palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Autor: Yuri Vieira Page 1 of 81

Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’

Furibundo, o pai decidira: se necessário, iria quebrar a cara daquele professor! Onde já se viu? Isso lá era tarefa que se desse a crianças de dez anos de idade? Não, não deixaria barato. Estava tão indignado, tão furioso, que nem avisara a esposa de que iria à escola. Por que o faria? Ela ainda não sabia de nada. E ele nada lhe dissera, não simplesmente para poupá-la, mas também para evitar que ela o impedisse de levar as coisas às últimas conseqüências.

— No mínimo, no mínimo, esse professor merece um murro na cara! — grunhia.

Colocou a odiada máscara pandêmica e entrou na escola pisando duro, a agenda do filho enrolada na mão direita feito um porrete. O porteiro o interpelou:

— Aonde o senhor vai?

— Tenho uma reunião marcada com o senhor Ferreira.

Impressionado com as feições carregadas daquele pai, o porteiro interfonou imediatamente para a secretária do diretor.

— Sim, sim. Tá certo — murmurou. E para o pai: — O senhor pode entrar. Basta subir aquela escada à direita e…

— Obrigado, eu sei onde é — atalhou secamente o homem, partindo na mesma velocidade com que entrara

Na escada, já se imaginava esculhambando o professor. Dar-lhe um murro, claro, era apenas um sonho vão. Na verdade, ficaria bastante satisfeito com sua demissão e, claro, com sua condenação na Justiça.

O diretor, todo sorridente, já o aguardava à porta da sala. Tinha um ar tranqüilo. A secretária, essa, sim, parecia tensa.

— Boa tarde, doutor Araújo. Como vão as coisas?

— Péssimas — tornou o revoltado pai. — Precisamos esclarecer umas coisas.

— Entre, por favor, entre.

Sentaram-se. Doutor Araújo notou como o diretor, atrás de uma mesa gigante, ficava pequenininho em sua enorme cadeira de escritório. Pequenininho e redondo. A máscara, grande demais, meio caída sob as narinas, tornava-o ainda mais infantil.

— Do que se trata?

— Seu Ferreira, quero que o senhor chame esse tal de professor Luís para me explicar isto aqui — e, desenrolando a agenda escolar que tinha em mãos, mostrou-lhe a página com a absurda tarefa de casa.

O diretor, mudo, leu e releu a página umas três vezes. Não estava chocado, mas já não estava mais tão tranqüilo. Tinha mesmo era um ar de “ai ai, mais um imbróglio para resolver”.

— Bom, doutor… — finalmente disse, entrelaçando os dedos. — De fato, não é uma atividade das mais ortodoxas. Entendo sua preocupação.

— Das mais “ortodoxas”?! “Preocupação”? — enfureceu-se ainda mais. — Seu Ferreira, eu peguei meu filho, no flagra, fazendo troca-troca com outros cinco colegas dele! Cinco! Todos alunos desta escola. E, quando gritei com eles, disseram-me que era uma tarefa. E veja aí: é verdade!

— Troca-troca? Como assim “troca-troca”? — gaguejou o outro.

— Ué, vai me dizer que o senhor não sabe do que se trata? Eles estavam fazendo uma suruba, porra! Comendo os rabos uns dos outros!

— Suruba?! — empalideceu o diretor.

— Sim, exatamente. Garotos de dez anos fazendo suruba a mando de um professor descarado, de um pervertido. Até aquele menininho novato de Taiwan, que mal fala o português, estava lá! Enfim, quero que o senhor chame esse professor aqui… agora!

Sentindo que, caso não convocasse o professor, acabaria tendo de chamar seguranças, ou a cavalaria, serviços que não possuía, seu Ferreira engoliu em seco e, bufando, digitou um número no interfone.

— Dona Dalva, por favor, encontre o professor Luís e diga-lhe que venha urgentemente à minha sala — e ficou a ouvir a réplica. — Não — acrescentou, baixando a voz —, não importa que esteja em aula. Diga-lhe para vir. Qualquer coisa, fique a senhora mesma cuidando da turma dele — e desligou.

Notando mais acuradamente a atmosfera de adrenalina, testosterona e sede de justiça que cercava aquele médico de meia-idade, o diretor decidiu botar água na fervura: não pretendia testemunhar um docentecídio.

— O senhor precisa convir que vivemos novos tempos, doutor — e esboçou um sorriso amarelo. — Aliás, é por isso que contratamos o professor Luís, que é um…

— “Novos tempos”? — rangeu o pai, entredentes. — O senhor deveria saber, seu Ferreira, que, em toda fase decadente de uma civilização, os agentes dessa decadência se acham uns apologistas de grandes novidades. Sempre as mesmas! — e sacudiu a cabeça, sorrindo amargamente. — Novos tempos! Não há nada mais velho e recorrente do que os tais “novos tempos”.

