palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Ray Bradbury, o contribuinte e a viagem a Marte

Ray Bradbury

   Março de 2000: O contribuinte

Ele queria ir a Marte no foguete. Foi até o campo de foguetes de manhã cedo e gritou através da cerca de arame, para os homens fardados, que queria ir a Marte. Disse-lhes que era um contribuinte, chamava-se Pritchard e tinha todo o direito de ir a Marte. Não havia nascido ali em Ohio? Não era um cidadão cumpridor de seus deveres? Então por que não podia ir a Marte? Sacudiu o punho cerrado na direção deles e disse-lhes que queria ir embora da Terra, que qualquer pessoa com a cabeça no lugar queria ir embora da Terra. Dentro de dois anos iria ser desencadeada uma enorme guerra atômica na Terra e ele não queria estar ali quando isso acontecesse. Ele e milhares de outros como ele, se tivessem bom senso, quereriam ir para Marte. Pergunte-lhes se não quereriam! Ficar longe de guerras, censuras, estatizações, conscrição, controle governamental disto e daquilo, da arte e da ciência! Vocês podem ficar com a Terra! Estava lhes oferecendo sua mão direita, seu coração, sua cabeça, pela oportunidade de ir para Marte! Que se devia fazer, que se devia assinar, que se devia saber para embarcar no foguete?
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As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury.

Ernest Hemingway: A Fome como Boa Disciplina

Ernest Hemingway

Se você não se alimentava bem em Paris, tinha sempre uma fome danada, pois todas as padarias exibiam coisas maravilhosas em suas vitrinas e muitas pessoas comiam ao ar livre, em mesas na calçada, de modo que por toda a parte via comida ou sentia o seu cheiro. Se você abandonou o jornalismo e ninguém nos Estados Unidos se interessa em publicar o que está escrevendo, se é obrigado a mentir em casa, explicando que já almoçara com alguém, o melhor que tem a fazer é passear nos jardins do Luxembourg, onde não via nem cheirava comida, desde a Place de l’Observatoire até a rue de Vaugirard. Poderá sempre entrar no Musée du Luxembourg, onde todos os quadros ficam mais vivos, mais claros e mais belos quando se está com a barriga vazia, roído de fome.

Aprendi a compreender Cézanne muito melhor, a entender realmente como é que pintava suas paisagens quando estava faminto. Costumava perguntar a mim mesmo se ele também tinha passado fome quando pintava, mas imaginava que talvez apenas se tivesse esquecido de comer. Era um daqueles pensamentos doentios mas brilhantes que nos ocorrem quando estamos com falta de sono ou de comida. Mais tarde, bem mais tarde, concluí que Cézanne provavelmente passara fome, mas de maneira diferente.

Depois de ter saído do Luxembourg, você poderia andar pela estreita rue Férou até a Place St. Sulpice sem ver restaurante algum, somente a praça silenciosa, com seus bancos e suas árvores. Havia uma fonte com leões, e pombos andavam nas calçadas ou pousavam nas estátuas dos bispos.

No lado norte da praça ficavam a igreja e lojas que vendiam objetos religiosos e paramentos.

Para além da praça é que não podia prosseguir em direção ao rio sem passar por lojas que vendiam frutas, legumes, vinhos, ou por padarias e pastelarias. Mas, escolhendo cuidadosamente o caminho, conseguiria avançar pela direita, ao redor da igreja de pedra, cinzenta e branca, chegar à rue de l’Odéon e virar de novo à direita em direção à livraria de Sylvia Beach, sem encontrar muitos lugares onde se vendessem coisas de comer. A rue de l’Odéon era desprovida de restaurantes até chegar à praça, onde havia três.

Quando chegasse à rue de l’Odéon, nº 12, a fome estaria contida mas por outro lado, todos os seus sentidos estariam aguçados. As fotografias lhe pareceriam diferentes e descobriria livros que nunca tinha visto antes.

– Você está magro demais, Hemingway – diria Sylvia. – Você anda comendo o suficiente?

– Claro que sim!

– O que é que comeu no almoço?

Apesar das cólicas, eu diria: – Ainda não almocei. Agora é que estou indo para casa.

– Ás três da tarde?

– Não sabia que era tão tarde assim.

