente, é assim que se deve proceder.

Sócrates — E, já que começamos por examinar os costumes dos Estados antes de analisarmos os dos particulares, sendo este método o mais claro, não devemos agora considerar primeiro o governo da honra, ao qual, como não tenho designação a dar-lhe, chamarei timocracia, e passar logo após ao exame do homem que se lhe assemelha, depois ao da oligarquia e do homem oligárquico; então lançar vistas para a democracia e o homem democrático; e por fim, em quarto lugar, considerar a cidade tirânica, depois a alma do tirânico, e procurar julgar com conhecimento de causa a indagação que nos propomos?

Glauco — Isso seria agir com disciplina a essa análise e a esse julgamento.

Sócrates — Tentemos, caro Glauco, explicar de que maneira se faz a transição da aristocracia para a timocracia. Não é uma verdade inconteste que toda constituição se modifica de acordo com quem detém o poder, quando a discórdia grassa entre os seus membros, e assim, enquanto está de acordo consigo mesma, por muito pequena que se mostre, é impossível abalá-la?

Glauco — Assim me parece.

Sócrates — Nesse caso, como a nossa cidade será abalada? Por onde se infiltrará, entre os guardiões e os chefes, a discórdia que cada um destes lançará contra o outro e contra si mesmo? Desejas que, como Homero, conjuremos as Musas para que nos digam: ‘Quem os impeliu à discórdia?’ Suponhamos que, brincando e se divertindo conosco como com crianças, falam, como se os seus discursos fossem sérios, no tom inflamado da tragédia.

Glauco — Como assim?

Sócrates — Mais ou menos desta forma: é difícil que um Estado constituído como o vosso venha a se alterar. Porém, como tudo o que nasce é passível de corrupção, este sistema de governo não durará eternamente, mas dissolver-se-á, e aqui tens o modo. Há, para as plantas enraizadas na terra e para os animais que vivem à sua superfície, ciclos de fecundidade ou de esterilidade que afetam a alma e o corpo. Estes ciclos surgem quando as revoluções periódicas completam as circunferências dos círculos de cada espécie, e são curtas para as que têm uma vida curta, longas para as que têm uma vida longa. Pois bem, por muito sábios que sejam os chefes da cidade que vós educastes, não conseguirão nada pelo cálculo unido à experiência, quer suas gerações sejam boas ou não venham a existir. Estas coisas escapar-lhes-ão e farão filhos quando não o deveriam fazer. (…) É este número geométrico total que determina os bons e os maus nascimentos e, quando os vossos guardiões, não o conhecendo, unirem moças e rapazes fora de propósito, os filhos que nascerem desses casamentos não serão favorecidos nem pela natureza nem pela fortuna. Os seus antecessores colocarão os melhores à cabeça do governo, mas, como disso são indignos, logo que assumirem os cargos dos seus pais passarão a menosprezar-nos, apesar de serem guardiões, não honrando, como deveriam, primeiramente a música, em seguida a ginástica. Assim, tereis uma geração nova bem menos culta. Daí sairão chefes pouco capazes de zelar pelo Estado e que não sabem notar a diferença nem das raças de Hesíodo nem das vossas raças de ouro, prata, bronze e feno. Deste modo, misturando-se o ferro com a prata e o bronze com o ouro, resultará destas misturas um defeito de conveniência, de regularidade e de harmonia que, uma vez instaurado, engendra sempre a guerra e o ódio. E esta a origem que se deve atribuir à discórdia, em toda parte que se declare.

Glauco — Devemos reconhecer que as Musas responderam bem.

Sócrates — Certamente, visto que são Musas.

Glauco — E então? O que dizem elas além disso?

Sócrates — Uma vez instaurada a divisão, as duas raças de feno e bronze aspiram a enriquecer e a adquirir posses de terras, casas, ouro e prata, ao passo que as raças de ouro e prata, sendo ricas por natureza, tendem para a virtude e a manter a antiga constituição. Depois de muitas violências e lutas, concorda-se em dividir as terras e ocupá-las, bem como às casas, e aqueles por quem anteriormente zelavam como seus concidadãos, como homens livres e amigos, agora subjugam-nos, tratam-nos como periecos e servidores, e continuam eles a ocupar-se da guerra e da guarda dos outros.

