palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Chow! Chow!

— Você não pode dizer “vírus chinês”: isto é ra-cis-mo!
— Deixa de falar abobrinha, Tiago. Eu nem sei qual é a raça do vírus. Não sei se é pequinês, shih tzu, pug, chow chow…
— Ha-ha. Muito engraçado. Vírus não é exatamente um ser vivo. Só vive quando está dentro de você.
— Tá, mas deixa eu voltar aonde parei. Não quero ficar falando das características do zumbi microscópico. Eu só estava dizendo que o vírus chow chow ou pug (você decide a raça), enfim, que ele é uma arma do Partido Comunista deles. Isso é óbvio.
— E eles iam começar matando o próprio povo? Tá bom.
— Caramba, você não entende nada de comunista mesmo. Quem mais mata comunista nesse mundo é outro comunista, garoto.
— Querem parar com essa discussão na hora do almoço? Deixa o menino falar o que quiser, Alfredo.
— E não tô deixando? Mas eu também posso dizer o que eu penso, oras. Esse garoto, depois que entrou na universidade, ficou bobo. Impressionante! Não posso nem falar que “a coisa tá preta” que já me chama de racista. Tô de saco cheio.
— Bom, enquanto as aulas não voltarem, você vai ter de me aturar.
— E vê se pára de me tratar por “você”. Eu sou seu pai e pago as contas. Diga “senhor”, ouviu?
— Ai, que saco.
Tapa na boca.
— Parem já com isso, pelo amor de Deus!
O filho sai e, ao entrar no quarto, bate a porta.
— Esse moleque anda muito impertinente, Marisa. Pior que o vírus chinês é o vírus que ele pegou na faculdade. E ainda arranjou aquela lambisgóia pra namorar. Porra! A menina é careca! Que coisa mais feia!
— Uê, não era você o apaixonado pela Sinéad O’Connor? Vivia cantando pra mim “nothing compares to you”…
— Não compara a Sinéad com a lambisgóia. Nada compares to Sinéad! Ela não tinha um pentagrama satânico tatuado na cabeça e nem piercing nos mamilos.
— Ué! E como você sabe que a Gislaine tem piercing nos mamilos?
— Nossa, Marisa, como você é desatenta. A garota não usa sutiã e vem de camiseta aqui. Você acha que aquilo é o quê? A chave onde você liga e desliga a psicopatia dela?
— Ai, Alfredo, essa quarentena tem de acabar. Vocês dois vão me deixar louca!
— É a faculdade e a… como ela chama?
— Quem?
— A namorada dele, porra.
— Gislaine.
— Então, é ela e a faculdade que estão deixando nosso filho doido e, de tabela, nós dois. Em plena era da Fake news, o moleque foi escolher logo jornalismo para estudar. Que palhaçada.
— Tá, Alfredo, tudo bem. Também não estou satisfeita. Mas você precisa ter mais paciência. Desse jeito você vai acabar enfartando.
— Pelo menos essa agonia acabaria logo.
— Credo, meu amor! Não fala isso.
— Já tem político idiota querendo arrastar a coisa por mais alguns meses. Tem filho da puta dizendo que a quarentena tinha de durar até 2022! Imagine! Se a gente ficar desse jeito mais quinze dias, a empresa vai quebrar e vou acabar na rua.
De máscara, o filho sai do quarto, levando uma mochila às costas.
— Aonde você pensa que vai?
— Já falei com a Gislaine. Vamos morar juntos.
— Mas, meu filho, como vocês vão se manter?
— A gente dá um jeito, mãe. Aqui é que eu não fico mais.
— Deixa ele, Marisa. Assim pelo menos ele vai ver o que é bom pra tosse. Tá achando que sustentar uma esposa é fácil? Uma família então…
— Não tem problema. O Rogério também vai ajudar.
— Ah, é? E agora você vai depender de dinheiro de amigo?
— Ele não é só meu amigo. O Rô também namora a Gislaine. Somos um trisal.
— Meu filho!
— Puta que o pariu! Tá vendo, Marisa? Aquela garota é o cão. É uma islâmica ao contrário! Em breve terá quatro maridos e, em seguida, um harém.
— Pára de falar besteira, pai.
— Besteira? Eu já notei a maneira como ela fala com você: te trata feito um discípulo, um seguidor. Você é todo desafiador comigo, com seu próprio pai que sempre te amou e cuidou de você, e só falta lamber o chão que a Gilânia pisa.
— Gislaine.
— E o que eu disse? Gislânia. Aposto que você é coprófogo e ainda come a merda dela. Seu palhaço fresco.
— Eu e o Rô já bebemos mesmo o mijo dela. Nós três, no chuveiro…
A mãe fica zonza:
— Ai, ai, meu Deus, preciso me sentar.
— Sai daqui, moleque! Vai lá pra tariqa da sua mestra, vai. Vai pro ashram dela. Vai lá beber xixi e só volte quando estiver arrependido, trabalhando de terno e gravata.
— Vou mesmo. Não suporto mais essa caretice, esse conservadorismo hipócrita de vocês.
— Ah, é, somos hipócritas: eu e sua mãe ficamos zangados na sua frente e, mais tarde, na cama, comemos o cocô um do outro.
— Vai, meu filho, vai. Antes que seu pai tenha um troço.
— Tchau pra vocês.
— Isso! Chô chô. Se manda. Chow chow! Vai lá se contaminar ainda mais com esse vírus universitário seu.
— Lula livre!
O filho sai e bate a porta.
— Não disse que a gente devia ter tido uns cinco filhos? Agora não temos mais nenhum.
— Ai, Alfredo, não fala assim.
— Falo, sim, falo. Senão eu explodo!

Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’

Furibundo, o pai decidira: se necessário, iria quebrar a cara daquele professor! Onde já se viu? Isso lá era tarefa que se desse a crianças de dez anos de idade? Não, não deixaria barato. Estava tão indignado, tão furioso, que nem avisara a esposa de que iria à escola. Por que o faria? Ela ainda não sabia de nada. E ele nada lhe dissera, não simplesmente para poupá-la, mas também para evitar que ela o impedisse de levar as coisas às últimas conseqüências.

— No mínimo, no mínimo, esse professor merece um murro na cara! — grunhia.

Colocou a odiada máscara pandêmica e entrou na escola pisando duro, a agenda do filho enrolada na mão direita feito um porrete. O porteiro o interpelou:

— Aonde o senhor vai?

— Tenho uma reunião marcada com o senhor Ferreira.

Impressionado com as feições carregadas daquele pai, o porteiro interfonou imediatamente para a secretária do diretor.

— Sim, sim. Tá certo — murmurou. E para o pai: — O senhor pode entrar. Basta subir aquela escada à direita e…

— Obrigado, eu sei onde é — atalhou secamente o homem, partindo na mesma velocidade com que entrara

Na escada, já se imaginava esculhambando o professor. Dar-lhe um murro, claro, era apenas um sonho vão. Na verdade, ficaria bastante satisfeito com sua demissão e, claro, com sua condenação na Justiça.

O diretor, todo sorridente, já o aguardava à porta da sala. Tinha um ar tranqüilo. A secretária, essa, sim, parecia tensa.

— Boa tarde, doutor Araújo. Como vão as coisas?

— Péssimas — tornou o revoltado pai. — Precisamos esclarecer umas coisas.

— Entre, por favor, entre.

Sentaram-se. Doutor Araújo notou como o diretor, atrás de uma mesa gigante, ficava pequenininho em sua enorme cadeira de escritório. Pequenininho e redondo. A máscara, grande demais, meio caída sob as narinas, tornava-o ainda mais infantil.

— Do que se trata?

— Seu Ferreira, quero que o senhor chame esse tal de professor Luís para me explicar isto aqui — e, desenrolando a agenda escolar que tinha em mãos, mostrou-lhe a página com a absurda tarefa de casa.

O diretor, mudo, leu e releu a página umas três vezes. Não estava chocado, mas já não estava mais tão tranqüilo. Tinha mesmo era um ar de “ai ai, mais um imbróglio para resolver”.

— Bom, doutor… — finalmente disse, entrelaçando os dedos. — De fato, não é uma atividade das mais ortodoxas. Entendo sua preocupação.

— Das mais “ortodoxas”?! “Preocupação”? — enfureceu-se ainda mais. — Seu Ferreira, eu peguei meu filho, no flagra, fazendo troca-troca com outros cinco colegas dele! Cinco! Todos alunos desta escola. E, quando gritei com eles, disseram-me que era uma tarefa. E veja aí: é verdade!

— Troca-troca? Como assim “troca-troca”? — gaguejou o outro.

— Ué, vai me dizer que o senhor não sabe do que se trata? Eles estavam fazendo uma suruba, porra! Comendo os rabos uns dos outros!

— Suruba?! — empalideceu o diretor.

— Sim, exatamente. Garotos de dez anos fazendo suruba a mando de um professor descarado, de um pervertido. Até aquele menininho novato de Taiwan, que mal fala o português, estava lá! Enfim, quero que o senhor chame esse professor aqui… agora!