– Adrienne disse outro dia que gostaria que você e Hadley fossem jantar com ela. Convidaremos Fargue também. Você gosta do Fargue, não gosta? Ou Larbaud. Você gosta dele. Sei que você gosta dele. Ou qualquer outro de quem você realmente goste. Você falará com Hadley?

– Sei que ela adorará aceitar esse convite.

– Eu lhe enviarei uma carta pneumática para combinar tudo. Quanto a você, Hemingway, não trabalhe tanto, pois não está se alimentando adequadamente.

– Cuidarei disso.

– Vá logo para casa, antes que seja tarde demais para o almoço.

– Guardam o almoço para mim.

– Comida fria também faz mal. Coma um bom almoço quente.

– Chegou alguma carta para mim?

– Acho que não. Mas deixe-me ver.

Foi ver e encontrou um recado. Levantou os olhos, satisfeita, e depois abriu uma porta da sua escrivaninha, que estava fechada a chave.

– Isto chegou enquanto eu estava fora – disse ela.

Era uma carta e dava a impressão de conter dinheiro.

– Wedderkop – disse Sylvia.

– Deve vir do Der Querschnitt – disse eu. – Você esteve com Wedderkop?

– Não. Mas ele passou por aqui, com o George. Ele falará com você, não se preocupe. Talvez quisesse primeiro pagar o que lhe deve.

– São estes seiscentos francos. E diz que receberei mais.

– Foi ótimo você me ter lembrado da correspondência!

Meus parabéns, Dr. Sabe-Tudo.

– É realmente muito engraçado que a Alemanha seja o único lugar onde posso vender alguma coisa. A Wedderkop e ao Frankfurter Zeitung.

– É mesmo! Mas não se aborreça. Você pode vender alguns contos ao Ford – disse ela para me provocar.

– A trinta francos a página! Faça os cálculos: um conto, cada três meses, no The Transatlantic. Um conto de cinco páginas dá cento e cinquenta francos por trimestre. São seiscentos francos por ano.

– Mas, Hemingway, não se preocupe com o que lhe rendem agora. O essencial é você poder escrevê-los.

– Sei. Posso escrevê-los. Mas ninguém os comprará. Não tem entrado dinheiro algum desde que abandonei o jornalismo.

– Estou certa de que conseguirá colocá-los. Você não acaba de receber esse dinheiro?

– Desculpe-me, Sylvia. Perdoe-me por falar nos meus problemas.

– Desculpá-lo de quê? Fale sempre disso ou do assunto que quiser. Você não sabe que todos os escritores sempre falam de suas dificuldades? Mas prometa-me que não se preocupará demais e comerá bastante.

– Prometo.

– Então vá para casa agora e almoce.

J. J. Benítez e Júlio Verne: a mesma pessoa?

 J.J. Benítez e Jules Verne

Siempre lo dije. Una de las posibles claves del éxito de mis libros se asienta en la verosimilitud de cuanto escribo. Todo ha sido escrupulosamente verificado de la mano de la ciencia. Ello explica la confianza y, en ocasiones, la extrema e ingenua credulidad de los lectores, que no atinan a distinguir la realidad de la ficción. Y dime, viejo tramposo, ¿puede darse algo más hermoso y romántico?

La gente sueña despierta, olvidando, aunque sólo sea momentánea y temporalmente, sus más inmediatas y prosaicas realidades. ¡Viva Verne, sí, señor! En 1865, a raíz de la publicación en el Journal des Débats de mi novela De la Tierra a la Luna, sucedió algo prodigioso y tierno. Conforme iban apareciendo los capítulos del libro, los ciudadanos fueron volcándose en la acción y en la trama, compartiendo las venturas y desventuras del héroe: Ardan. ¡Cientos de lectores escribieron al periódico solicitando una plaza en el obús que debía viajar a la Luna! ¿Hay algo más sublime? ¡Y para qué vamos a hablar de La vuelta al mundo en ochenta días! ¿Julio Verne un "iluminado"? ¿Cómo pudo prever este loco semejante audacia? Los lectores me preguntan y se hacen cruces, perplejos ante mi "profecía". La verdad, como casi siempre, es mucho más elemental y terrestre. La idea surgió merced a mi pasión por los periódicos. Un buen día leí una noticia que me entusiasmó: ya era posible dar la vuelta al mundo en menos de tres meses. El artículo incluso me proporcionó el itinerario… Fueron suficientes algunos ligeros "retoques" y del anuncio turístico de la agencia Cook brotó una novela.