Glauco — Sim, parece-me que é daí que se origina essa mudança.

Sócrates — Aí está! Um tal governo não estará situado entre a aristocracia e a oligarquia?

Glauco — Estará, com certeza.

Sócrates — Vês então como se fará a mudança. Mas qual será a sua forma? Não é evidente que deverá imitar, por um lado, a constituição anterior e, por outro, a oligarquia, mas que terá também alguma coisa que lhe será própria?

Glauco — Assim me parece.

Sócrates — Pelo respeito aos chefes, pela aversão dos guerreiros à agricultura, às artes manuais e às outras profissões lucrativas, pela instituição das refeições em comum e a prática dos exercícios ginásticos e militares, por todos estes aspectos, não recordará a constituição anterior?

Glauco — Sim.

Sócrates — Mas o medo de nomear os sábios para as magistraturas, visto que aqueles que se terão não serão mais simples e firmes, mas de caráter dúbio; a inclinação para o caráter irascível e mais simples, moldado mais para a guerra do que para a paz; a estima em que se terão as manhas e os estratagemas guerreiros; o hábito de ter sempre a arma à mão: a maior parte dos aspectos deste gênero não lhe serão específicos?

Glauco — Sim.

Sócrates — Tais homens serão cobiçosos de riquezas, como os cidadãos dos Estados oligárquicos; adorarão com paixão, às ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados, nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem muito bem lhes apetecer.

Glauco — Eis aí uma grande verdade.

Sócrates — Serão apegados às suas riquezas porque as veneram e não as possuem às claras, e, por outro lado, pródigos com os bens dos outros, para satisfazerem as suas paixões. Se fartarão dos prazeres em segredo e, como crianças aos olhares do pai, fugirão aos olhares da lei, em conseqüência de uma educação não baseada na persuasão, mas na violência, em que se desprezou a verdadeira Musa, a da dialética e da filosofia, e se deu mais importância à ginástica do que à música.

Glauco — E claramente a descrição de um Estado composto de bem e mal.

Sócrates — Isso mesmo, é composto. Há nele um único aspecto que é nitidamente distinto, resultante do fato de nele predominar o elemento irascível: é a ambição e o amor das honrarias.

Glauco — Certamente.

Sócrates — Aí estão a origem e o caráter deste governo. Fiz apenas um esboço, e não um retrato detalhado, porque só por este esboço podemos distinguir o homem mais justo do homem mais injusto e, por outro lado, seria uma tarefa muitíssimo longa descrever sem nada omitir todas as constituições e todo caráter.

Glauco — Tens razao.

Sócrates — Agora, dize qual é o homem que corresponde a este governo, como se compreende e qual é o seu caráter.

Adimanto — Suponho que deve assemelhar-se a Glauco, aqui presente, ao menos no que se refere à ambição.

Sócrates — Talvez. Mas, ao que me parece, pelos aspectos que vou dizer, a sua natureza é diferente da de Glauco.

Adimanto — Quais são eles?

Sócrates — Tu deves ser mais presunçoso e mais avesso às Musas, apesar de amá-las, alegrando-se em escutar, mas não sendo de maneira nenhuma orador. Para com os escravos, um homem assim mostrar-se-á rígido, em vez de os desprezar, como faz aquele que recebeu uma boa educação. Será cordial para com os homens livres e muito submisso para com os magistrados. Desejoso de alcançar o mando e as horas, aspirará a isso não pela eloqüência, nem por nenhum outro predicado do mesmo gênero, mas pelos seus feitos guerreiros e pelos talentos militares e será um aficionado pela ginástica e pela caça.

Adimanto — É esse mesmo o caráter que é similar a tal forma de governo.

Sócrates — Um homem desse tipo poderá, durante a mocidade, desprezar as riquezas, mas com o correr dos anos mais as amará, porque a sua natureza incita-o à avareza, e a sua virtude, privada do seu melhor guardião, não é pura.

Adimanto — Qual é esse guardião?

Sócrates — A razão aliada à música. Só ela, quando entranhada na alma, se mantém toda a vida como defensora da virtude.

Adimanto — Boas falas.

Sócrates — Assim é que o jovem ambicioso é a imagem do governo timocrático.

Adimanto — Com certeza.