Aquilo foi dito de maneira tão contundente e peremptória que o diretor preferiu calar-se e aguardar em silêncio. Começou a tamborilar a mesa, olhando de esguelha para o relógio de pulso. Embora o professor Luís não tenha levado mais de três minutos para assomar à porta, esses três minutos pareceram ao diretor uma eternidade.

— Bom dia — disse o professor Luís, a mão ainda na maçaneta. — Do que se trata?

— Bem, para começar… — tomou a palavra o diretor.

— Começar? — interrompeu-o o Dr. Araújo. — Mas cadê o professor Luís?

— Ué. Sou eu mesmo.

Dr. Araújo observou a figura de cima a baixo: uma mulher atarracada, uns seis meses de gravidez na barriga, os cabelos curtos pintados de azul, óculos redondos, uma atitude impertinente — talvez devido à máscara que só lhe cobria o queixo — e, o que lhe apareceu ainda mais esquisito, um buço aparentemente tingido de escuro à guisa de bigode.

— Mas… você é uma mulher! — exclamou, vendo seus sonhos de esmurrar um pervertido irem por água abaixo.

A figura crispou as mãos e se abespinhou de imediato:

— Ora, o senhor me respeite! Não sou uma mulher! — replicou, batendo um pezinho no chão e engrossando comicamente a voz, o que quase desconcentrou o pobre médico, já que essa voz lembrou-lhe claramente o tom com que sua mãe, ao narrar um conto de fadas, interpretava as falas do Lobo Mau.

Desconcertado, o Dr. Araújo virou-se para o diretor:

— Tudo bem, tudo bem — quase gaguejou. — Se ela causou o problema, é com ela mesmo que…

— “Ela”, não! — berrou o professor Luís, colocando a máscara na posição correta. — Eu sou um homem trans! Não seja transfóbico comigo!

Dr. Araújo arregalou os olhos:

— Transfó… — e deu um pequeno murro na própria coxa. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece com essas besteiras políticas para cima de mim. Vim aqui discutir algo muito sério. Não vim para defender que a grama, em vez de cor-de-rosa, é verde. Eu sou médico obstetra, caramba! Onde já se viu? Um homem grávido?

— Isso mesmo! Sou homem e estou grávido. Só o mais rasteiro preconceito é incapaz de admitir isso.

— Preconceito? Quem não admite isso é a natureza. O bebê está onde? Na próstata? No saco escrotal? Vai sair pela uretra?

O professor Luís deu um passo ameaçador na direção do médico, fato esse que alarmou o diretor:

— Por favor, doutor — interveio seu Ferreira, limpando o suor da testa. — Tente ser mais cordial. Estamos aqui para ouvir suas queixas.

— OK. Se ela não vier com essas…

— “Ela”, não! Meus pronomes são “ele” e “dele”. Já disse: eu me identifico como homem. Então, fale comigo sem ser preconceituoso.

O doutor, em sua irritação, quase se levantou da cadeira. Odiava ter de trair sua apreensão direta do mundo. Mas, após remexer-se por um segundo, teve um insight e voltou a acomodar-se. Decidiu aderir estrategicamente ao jogo:

— Está certo! Entendi — soltou, num tom de quem dava o braço a torcer. — Então, por favor, exijo reciprocidade: meus pronomes são “vós” e “vossos”. Eu me identifico com um conde do século XVIII. Tratem-me de acordo.

— Dr. Araújo, o senhor não pode…

— “Vós não podeis”.

— Hum?

— “Vós não podeis”. Use comigo a segunda pessoa do plural.

O diretor relanceou um olhar confuso para o professor Luís, que permanecia de pé, numa atitude severa de galinha choca. Estava certo aquilo? Uma pessoa também podia identificar-se como um conde do século XVIII? Como seus olhos não encontraram qualquer reação ou resposta cúmplice da parte daquele indignado “homem trans”, retomou a palavra.

— Doutor Araújo, vós… bem, vós não podeis se dirigir a uma pessoa trans…

— “Conde Araújo, vós não podeis dirigir-VOS…”

O diretor calou-se e cerrou os olhos, petrificado como uma estátua. O doutor quase podia ouvi-lo contando internamente até dez. Por alguma razão, pensou, a exasperação do diretor era uma espécie de socialização da sua própria indignação. Até sentiu que seu fardo estava mais leve, uma vez que mais alguém ajudava a carregá-lo. Talvez o próprio diretor percebesse o ridículo daquela situação, mas, para manter o emprego, via-se obrigado a seguir o faz-de-conta.

— Bem, vamos prosseguir com o que realmente interessa — disse finalmente seu Ferreira, abrindo os olhos. E respirou fundo: — O caso, professor Luís, é que o dou… quero dizer, o Conde Araújo tem uma reclamação justa e pode prová-la: veja a tarefa anotada pelo filho vosso… quer dizer, vosso filho dele. É verdade que você mandou os meninos fazerem uma… — e pigarreou: — uma suruba?