¿Yo un "iluminado"? No… Yo, Julio Verne, sólo soy un incomprendido, un árbol muerto, un viejo oso acosado por la diabetes, amenazado de ceguera, cojo y definitivamente solo. El 27 de agosto del pasado año, mi querido hermano Paul también me dejaba… Jamás imaginé que le sobreviviría. ¡Ah, Paul, cómo te añoro! Tú fuiste mi consejero, mi guía y mi confidente. ¿En quién descansaré ahora? Tu muerte anuncia la mía. 1897 suma "7"… ¿Serán ésos los años que me restan para emprender contigo y con Anne la última y azul singladura de los cielos? ¿Será 1905 el año de mi desaparición? Estoy listo. Mi equipaje cabe en mi corazón. Fui un hombre que amó… tardíamente. Quizá eso me salve…

Pero partiré de este mundo con una íntima tristeza. Sólo tú, Paul, y Anne lo sabíais. Ahora no hay tiempo para rectificar… Salgo de la vida con decenas de novelas, sí… Muchas de ellas — dicen — admirables… Pero en la obra de Verne falta "alguien" y "algo"… Dos palabras son suficientes para resumir el lamentable "vacío" de estos treinta y cinco años de trabajo:

JESÚS DE NAZARET Y AMOR.

A pesar de mi admiración por Él, no he sido valiente. Mi secreto sueño — escribir sobre el Hijo del Hombre — queda pendiente…

En cuanto al AMOR, sí, con mayúsculas, mi obra queda igualmente vacía.

Y a la sombra de ambas frustraciones, otros pequeños-grandes sueños incumplidos me escoltarán hasta la tumba, la que Roze tiene preparada para mí:

REESCRIBIR LA HISTORIA… ¿Y por qué no?

ESTUDIAR ESAS MISTERIOSAS "LUCES" QUE, DICEN LOS PERIÓDICOS NORTEAMERICANOS, HAN EMPEZADO A SURCAR LOS CIELOS DESDE 1897.

ABRIR LA CONCIENCIA DE LA HUMANIDAD CON LA ESPADA MÁGICA DEL ESOTERISMO, YA APUNTADO SUBTERRÁNEAMENTE EN MIS LIBROS…

Pero muero optimista. De igual forma que yo, Julio Verne, continué la truncada labor de Alan Poe, otro hombre, más audaz y resuelto que yo en el dominio de las cosas aparentemente imposibles, nacerá un día, no muy lejano, y llevará a buen fin lo que este viejo oso, culo de plomo, ha dejado inconcluso…

Y ese hombre seré yo, Julio Verne, de acuerdo con lo que me ha sido revelado. He aquí la revelación, que nace de mi propio epitafio:

VERS L’IMMORTALITÉ ET L’ETERNELLE JEUNESSE

(HACIA LA INMORTALIDAD Y LA ETERNA JUVENTUD)

Mandé construir mi tumba, bajo el espíritu de este epitafio.

En su eslabón está el camino que conduce a la inmortalidad, a través del secreto de la eterna juventud.

Mi nombre envuelve el camino.

Por él fui y, por él, he de volver.

El número de los días que excederán a los millares de los días de mi vida, será el de las centenas de los días de mi muerte.

El número de los días que excederán al de las centenas de los días de mi muerte, será el de los millares de los días de mi vida.

El número de los días de mi vida y el número de los días de mi muerte tendrán, como veréis, el mismo número secreto.

Por mis obras me conocéis, y

por mis obras me reconoceréis.

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Yo, Julio Verne, de Juan José Benítez.

O trecho acima seria um excerto do diário perdido de Jules Verne – na verdade, uma biografia do autor francês escrita por Benítez na primeira pessoa. Nele, “Verne” anuncia a vinda de um “outro homem”, um outro escritor que faria o que ele deixou de fazer. E acrescenta: “E esse homem serei eu, Júlio Verne, de acordo com o que me foi revelado”. Quem aí tiver saco para fazer todos os cálculos numerológicos citados perceberá que Benítez – autor de vários livros sobre OVNIs e da série Operação Cavalo de Tróia (que trata da vida de Jesus tal como a retrata o Livro de Urântia) – perceberá que Benítez está tentando nos dizer que ele e Jules Verne são a mesma pessoa.