Sentindo que, caso não convocasse o professor, acabaria tendo de chamar seguranças, ou a cavalaria, serviços que não possuía, seu Ferreira engoliu em seco e, bufando, digitou um número no interfone.

— Dona Dalva, por favor, encontre o professor Luís e diga-lhe que venha urgentemente à minha sala — e ficou a ouvir a réplica. — Não — acrescentou, baixando a voz —, não importa que esteja em aula. Diga-lhe para vir. Qualquer coisa, fique a senhora mesma cuidando da turma dele — e desligou.

Notando mais acuradamente a atmosfera de adrenalina, testosterona e sede de justiça que cercava aquele médico de meia-idade, o diretor decidiu botar água na fervura: não pretendia testemunhar um docentecídio.

— O senhor precisa convir que vivemos novos tempos, doutor — e esboçou um sorriso amarelo. — Aliás, é por isso que contratamos o professor Luís, que é um…

— “Novos tempos”? — rangeu o pai, entredentes. — O senhor deveria saber, seu Ferreira, que, em toda fase decadente de uma civilização, os agentes dessa decadência se acham uns apologistas de grandes novidades. Sempre as mesmas! — e sacudiu a cabeça, sorrindo amargamente. — Novos tempos! Não há nada mais velho e recorrente do que os tais “novos tempos”.

Aquilo foi dito de maneira tão contundente e peremptória que o diretor preferiu calar-se e aguardar em silêncio. Começou a tamborilar a mesa, olhando de esguelha para o relógio de pulso. Embora o professor Luís não tenha levado mais de três minutos para assomar à porta, esses três minutos pareceram ao diretor uma eternidade.

— Bom dia — disse o professor Luís, a mão ainda na maçaneta. — Do que se trata?

— Bem, para começar… — tomou a palavra o diretor.

— Começar? — interrompeu-o o Dr. Araújo. — Mas cadê o professor Luís?

— Ué. Sou eu mesmo.

Dr. Araújo observou a figura de cima a baixo: uma mulher atarracada, uns seis meses de gravidez na barriga, os cabelos curtos pintados de azul, óculos redondos, uma atitude impertinente — talvez devido à máscara que só lhe cobria o queixo — e, o que lhe apareceu ainda mais esquisito, um buço aparentemente tingido de escuro à guisa de bigode.

— Mas… você é uma mulher! — exclamou, vendo seus sonhos de esmurrar um pervertido irem por água abaixo.

A figura crispou as mãos e se abespinhou de imediato:

— Ora, o senhor me respeite! Não sou uma mulher! — replicou, batendo um pezinho no chão e engrossando comicamente a voz, o que quase desconcentrou o pobre médico, já que essa voz lembrou-lhe claramente o tom com que sua mãe, ao narrar um conto de fadas, interpretava as falas do Lobo Mau.

Desconcertado, o Dr. Araújo virou-se para o diretor:

— Tudo bem, tudo bem — quase gaguejou. — Se ela causou o problema, é com ela mesmo que…

— “Ela”, não! — berrou o professor Luís, colocando a máscara na posição correta. — Eu sou um homem trans! Não seja transfóbico comigo!

Dr. Araújo arregalou os olhos:

— Transfó… — e deu um pequeno murro na própria coxa. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece com essas besteiras políticas para cima de mim. Vim aqui discutir algo muito sério. Não vim para defender que a grama, em vez de cor-de-rosa, é verde. Eu sou médico obstetra, caramba! Onde já se viu? Um homem grávido?

— Isso mesmo! Sou homem e estou grávido. Só o mais rasteiro preconceito é incapaz de admitir isso.

— Preconceito? Quem não admite isso é a natureza. O bebê está onde? Na próstata? No saco escrotal? Vai sair pela uretra?

O professor Luís deu um passo ameaçador na direção do médico, fato esse que alarmou o diretor:

— Por favor, doutor — interveio seu Ferreira, limpando o suor da testa. — Tente ser mais cordial. Estamos aqui para ouvir suas queixas.

— OK. Se ela não vier com essas…

— “Ela”, não! Meus pronomes são “ele” e “dele”. Já disse: eu me identifico como homem. Então, fale comigo sem ser preconceituoso.

O doutor, em sua irritação, quase se levantou da cadeira. Odiava ter de trair sua apreensão direta do mundo. Mas, após remexer-se por um segundo, teve um insight e voltou a acomodar-se. Decidiu aderir estrategicamente ao jogo:

— Está certo! Entendi — soltou, num tom de quem dava o braço a torcer. — Então, por favor, exijo reciprocidade: meus pronomes são “vós” e “vossos”. Eu me identifico com um conde do século XVIII. Tratem-me de acordo.