O professor Luís, de braços cruzados sobre o barrigão, o queixo erguido, mantinha uma atitude desafiadora:

— Suruba? — e deu uma risadinha desdenhosa. — Imagino que pessoas caretas e recalcadas até poderiam interpretar assim, mas a tarefa que dei pra eles foi a de conhecer os corpos uns dos outros. Como vão saber se preferem namorar meninos ou meninas? Precisam se conhecer. Por isso nunca disse que isso devia ser feito apenas entre meninos.

O médico mal podia acreditar no que ouvia:

— Conhecer os corpos! Meu Deus… — e suspirou. — Então, para conhecer alguma coisa eles precisam usar o tato, a pele, esfregando-se uns nos outros, tocando-se, pegando nos órgãos genitais alheios e o pior: metendo os pauzinhos nos cus uns dos outros? Namorar uma pinóia! Isso é troca-troca! E não havia menina nenhuma! Se houvesse, tanto pior! Eles são crianças! Crianças! Entendeu? Mas, enfim, o fato é que era uma surubinha gay!

O professor Luís, mal contendo uma veleidade de sorriso, passou tranqüilamente uma mão pela cabeça colorida:

— Admito que mandei eles se desnudarem, se tocarem, se esfregarem, para melhor se conhecerem. Mas não mandei ninguém comer ninguém.

— Ah, isso é muito bonito: “Mandei esparramarem a gasolina pelo chão e acender o fósforo, mas não mandei ninguém incendiar a casa”. Você é retardada por acaso?

— “Retardada”, não! Mais respeito com os defi…

— Ah, me desculpe, errei o gênero: você é retardado?

Mais tarde o Dr. Araújo, ao narrar a cena para a esposa, compararia o que se seguiu a uma dessas cenas em câmera lenta de filme de ação: numa fração de segundo, o professor Luís, com a mão direita erguida, o olhar alucinado, voou em sua direção com o claro intuito de estapeá-lo, porém, o diretor, com a agilidade de um macaco-prego, sim, um macaco gordinho, galgara simultaneamente a mesa, atirando-se sobre o professor antes que o tabefe fosse desferido. Ambos caíram ao chão, atrelados um ao outro, o que muito preocupou o médico obstetra, que avançou para tentar proteger com as mãos o inocente nascituro. O professor, sem sucesso, tentava livrar-se do abraço pacificador do diretor e parecia acreditar que o doutor tencionava agredi-lo. A essa altura, ninguém mais usava máscaras.

— Que loucura! Vocês vão matar a criança! — berrou o doutor, os olhos esbugalhados.

Alarmado com essa observação, o diretor engatinhou a um lado, ao passo que o professor caía das nuvens, preocupadíssimo, aceitando as mãos do médico sobre sua barriga:

— Nossa, doutor! Será que aconteceu alguma coisa com mi filhe? — balbuciou num tom surpreendentemente feminino.

— “Mi filhe”? — E num esgar: — Que diabo de língua é essa? Esgueiranto?

O diretor não agüentava mais:

— Pelo amor de Deus, não recomecem! Chega de provocações! Pode ser?

Sem responderem nem que sim, nem que não, médico e paciente obedeceram tacitamente ao já irado diretor. O doutor Araújo, com um ar compenetrado, profissional, apalpou o ventre do professor por todos os lados. Por fim, aliviado e satisfeito, ergueu-se e declarou:

— Não se preocupe. Está tudo bem.

— Obrigado, doutor.

— Está vendo? — acrescentou o médico, solícito, numa sinceridade inocente e transbordante. — Homem ou mulher, pouco importa: você já é uma boa mãe.

Para quê… O professor Luís voltou a enfurecer-se:

— “Mãe”, não! Pai! Pai! Eu sou é o pai!

— E a mãe é quem? — retrucou o médico, cruzando os braços. — Um dos irmãos… digo, uma das “irmãs” Wachowski? O mundo virou mesmo uma Matrix, uma simulação insuportável…

O professor rosnou, fora de si, fazendo menção de levantar-se. No entanto, antes que a coisa voltasse a azedar, o diretor se interpôs:

— Por favor, doutor… conde… ou o caralho a quatro: retirai-vos. Sim? Dou por encerrada esta reunião. Conversaremos novamente noutra oportunidade.

Enquanto seu Ferreira ajudava o professor Luís a se levantar, o doutor pegou a agenda do filho e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, virou-se ainda uma vez:

— Obrigado por sua atenção, seu Ferreira, mas não voltaremos a nos falar. Aguarde a visita do meu advogado. Ficarei muitíssimo satisfeito quando esse escândalo estourar e vocês dois estiverem na cadeia — e sorriu cinicamente: — Aliás, professor Luísa, estou curioso para saber se você vai gostar da prisão masculina. Muitos homens vão querer dividir a cela com você…

E, tendo dito isso, saiu, sem deixar de reparar nos olhos arregalados da secretária, que, ao vê-lo, fingiu-se de muito ocupada.