Ah, esses escritores…

Dostoiévski: Crime e Castigo… e Redenção!

Fiódor Dostoiévski

« Tornou a fazer um dia morno e claro. Na manhã seguinte, às seis, ele encaminhou-se para o trabalho, na margem do rio, onde, debaixo dum telheiro, estava instalado o forno para o calcário, ao qual o tinham destinado. Enviaram para ali, ao todo, três operários. Um dos presos foi com a sentinela ao forte, buscar uma ferramenta; outro pôs-se a preparar a lenha para aquecer o forno. Raskólhnikov saiu do telheiro e dirigiu-se para a margem, sentou-se numa viga estendida ao longo do muro e ficou olhando o rio longo e deserto. Da margem elevada descobria-se um vasto espaço. Da outra margem longínqua mal chegava o eco duma canção. Ali, na estepe infindável, banhada pelo sol, apareciam pontos negros quase imperceptíveis, as tendas dos nômades. Para além havia liberdade e viviam outras pessoas, completamente diferentes das de aquém; ali era como se o tempo tivesse parado e não tivesse passado o século de Abraão e dos seus rebanhos. Raskólhnikov permanecia sentado e olhava fixamente, sem desviar os olhos; o seu pensamento transformou-se num desvario, numa contemplação; não pensava em nada, mas uma certa tristeza o comovia e afligia.

« De repente, Sônia apareceu junto dele. Aproximou-se com um passo quase imperceptível e sentou-se ao seu lado. Ainda era muito cedo; corria ainda a frescura matinal. Ela trazia uma pobre e velha capa e um lencinho verde. O seu rosto mostrava ainda sinais da doença, emagrecera, estava pálida, de feições vincadas. Sorriu-lhe afetuosa e alegremente, mas, conforme era seu costume, estendeu-lhe timidamente a mão. Estendialhe sempre a mão com timidez, às vezes nem chegava quase a dar-lha completamente, como se receasse um insucesso. Ele lhe aceitava sempre a mão como se o fizesse de má vontade, parecia sempre acolhê-la com contrariedade, às vezes conservava um silêncio obstinado durante todo o tempo da sua visita. E então ela tremia diante dele e partia profundamente entristecida. Mas, agora, as suas mãos não se soltaram; ele lhe lançou um olhar rápido; não disse nada e baixou os olhos. Estavam sós; ninguém os via. A sentinela tinha-se afastado naquele momento.

« Como aquilo foi, nem eles próprios o sabiam; mas, de repente, houve qualquer coisa que pareceu apoderar-se dele e fez com que ele se deitasse aos pés dela. Chorava e abraçava os seus joelhos. No primeiro momento ela ficou muito assustada e o seu rosto tornou-se parecido com o de uma morta. Saltou do seu lugar e, toda a tremer, ficou olhando para ele. Mas compreendeu tudo, imediatamente, naquele mesmo instante. Nos seus olhos brilhou uma infinita felicidade; compreendia, e para ela já não havia dúvida de que ele a amava, a amava infinitamente, e que chegara finalmente o momento.

« Quiseram falar, mas não lhes foi possível. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam ambos pálidos e abatidos; mas naqueles rostos doentios e pálidos brilhava já a aurora de um renovado futuro, de uma plena ressurreição para uma nova vida. O amor ressuscitava-os, o coração de um encerrava infinitas fontes de vida para o coração do outro. Resolveram esperar e ter paciência. A ele, ainda lhe faltavam sete anos; e, até então, quantos sofrimentos insuportáveis e quanta felicidade infinita! Ele ressuscitara e sabia-o, sentia-o em todo o seu ser renovado, e ela… ela vivia unicamente da vida dele! Na noite desse mesmo dia, quando já tinham fechado os alojamentos, Raskólhnikov estava deitado nas esteiras e pensava nela. Nesse dia até se lhe afigurava que todos os presos, que antes tinham sido seus inimigos, o olhavam já com outros olhos. Até falava com eles e lhes respondia afetuosamente. Agora recordava-o, mas não teria de ser assim: não deveria talvez, agora, mudar tudo? Pensava nela. Lembrava-se de como a mortificara continuamente, destroçando-lhe o coração; recordava o seu rostozinho pálido, mas, agora, essas recordações quase não o afligiam; sabia com que infinito amor ia recompensar agora as suas dores. E que eram agora todos, todos aqueles sofrimentos do passado? Tudo, até o seu crime, até a sua condenação e deportação lhe pareciam agora, nesta primeira exaltação, um fato exterior, alheio, como se não tivesse relações com ele. Aliás, nessa noite não podia pensar longa e fixamente em nada, concentrar o pensamento em qualquer coisa; tampouco poderia resolver, então, conscientemente, o que quer que fosse; a única coisa que fazia era sentir. Em vez da dialética surgia a vida, e já na sua consciência devia elaborar-se algo de totalmente distinto.