Sócrates — Origina-se mais ou menos do seguinte modo: por vezes é o jovem filho de um homem de bem, habitante de uma cidade mal governada, que evita as honras, os cargos, os processos e todos os incômodos deste gênero e que aceita a mediocridade, para tentar se ver livre de aborrecimentos.

Adimanto — E como se origina?

Sócrates — Primeiramente, ouve a mãe queixar-se por o marido não pertencer ao grupo dos governantes, o que a faz se sentir diminuída junto das outras mulheres. Por vê-lo desinteressado de enriquecer, não sabendo nem lutar nem usar a censura, quer em particular, perante os tribunais, quer em público, indiferente a tudo em tal matéria; por notar que está sempre ocupado consigo mesmo e não tem por ela nem estima nem desprezo. Indigna-se com tudo isso, dizendo ao jovem filho que o seu pai não é um homem, que lhe falta energia e cem outras coisas que as mulheres costumam dizer em tais casos.

Adimanto — E mesmo essa a atitude que no mais das vezes tomam conforme com a sua natureza.

Sócrates — E tu sabes que até os criados dessas famílias que parecem bem-intencionados costumam usar, em segredo, a mesma linguagem com as crianças; e, quando percebem que o pai não persegue um devedor ou uma pessoa que o ofendeu, exortam o filho a se vingar de semelhante gente, quando for grande, e a mostrar-se mais viril que o pai. Mal sai de casa, passa a ouvir outros comentários semelhantes e vê que aqueles que não se ocupam senão dos seus negócios na cidade são tratados como imbecis e tidos em pouco apreço, ao contrário dos que se ocupam dos negócios dos outros, que são honrados e louvados. Então, o jovem, vendo e ouvindo isso tudo, por um lado, e, por outro, escutando os discursos do pai, vê de perto as suas ocupações e compara-as com as dos demais. Então, sente atração pelos dois lados: pelo pai, que planta e faz crescer o elemento racional da sua alma, e pelos outros, que fortalecem os seus desejos e paixões. Como o seu caráter não é mau por natureza, pois apenas esteve ele em más companhias, escolhe o meio entre os dois partidos que o atraem, entrega o governo da sua alma ao princípio intermédio de ambição e cólera e torna-se um homem orgulhoso e amante de horas.

Adimanto — Descreveste muito bem a origem e o desenvolvimento desse caráter.

Sócrates — Temos aí a segunda constituição e o segundo tipo de homem.

Adimanto — Temos.

Sócrates — Agora, falaremos, como Ésquilo, “de outro homem alinhado em face de outro Estado”, ou seria melhor, seguindo a ordem que adotamos, começarmos pelo Estado?

Adimanto — Assim me parece bem.

Sócrates — Creio que a oligarquia é o governo que se segue ao precedente.

Adimanto — Que espécie de governo entendes por oligarquia?

Sócrates — O governo fundamentado no recenseamento, em que os ricos mandam e onde o pobre não participa no poder.

Adimanto — Entendo.

Sócrates — Não devemos começar por dizer como se passa da timocracia à oligarquia?

Adimanto — Sim, devemos.

Sócrates — Na realidade, até um cego seria capaz de ver como se faz esta passagem.

Adimanto — Como?

Sócrates — Esse tesouro que cada um enche de ouro põe a perder a timocracia. Em primeiro lugar, os cidadãos descobrem motivos de despesa e, para os satisfazer, deturpam a lei e desobedecem-lhe, eles e as suas mulheres.

Adimanto — E verossímil.

Sócrates — Depois, pelo que suponho, um vê o outro e se põe a imitá-lo, e assim a massa acaba por se lhes assemelhar.

Adimanto — Deve ser assim.

Sócrates — A partir disso, a sua avidez pelo ganho progride rapidamente e quanto mais amor têm pela riqueza menos o têm pela virtude. Em verdade, o que há de diferente entre a riqueza e a virtude não é que, colocadas cada uma num prato de uma balança, tomam sempre uma direção contrária?

Adimanto — Com toda certeza.

Sócrates — Concluo, então, que, quando a riqueza e os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são tidos em menor estima.

Adimanto — É evidente.

Sócrates — É de nossa natureza entregarmo-nos ao que é honrado e desprezarmos o que é desdenhado.

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