Quando chegou em casa, o doutor, aliviado e seguro de si, finalmente contou tudo à esposa, que, até então, nem sequer havia se inteirado do famigerado troca-troca. Escandalizada, persignando-se, instou o marido a abrir um processo contra a escola o mais rápido possível. Naquele mesmo dia, ele entrou em contato com seu advogado, que lhe garantiu: a indenização estaria na casa dos seis dígitos, talvez até dos sete. De fato, o advogado foi ligeiro e, na semana seguinte, o processo estava aberto.

— A Justiça não o deixará na mão, doutor Araújo — disse-lhe ao telefone.

No mesmo dia, um camburão da polícia foi à casa do médico — para prendê-lo, claro, afinal, ele havia cometido o horroroso crime de transfobia. Sim, o professor Luís, muito escolado nessas questões de “perseguição fascista”, havia gravado, em seu celular, todo o diálogo ocorrido, tendo entregado à polícia uma versão editada na qual só se ouvia, como mais tarde noticiou a imprensa, “o discurso de ódio do maligno médico obstetra”. De fato, a professora… perdão, o professor não era nada bobo.

Sentado na traseira do camburão, o médico, que de tanta cólera finalmente atingira um estado de serena passividade, não conseguia esquecer o diálogo que tivera com o filho, na ocasião do flagra, logo após a partida dos coleguinhas:

— Meu filho, você não tem vergonha?! Isso lá é coisa que se faça?

— Calma, pai! — dizia o garoto, sorrindo.

— Que calma o quê! E tira esse sorriso bobo da cara!

— Bobo, não! Eu sou é muito esperto!

— Ah, é! Muuuito esperto! Deixar os outros come… — e pigarreou: — Deixar cinco moleques pegarem na sua bunda agora é esperteza?

— Não, pai: eu sou muito esperto mesmo. Na verdade, eu comi todo mundo e só dei uma vez! E dei justamente pro Liu Xiang, que tem um pau desse tamaninho!

No camburão, o médico imaginava que, se tivesse uma personalidade diferente, se fosse, como se diz, mais “zoeiro”, talvez até tivesse achado graça naquilo: “Nossa, meu filho é esperto mesmo! Comeu todo mundo e só deu uma vez”. Mas era impossível, pois não tirava da cabeça a imagem do filho ao ser flagrado: aquele olharzinho maquiavélico, ladino, calculista… aquele sorrisinho perverso, dos mais devassos… E ele só tinha dez anos de idade!

— Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’ — murmurava sem parar, o olhar perdido, a cabeça a golpear, a cada solavanco, a janela da viatura.

                FIM

Trecho de “O doente imaginário”, de Molière

Ato III, Cena III de “O doente imaginário”, de Molière.

O não-vacinado e o vacinado

BERALDO
Posso pedir-lhe, meu irmão, antes de tudo, que não se irrite durante a nossa conversa?

ARGAN
Muito bem.

BERALDO
E respondas sem rancor a tudo que eu possa dizer?

ARGAN
Sim.

BERALDO
E raciocinarmos juntos sobre o que temos de falar, com o espírito livre de toda paixão?

ARGAN
Sim, que diabo! Acabe com o preâmbulo!

BERALDO
De onde lhe vem a idéia de meter sua filha num convento?

ARGAN
Vem do fato de eu ser dono de minha família e poder fazer com ela o que me parecer melhor!

BERALDO
Sua mulher não se cansa de aconselhar que você se livre de suas filhas; e eu não duvido de que, por espírito religioso, ela se encante de ver as duas como freiras.

ARGAN
Agora chegamos ao ponto. Já está em jogo a minha pobre mulher. É ela quem pratica todo o mal; ninguém gosta dela!

BERALDO
Não, meu caro irmão. Sua mulher tem as melhores intenções para com sua família, e não liga a qualquer interesse; e lhe dedica uma ternura maravilhosa; e mostra por suas filhas uma afeição e uma bondade inconcebíveis. Tudo isto é certo. Não falemos disto e voltemos a Angélica. Por que quer você entregá-la ao filho desse médico?

ARGAN
Porque quero um genro que me convenha.

BERALDO
Parece até que você quer casar com ele! Pois eu lhe digo; apareceu um melhor partido para sua filha.

ARGAN
Mas o que escolhi é melhor partido para mim.

BERALDO
Mas o marido é para ela ou para você?

ARGAN
Para ela e para mim: quero na família as pessoas de que preciso.

BERALDO
E por isso se Luizinha fosse mais crescida, você lhe arranjaria um farmacêutico?