« Tinha o Evangelho debaixo da almofada. Pegou-o maquinalmente. Aquele livro era dela, pois era o mesmo em que ela lera a passagem da Ressurreição de Lázaro. Nos primeiros tempos do presídio pensava que ela havia de importuná-lo com a religião e que se poria a falar do Evangelho e a aborrecê-lo com o livreco. Mas, com o maior assombro da sua parte, nem uma só vez ela lhe falou nisso, nem uma vez sequer lhe tinha proposto o Evangelho. Fora ele quem lho pedira, um pouco antes de ter adoecido, e ela levou-lho em silêncio. Até então ele nem sequer o abrira. Agora também não o abriu, mas ocorreu-lhe um pensamento: "Poderia, por agora, a sua crença, não ser a minha também? Pelo menos os seus sentimentos, as suas aspirações…" Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura…

« Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa… mas a nossa presente narrativa termina aqui.»

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Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski.

Quatro contribuições brasileiras ao pensamento universal

Olavo de Carvalho

« Mas, como dizia Reinhold Niebuhr, a consciência do homem está sempre um pouco acima da sociedade em que vive. O melhor do que o Brasil guardou para o futuro está nas criações do gênio individual. Ao contrário do que se passa com a língua e com a religião nacionais, elas sobrevivem às perguntas: Qual o valor da contribuição brasileira para a inteligência humana em sua caminhada sobre a Terra? Demos à humanidade algo de que ela realmente necessite, ou limitamo-nos a solicitar sua atenção para as nossas necessidades?

« Na esfera do pensamento — e excluindo portanto as manifestações artísticas, que escapam ao tema do presente capítulo —, o Brasil deu pelo menos quatro contribuições maiores, que sobreviverão à passagem dos séculos. Absolutamente incomparáveis, a sociologia de Gilberto Freyre, o pensamento jurídico e político de Miguel Reale, a obra crítica e historiográfica de Otto Maria Carpeaux e a filosofia de Mário Ferreira dos Santos são os pontos mais altos alcançados pelo pensamento brasileiro no seu esforço de cinco séculos para erguer-se à escala do universalmente humano. Se o povo brasileiro fosse varrido da existência na data de hoje, seria a eles que caberia comparecer em nosso nome ante o trono do Altíssimo para responder à cobrança temível: — Que fizeste dos talentos que te dei?

« As razões que sustentam essa avaliação podem ser resumidas em quatro palavras, que definem as esferas de realização abrangidas por cada uma dessas obras ciclópicas: cada uma delas é, mais que qualquer outra produzida neste país, abrangente, consistente, única e universal. Estes quatro adjetivos não têm apenas uma função enfática e laudatória, mas traduzem critérios precisos:

« 1° Cada uma delas abrange numa visão sintética a totalidade temática e problemática de um determinado campo do conhecimento até o ponto a que este havia chegado, em sua evolução histórica, no momento em que essa obra atingia seu ponto culminante.

« 2° Cada uma delas possui uma unidade orgânica que coere em torno de princípios fundamentais simples a vastidão do campo abrangido.

« 3° Cada uma delas é sem similares que as possam substituir em qualquer outra língua ou cultura.

« 4° Cada uma delas fala aos homens de todos os quadrantes, levando-lhes, desde o Brasil, um conhecimento essencial, a respeito não apenas do Brasil, mas a respeito deles mesmos e do mundo em que vivem. Dito de outro modo: nessas obras e somente através delas entramos plenamente no diálogo universal dos homens, superando o complexo egocêntrico de uma cultura voltada para si mesma.

« Todas elas e somente elas atendem a esses requisitos.

