Fernão Mendes Pinto

« Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos de vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos de vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezessete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Maçácar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor onipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida.»

Assim se inicia o relato de 774 páginas (divididas em dois volumes) do aventureiro e explorador português Fernão Mendes Pinto (1510?–1583), que com uma prosa dinâmica e direta, mas de poder narrativo sempre envolvente, nos transporta através de tempestades e batalhas em alto-mar, de terras e povos estranhos, de paisagens e animais fantásticos, de reis, rainhas, mouros, piratas e assim por diante. Impressiona, por exemplo, ler sobre a preparação, em Goa, Índia, de uma armada composta por 225 navios portugueses — entre naus, caravelas, galeões, galés, fustas, etc. — para a batalha que deveria ter sido travada com 50 navios muçulmanos: foram necessários cinco dias para embarcar um total de 40 mil homens. (Taí um filme que gostaria de ver.) Com a mesma sintaxe viva, colorida, Mendes Pinto também nos faz gargalhar ao relatar seu encontro com o rei de Quedá, o qual havia – assim afirmavam seus súditos – assassinado o pai e se casado com a própria mãe, grávida do filho incestuoso. O detalhe tragicômico é que o rei mandava executar sumariamente qualquer um que comentasse o fato…

Estudiosos chamam a atenção para o fato de este livro, apesar de ser considerado “uma das obras capitais da formação do nosso idioma enquanto língua literária”, não ter se tornado tão conhecido e louvado como os Lusíadas, de Camões. Talvez, especulam, porque o autor, em meio a situações fantásticas, não poupa seus compatriotas de um enfoque realista, isto é, mesmo sendo virtualmente tementes a Deus, no geral não eram nada santos…

Também é interessante notar que Machado de Assis tinha para com Fernão Mendes Pinto (e também para com Gomes Eanes Zurara) a mesma consideração que eu, há pelo menos quinze anos, tenho para com Antônio Vieira: autores aos quais recorremos para revitalizar nosso próprio uso da língua ou, como escreveu Machado, para estudar “as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles [Mendes Pinto e Zurara] mil riquezas, que à força de velhas se fazem novas”.

É possível ler online a versão original da Peregrinação aqui. Mas não aconselho, porque a ortografia da época, sendo muito distinta – bastante curiosa, na verdade –, impede a fluidez da leitura. O melhor é adquirir a versão adaptada à ortografia atual por Maria Alberta Menéres e publicada pela Editora Nova Fronteira: volume 1 e volume 2.