ARGAN
Por que não?

BERALDO
Será que você estará sempre enrabichado pelos seus doutores e farmacêuticos, e deseja ser doente a ponto de contrariar a natureza?

ARGAN
Que é que você acha, meu irmão?

BERALDO
Não vejo ninguém menos doente do que você; eu gostaria de ter a sua saúde! Uma grande prova de que você se sente bem e tem uma resistência incrível, é que todos esses clisteres não conseguiram derrubá-lo e você consegue ficar em pé depois de tantas inundações.

ARGAN
Mas são estas coisas que me conservam! O Doutor Purgon afirma: eu morrerei se passar três dias sem sua assistência!

BERALDO
Se você não tomar cuidado, ele lhe dará tanta assistência que o enviará ao outro mundo.

ARGAN
Vamos lá: raciocinemos, meu irmão. Você não acredita na medicina?

BERALDO
Não, meu irmão: e não vejo necessidade de crer para ter saúde.

ARGAN
O quê? Você não acha verdadeira uma coisa estabelecida por todos e por todos os séculos reverenciada?

BERALDO
Muito ao contrário, cá entre nós, acho-a uma das maiores loucuras dos homens; e, contemplando as coisas como filósofo, não vejo palhaçada mais divertida, nada de mais ridículo, que um homem a querer curar outro.

ARGAN
Por que, meu irmão, você não quer aceitar que um homem possa curar outro?

BERALDO
Por um simples fato; as peças de nossa máquina são mistérios; até hoje os homens não entendem patavina destas coisas; e a natureza colocou véus demasiado espessos, diante dos nossos olhos, para que possamos enxergar alguma coisa.

ARGAN
Na sua opinião, os médicos não sabem nada?

BERALDO
Sabem grande quantidade de humanidades, sabem falar em belo latim, sabem batizar em grego todas as doenças, defini-las e classificá-las; mas, quando se trata de curar não sabem nada de nada.

ARGAN
Mas pelo menos vamos convir: nessa matéria, os médicos sabem mais que os outros.

BERALDO
Sabem o que eu já disse e que não cura grande coisa; e toda a excelência de sua arte e uma pomposa parlapatice, um especioso dialeto, a oferecer palavras como razões e promessas como efeitos.

ARGAN
Mas, meu irmão: há pessoas tão sensatas e hábeis quanto você, e essas pessoas, quando adoecem, chamam médicos.

BERALDO
Aí está uma marca da fraqueza humana, e não uma verdade da arte médica.

ARGAN
Mas os médicos certamente crêem na verdade de sua arte. Pois se servem dela para si mesmos.

BERALDO
É que há entre eles os que estão, eles próprios, atolados no erro popular, de onde tiram proveito: e outros que aproveitam sem acreditar no erro. Veja o Doutor Purgon, por exemplo, homem sem a menor finura: é médico, da cabeça aos pés; um homem que crê nas suas regras mais do que em todas as demonstrações matemáticas, e julgaria crime examiná-las: não vê nada de obscuro na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil: e, com uma impetuosidade de prevenção, uma confiança cega, uma total brutalidade de senso comum e de razão, sai por aí a dar lavagens e sangrias! Não devemos querer mal a ele por tudo quanto deseja fazer por você: é com a melhor boa-fé do mundo que irá mandá-lo para o outro mundo. Quando o matar, terá feito com você o que fez com a mulher e os filhos e o que acabará fazendo com ele mesmo.

ARGAN
Você tem é implicância com ele! Mas vamos ao fato: que devemos fazer quando adoecemos?

BERALDO
Nada.

ARGAN
Nada?

BERALDO
Nada. Nada de ficar em repouso. Quando deixamos agir a natureza, ela se safa docemente da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência que estragam tudo; e quase todos os homens morrem dos seus remédios, não de suas doenças.

ARGAN
Mas é preciso concordar, meu irmão: pode-se ajudar a natureza por certos meios.

BERALDO
Santo Deus! Estas são idéias que gostamos de cultivar; em todos os tempos, surgem entre os homens belas fantasias em que acabamos acreditando, porque é agradável imaginá-las verdadeiras. Quando um médico fala de ajudar, de socorrer, de aliviar, de arrancar da natureza o que a aflige e de lhe dar o que lhe falta, de restabelecê-la no pleno gozo de suas funções, quando fala de corrigir o sangue, de temperar as entranhas e o cérebro, de esvaziar as glândulas, de sossegar o peito, de consertar o fígado, de fortificar o coração, de restabelecer e conservar o calor natural, e de ter segredos para prolongar a vida, está falando justamente do romance da medicina. Mas quando se vai à verdade da experiência, não se encontra nada disto: tudo é como os belos sonhos, que ao despertar nos deixam apenas a tristeza de ter acreditado neles.