« Se alguém quiser por em dúvida a validade dos quatro critérios, movido por escrúpulos que lhe pareçam muito científicos no que diz respeito à possibilidade de fixar objetivamente o “mais alto” e o “menos alto”, direi que toma suas inibições pessoais como rigores de método.»

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O Futuro do Pensamento Brasileiro – Estudos sobre nosso lugar no mundo, de Olavo de Carvalho.

Mário Ferreira dos Santos: a diferença entre Ética e Moral

Mário Ferreira dos Santos

§ 56 Ao ser humano cabe a frustrabilidade de certos atos, que pode ele fazer ou não. Os animais dizem sempre sim à natureza. O homem, porém, pode dizer não. Nesse “não” está o índice de sua grandeza, a abertura de sua elevação, mas também o primeiro passo para os seus erros. O homem pode frustrar o dever-ser. O dever-ser dos animais é fatal porque eles obedecem aos instintos. Mas o do homem é frustrável, porque ele é inteligente e dispõe da vontade.

§ 57 E por que se dão tais coisas? As razões são simples: o homem não é um ente imutável e eterno. É um ente mutável e temporal. Sua vida é um longo itinerário, um longo drama, porque ele atua e sofre sucessivamente uma longa realização dramática, porque ele age e faz. E como age e faz, ele prefere e pretere. Por isso, ao longo do drama humano, ao longo da sua práxis, da sua prática, o homem avalia valores.

§ 58 Em toda vida prática do homem há a presença dos valores que são julgados, preferidos e preteridos. Onde há ação humana, há a presença do valor, e o que o homem faz ou sofre é conveniente mais ou menos ou não à sua natureza estática, dinâmica e cinematicamente considerada. Em tudo, portanto, há valores, maiores ou menores. E, ademais, o homem dá suprimento de valor ao que lhe convém, como também lhes retira. Supervaloriza ou desvaloriza. Todas estas características do homem são precisamente o que lhe dá o caráter da sua peculiaridade.

§ 59 Mas esses valores são valores do homem, por isso são valores humanos (em grego, valor é axiós e o homem é antropos, daí chamarem-se esses valores de axioantropológicos). Toda vida ativa e factiva do homem (a vida técnica) está cheia da presença dos valores e dos desvalores do homem. Por essa razão, cada ato humano é mais ou menos digno, segundo tenha mais ou menos valor. A dignidade dos atos continuados marca o seu valor.

§ 60 Os atos continuados constituem o costume (o que os gregos chamavam ethos e os latinos mos, moris, de onde vêm Ética e Moral). Os atos éticos ou morais são atos que têm valor, são atos, portanto, que têm dignidade. É eticamente valioso o dever-ser que corresponde à justiça como antes expusemos: é eticamente vituperável, indigno, o ato que ofende a justiça, ou seja, o direito, o que é devido à conveniência da natureza humana, na multiplicidade em que ela pode ser considerada.

§ 61 Assim, toda vida prática do homem gira em torno da Ética. Realmente a vida prática do homem é a vida ativa e a vida factiva, e naturalmente essa vida gira em torno do que é conveniente ou desconveniente. Na ação e na realização da vontade, há apreciações de valores do que convém e do que não convém, conseqüentemente, do dever-ser frustrado e, por isso, giram todas em torno da Ética, que tem de estar presente em todos os atos da vida prática. E prossegue o texto: como disciplina filosófica, esta tem por objeto formal a atividade humana em relação ao que é conveniente ou não à sua natureza. Os atos podem ser assim éticos ou antiéticos, ou então anéticos. Éticos, os que devem ser realizados; antiéticos, os que não deveriam ser realizados; e anéticos, os que nos parecem indiferentes.

§ 62 Portanto, toda vida ativa e factiva (técnica, artística) do homem se dá dentro da esfera ética. Razão tinham, pois, os filósofos antigos que punham o Direito, a Economia, a Sociologia, a Técnica e a Arte como inclusas e subordinadas à Ética, porque os atos humanos estão sempre marcados de eticidade. Esta a razão por que se deve distinguir Ética de Moral. Esta distinção não é arbitrária. Ora, os antigos, ao distinguirem essas disciplinas e as colocarem subordinadas à Ética, não subordinavam totalmente e absolutamente, porque há uma parte de cada uma dessas disciplinas, que é tipicamente própria das disciplinas, que é a sua parte específica. A Ética, então, funcionava em relação a essas disciplinas na mesma relação de gênero para espécie.