ARGAN
Muito bem! Toda a ciência do mundo está guardada na sua cabeça! E você sabe mais que todos os grandes médicos do século!

BERALDO
Nos discursos e na ação, são pessoas diferentes esses seus grandes médicos: quando falam, são os mais hábeis do mundo; quando agem, são os mais ignorantes dos homens.

ARGAN
Ah! Pelo que vejo, você é um grande doutor, e eu gostaria que aqui estivesse algum desses senhores, para revidar seus raciocínios e baixar o seu topete.

BERALDO
Não me atribuo a tarefa de combater a medicina, meu irmão; cada um corra o risco de crer no que quiser. O que eu digo é entre nós; e eu gostaria de levá-lo, para divertir-se sobre o assunto, a ver alguma das comédias de Molière.

ARGAN
Aí está um bom impertinente, esse Molière, com suas comédias! E não deixa de ser um gaiato, quando zomba de gente honesta como os médicos!

BERALDO
Não é dos médicos que ele zomba: é do ridículo da medicina.

ARGAN
Fica-lhe muito bem meter-se a controlar a medicina! Aí está um belo joão-ninguém, a zombar de consultas e receitas, a atacar a corporação dos médicos, a exibir no teatro pessoas verdadeiras como os doutores!

BERALDO
Que é que você quer que ele exiba? Todas as profissões? Aí se exibem também todos os dias os príncipes e os reis, gente tão decente quanto os médicos.

ARGAN
Com mil demônios! Se eu fosse médico, me vingaria de sua impertinência! E quando adoecer, deixem morrer sem socorro esse senhor Molière! Eu o deixaria falando sozinho, não lhe receitaria a menor sangria, o menor clister! E lhe diria: morra, morra! Isto te ensinará a zombar da Faculdade!

BERALDO
Que cólera contra ele!

ARGAN
Estou com raiva, sim! É um tolo! E se os médicos têm juízo, farão o que eu digo!

BERALDO
Terá mais juízo do que os seus médicos, porque não lhes pedirá socorro.

ARGAN
Pior para ele, se não usa remédios.

BERALDO
Para isto tem suas razões; e sustenta que só os robustos e vigorosos podem fazê-lo, suportando os remédios e ao mesmo tempo a doença; quanto a ele, diz que só tem forças para carregar seu próprio mal.

ARGAN
Que razões tolas! Chega de falar desse homem: isto me esquenta a bílis e me faz piorar.

BERALDO
Para mudar de assunto, quero dizer-lhe: você não deve mandar sua filha para um convento pelo fato de ela mostrar suas pequenas repugnâncias. Para a escolha de um genro, não se deve seguir cegamente a paixão que o arrebata. Neste assunto, deve-se procurar atender um pouco às inclinações da jovem. Trata-se de uma escolha para toda a vida, e dela depende a felicidade do casamento.

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A peça pode ser baixada, em PDF, neste link.

Decameron: Giovanni Boccaccio descreve as atribulações dos florentinos durante a Peste Negra

Giovanni Boccaccio

Leia o trecho abaixo e ajuste seu senso das proporções.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

“E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

“Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação.

“E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.

“É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse. Digo que era tamanha a eficácia de tal peste em passar de um ser a outro, que ela não o fazia apenas de homem para homem, mas fazia muito mais (coisa que indubitavelmente ocorreu várias vezes), ou seja, o animal não pertencente à espécie do homem que tocasse as coisas do homem que adoecera ou morrera dessa doença não só adoecia também como morria em brevíssimo espaço de tempo. Tive, entre outras, a seguinte experiência, coisa vista com meus próprios olhos, como há pouco disse: um dia tendo os farrapos de um pobre homem morto da doença sido jogados na via pública, dois porcos se aproximaram deles e, conforme é seu costume, primeiro os fuçaram e depois os tomaram entre os dentes para sacudi-los; em pouco tempo, como se tivessem tomado veneno, após algumas contorções ambos caíram mortos sobre os trapos que em má hora haviam puxado.

“De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. E podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem viver, tinham abandonado suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, em sua maioria, tinham se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e, apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse. Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios. Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira.

“E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos. E, do fato de estarem os doentes abandonados por vizinhos, parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse, se importava de ter um homem a seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos.

“Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. Essas coisas, depois do aumento da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras em seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor, como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges; em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina, aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. E eram raros aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.

“E, deixando de lado todas as particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes, onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias, sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas quase como animais. Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos em seus costumes, eles não cuidavam de suas coisas nem de seus afazeres; ao contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no presente. Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por pastores.

“Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho (por força da doença pestífera e porque muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados em suas necessidades, devido ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!”

Trecho de Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375)

O décimo terceiro apóstolo

Outro dia, assisti no Youtube a uma entrevista do John Cleese (ex-integrante do grupo Monty Python) concedida ao ótimo e sempre elegante Dick Cavett. Falavam sobre o filme A Vida de Brian.

Cleese comenta que a idéia original era tornar Brian o décimo terceiro apóstolo de Cristo, aquele que sempre chegaria atrasado às reuniões, que ficaria extremamente confuso com as parábolas e cuja mãe, controladora que só, atrapalharia seu ministério religioso. Mas os membros do Monty Python, nem um pouco idiotas, refletiram: ora, Jesus, sendo Deus, sendo o homem perfeito, sempre conseguiria dar a volta por cima, tolerar o Brian e ensinar-lhe muitas coisas. Ou seja: não teria graça, pois, como diz Cleese, citando Aristóteles sem o perceber, “a comédia é a imitação de pessoas piores do que a gente”. Como fazer humor de alguém que é infinitas vezes melhor do que nós? Não funcionaria.

Não sei se os membros do Monty Python acreditam ou não em Jesus, não sei se são ou não cristãos. Sei apenas que alguns deles de vez em quando dizem algumas besteiras sobre política no Twitter, o que, na confusão dos dias atuais, é compreensível. Mas o fato é que, na época em que escreveram o roteiro de A Vida de Brian, demonstraram entender de símbolos — e isto basta para a arte.

De início, quando ouvi a idéia sobre o “décimo terceiro apóstolo”, pensei: terão temido as críticas dos cristãos? E logo vi que não: coragem não lhes faltava, nem ousadia. Mas, além dessas virtudes, também possuíam imaginação moral e compreensão de arquétipos. Ora, antes de o sujeito ser irreverente, ele precisa primeiro conhecer a reverência. Mas vai tentar enfiar isto na cabeça desses supostos humoristas que hoje andam por aí…

Como destruir a Mulher Maravilha

No final de semana, enquanto zapeava na Net, notei um contraste curioso: há filmes em que bravas mulheres (umas mais, outras menos maravilhas) liquidam heroicamente monstros, máfias, exércitos e vilões interplanetários sem sequer desmanchar o próprio cabelo, suar ou borrar a maquiagem; e há filmes em que mulheres, numa pusilanimidade de pasmar bisavó centenária, quase morrem ao tentar cuidar de dois ou três filhos traquinas e remelentos. Entre estas últimas, muitas apresentam uma constituição física mais brutal do que as mulheres maravilhas, mas, infelizmente, é como se, no fundo, fossem super-mulheres cujos filhos nasceram compostos de kryptonita.

Ou seja: para Hollywood, enfrentar um tanque de guerra com um bracelete polido e reluzente, ou uma hidra de sete cabeças com um canivete suíço cor-de-rosa, é muito mais fácil, mais agradável e menos perigoso do que ser mãe. Pelo jeito, crianças são mais terríveis e fatais do que o Alien e o tubarão agindo em conjunto. “Evite-as a todo custo”, parecem alertar os roteiristas.

Isto também significa que a melhor maneira de um vilão torvo e maquiavélico derrotar a Mulher Maravilha seria dando um jeito de fazê-la engravidar — talvez lhe apresentando um sujeito bonito, bacana, inteligente e bem-humorado. Vai que rola um match, uma química. (Não sei se a Mulher Maravilha liga para dinheiro ou sucesso, parece-me que não, de onde se deduz que eu mesmo poderia fazer parte do malvado plano.) Então, inocentemente, o fulano colocaria seus malignos girinos transparentes no útero da pobre super-heroína. Ao nascer, o filho maravilha acabaria com ela: haveria depressão pós-parto, sensação de inutilidade, cansaço, exaustão, brigas com o Fulano, vômitos sobre a fralda suja e muita reação alérgica às remelas de kryptonita.

Sim, admirável Hollywood feminista, é mais fácil destruir os inimigos, sem sofrer nenhum arranhão, do que amar os próprios filhos. Vai nessa.

Retardados

Um caminhão carregado de laranjas tombou em frente ao Instituto Antônio Houaiss. Não foi um acidente: as próprias laranjas, após uma acalorada reunião, o tombaram. Em seguida, rolaram até a portaria do prédio, onde começaram a protestar, afirmando que o uso de seu nome, enquanto referência a um crime de natureza política, denigria sua imagem.

Um militante do movimento negro, passando por lá naquele mesmo instante, ouviu a terrível palavrinha — “Denigrir”?! — e enfezou-se. Sim, diria o vulgo, como se estivesse cheio de fezes.(O vulgo não sabe que a palavra “enfezar” vem do latim infensare.) E o militante, pois, furibundo, começou a pisotear as laranjas, que então gritaram de dor:

— Ai! Ele tá judiando da gente!