§ 63 A Ética estuda o dever-ser humano, a Moral descreve e prescreve como se deve agir para realizar este dever-ser. A Moral é variante, mas a Ética é invariante. Podem os homens, mas assistidos pela intelectualidade, errarem quanto à eticidade de um ato e estabelecer um costume (moral) que nem sempre é conveniente ou é exagerado. Podem errar, porque o homem pode errar, mas se der ele o melhor de sua atenção à Ética, ele não errará e poderia evitar os erros na Moral. É essa a razão por que muitas vezes encontramos diferenças entre a moral e a ética. E muitas vezes vimos que certos costumes de certos povos ofendem a princípios de justiça, porque nem sempre o homem escolhe como modo de proceder (seria o modo moral) aquele que melhor corresponde à realização do dever-ser ético, e às vezes é movido por certas circunstâncias históricas, ambientais, que determinam agir desse modo e não doutro, porque, apesar de não ser benéfico como seria de desejar, é menos maléfico do que de outros modos de proceder. Assim pode-se compreender que certas tribos, em determinadas circunstâncias, se vissem forçadas a liquidar os elementos inválidos que a constituíam, para que sobrassem alimentos suficientes para manutenção dos que tinham maior capacidade de sobrevivência. Este ato eticamente considerado é falho, mas moralmente considerado ele tem uma desculpa, dada as circunstâncias ambientais e históricas daquela tribo. Por isso, muitas vezes a moral pode chocar-se com a ética, e nem sempre a moral conheceria a melhor resposta ou a melhor solução ao dever ético. Nós hoje estamos numa crise, não de ética, estamos numa crise de moral, e esta crise na moral está por uma má visualização da diferença entre moral e ética. Como a moral decai, como a moral não consegue manter as suas normas, porque ela já não corresponde à realidade da vida atual, então quem sofre as conseqüências é a ética, parecendo aos olhos daqueles que não estão preparados, que fazem confusão entre ética e moral, que a ética também se derrui, como se está derruindo a moral, e não é verdade: a ética permanece em pé, a ética é indestrutível, a ética é eterna; a moral é humana, factível, caduca, e por isso ela pode errar. Se a mente humana for bem assistida, ela poderá evitar os erros da moral pela criação de costumes que correspondem melhor ao dever-ser ético.

§ 64 Aqueles que dizem que a Ética é vária porque a Moral é vária, confundiram a Moral com a Ética. Essas confusões provocaram inúmeros mal-entendidos e promoveram muita agitação entre os que desejavam atacar a Ética. Há costumes convenientes e inconvenientes apenas a uma parte da humanidade, mas o que é ético é universal e deve ser aplicado a todos. A Ética deve ser consagrada ao universal. Temos assim a explanação dos diversos aspectos importantes que já salientamos, mas o texto continua e nos vai esclarecendo a pouco e pouco este aspecto genuinamente cristão.

§ 65 Assim, da moral, que surge na vida prática do homem, a mente especulando sobre ela chega à Ética, que é mais especulativa do que prática, porque nela há princípios eternos, enquanto naquela há regras de valores históricos, portanto, mutáveis. Dar a cada um o que é de seu direito é uma norma ética, mas o modo como se proceda, segundo a conveniência humana obediente a esta norma, será uma regra moral. Porque erram os homens na Moral, não se deve negar à Ética o seu valor, porque esta seria uma violentação da inteligência.

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Cristianismo: A Religião do Homem, de Mário Ferreira dos Santos.

O futuro do livro

The Future of the Book. from IDEO on Vimeo.

Meet Nelson, Coupland, and Alice — the faces of tomorrow’s book. Watch global design and innovation consultancy IDEO’s vision for the future of the book. What new experiences might be created by linking diverse discussions, what additional value could be created by connected readers to one another, and what innovative ways we might use to tell our favorite stories and build community around books?

www.ideo.com

Sinceramente? Isso tudo pode ser muito útil às mais diversas áreas do conhecimento — essas que exigem o estudo de guias, manuais e livros teóricos — mas me causa uma ansiedade dos diabos me imaginar lendo literatura com tanta informação a invadir minha página. A solidão do leitor é necessária para que a literatura aconteça e se lhe torne uma companhia.

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