Ao ouvir aquilo, um careca (sim, um neonazista com as suásticas tatuadas ocultas sob a camiseta) — irritar-se-ão os que sofrem de calvície? — enfim, um careca iniciou um discurso no qual dizia que não apenas o holocausto, mas até mesmo os pogrons, nunca aconteceram. E também passou a sapatear sobre as pobres frutas. De fato, ouviu-se uma idosa dizer claramente: “Pobres frutas!”. E isto, claro, ofendeu um mendigo que, até então, limitara-se a observar silenciosamente a cena:

— Fruta é o veado do seu filho!

Para quê… Um militante gay enfureceu-se com aquilo, e então berrou:

— Veado é a mãe! Eu sou é gay.

No zoológico ao lado, o veado macho, líder do bando, pai zeloso, subiu nas tamancas, bradando lá de dentro:

— Como é que é?! Mãe?! Tá me estranhando?

E logo pulou a cerca, indo chifrar o militante gay.

O furdunço foi tamanho, que o Dicionário Houaiss, o famigerado Pai-dos-burros, que anos atrás já tivera problemas enormes com os ciganos (informe-se), levantou-se da prateleira e, da janela do prédio, ralhou a plenos pulmões com seus filhos, todos ali, engalfinhados na calçada, a rolar sobre marolas de suco de laranja:

— Parem de confundir o sentido literal ou o etimológico com o sentido conotativo, seus retardados!

Olharam-no pasmados, mas, sem dar com o significado daquelas estranhas palavras, partiram, em uníssono, para uma nova ignorância:

— Aquele livro falante ofendeu as pessoas portadoras de deficiência mental! Vamos rasgá-lo!

E isso explica por que, em frente ao Instituto Antônio Houaiss, nesta tarde, havia tanto papel misturado a bagaços de laranja.

O Abominável Homem do Campus – Paulo Briguet

Yuri Vieira é um dos melhores e mais engraçados escritores em atividade no Brasil. Em 1997, depois de abandonar cinco cursos universitários — Jornalismo, Engenharia Civil, Engenharia Florestal, Letras e Artes Plásticas — e morar por cinco anos no alojamento estudantil da UnB (Universidade de Brasília), ele resolveu adotar a estratégia de Henry Miller e escrever sobre o seu suposto fracasso. O resultado é o livro “A Tragicomédia Acadêmica — Contos Imediatos do Terceiro Grau”, que tive a felicidade de ler nos últimos dias, com 20 anos de atraso. 

Conheci pessoalmente Yuri Vieira em 2015, durante um encontro de escritores na casa do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, em Richmond, EUA. Há uma década eu já era um leitor dos contos, crônicas e entrevistas publicados em seu blog pessoal. Ao conviver com Yuri por uma semana, comprovei que ele era tudo aquilo e mais um pouco: um cara inteligente, com boas histórias para contar, divertidíssimo e, além de tudo, um razoável cantor, com quem fiz alguns duetos na legendária van dirigida pelo professor Silvio Grimaldo nas estradas da Virgínia. Ah, Yuri gosta de cerveja. 

“A Tragicomédia Acadêmica”, republicado em 2016 pela Vide Editorial, é um livro que parece ter sido escrito por um Henry Miller possuído pelo espírito de Millôr Fernandes. São histórias de uma realidade ao mesmo tempo fantástica e profética, que mais uma vez comprovam a justeza da frase de Hoffmmansthal: “Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na sua literatura”. A universidade descrita por Yuri, absolutamente dominada por delírios ideológicos e egocêntricos, é uma imagem precisa e inesperadamente realista da maioria dos campi brasileiros em 2017. 

Todos os contos do livro são bons, mas eu destacaria dois: “Paralíticos e Desintegrados” e “O Abominável Homem do Minhocão”. O primeiro é uma clara referência paródica ao livro “Apocalípticos e Integrados”, de Umberto Eco. Trata-se de uma delirante entrevista de um jovem estudante de jornalismo com dois figurões da mídia cultural: o jornalista Mauro Austris e o semiólogo e escritor Roberto Eca. Um dia ainda vou gravar um vídeo encenando esse conto, com meu amigo Bernardo Pires Küster no papel de Eca e eu mesmo no papel de Austris. 
“O Abominável Homem do Minhocão” é uma perfeita metáfora do que aconteceu em grande parte do mundo acadêmico brasileiro, em especial nos departamentos de humanidades. Em 1974, com medo de ser preso pela ditadura, um professor refugia-se nos subterrâneos de um prédio universitário e passa a assombrar os alunos e professores da instituição. Para ele, os generais ainda estão no poder e o socialismo continua sendo a esperança da humanidade. 

Ao lado dos bons professores e estudantes, que felizmente ainda são a maioria, lutemos para que a nossa UEL não seja dominada por semelhante fantasma, que aqui se chamaria, sem dúvida, o Abominável Homem do Pinicão. 

Artigo de Paulo Briguet para a Folha de Londrina.
Fale com o colunista: avenidaparana@folhadelondrina.com.br

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