— Dr. Araújo, o senhor não pode…

— “Vós não podeis”.

— Hum?

— “Vós não podeis”. Use comigo a segunda pessoa do plural.

O diretor relanceou um olhar confuso para o professor Luís, que permanecia de pé, numa atitude severa de galinha choca. Estava certo aquilo? Uma pessoa também podia identificar-se como um conde do século XVIII? Como seus olhos não encontraram qualquer reação ou resposta cúmplice da parte daquele indignado “homem trans”, retomou a palavra.

— Doutor Araújo, vós… bem, vós não podeis se dirigir a uma pessoa trans…

— “Conde Araújo, vós não podeis dirigir-VOS…”

O diretor calou-se e cerrou os olhos, petrificado como uma estátua. O doutor quase podia ouvi-lo contando internamente até dez. Por alguma razão, pensou, a exasperação do diretor era uma espécie de socialização da sua própria indignação. Até sentiu que seu fardo estava mais leve, uma vez que mais alguém ajudava a carregá-lo. Talvez o próprio diretor percebesse o ridículo daquela situação, mas, para manter o emprego, via-se obrigado a seguir o faz-de-conta.

— Bem, vamos prosseguir com o que realmente interessa — disse finalmente seu Ferreira, abrindo os olhos. E respirou fundo: — O caso, professor Luís, é que o dou… quero dizer, o Conde Araújo tem uma reclamação justa e pode prová-la: veja a tarefa anotada pelo filho vosso… quer dizer, vosso filho dele. É verdade que você mandou os meninos fazerem uma… — e pigarreou: — uma suruba?

O professor Luís, de braços cruzados sobre o barrigão, o queixo erguido, mantinha uma atitude desafiadora:

— Suruba? — e deu uma risadinha desdenhosa. — Imagino que pessoas caretas e recalcadas até poderiam interpretar assim, mas a tarefa que dei pra eles foi a de conhecer os corpos uns dos outros. Como vão saber se preferem namorar meninos ou meninas? Precisam se conhecer. Por isso nunca disse que isso devia ser feito apenas entre meninos.

O médico mal podia acreditar no que ouvia:

— Conhecer os corpos! Meu Deus… — e suspirou. — Então, para conhecer alguma coisa eles precisam usar o tato, a pele, esfregando-se uns nos outros, tocando-se, pegando nos órgãos genitais alheios e o pior: metendo os pauzinhos nos cus uns dos outros? Namorar uma pinóia! Isso é troca-troca! E não havia menina nenhuma! Se houvesse, tanto pior! Eles são crianças! Crianças! Entendeu? Mas, enfim, o fato é que era uma surubinha gay!

O professor Luís, mal contendo uma veleidade de sorriso, passou tranqüilamente uma mão pela cabeça colorida:

— Admito que mandei eles se desnudarem, se tocarem, se esfregarem, para melhor se conhecerem. Mas não mandei ninguém comer ninguém.

— Ah, isso é muito bonito: “Mandei esparramarem a gasolina pelo chão e acender o fósforo, mas não mandei ninguém incendiar a casa”. Você é retardada por acaso?

— “Retardada”, não! Mais respeito com os defi…

— Ah, me desculpe, errei o gênero: você é retardado?

Mais tarde o Dr. Araújo, ao narrar a cena para a esposa, compararia o que se seguiu a uma dessas cenas em câmera lenta de filme de ação: numa fração de segundo, o professor Luís, com a mão direita erguida, o olhar alucinado, voou em sua direção com o claro intuito de estapeá-lo, porém, o diretor, com a agilidade de um macaco-prego, sim, um macaco gordinho, galgara simultaneamente a mesa, atirando-se sobre o professor antes que o tabefe fosse desferido. Ambos caíram ao chão, atrelados um ao outro, o que muito preocupou o médico obstetra, que avançou para tentar proteger com as mãos o inocente nascituro. O professor, sem sucesso, tentava livrar-se do abraço pacificador do diretor e parecia acreditar que o doutor tencionava agredi-lo. A essa altura, ninguém mais usava máscaras.

— Que loucura! Vocês vão matar a criança! — berrou o doutor, os olhos esbugalhados.

Alarmado com essa observação, o diretor engatinhou a um lado, ao passo que o professor caía das nuvens, preocupadíssimo, aceitando as mãos do médico sobre sua barriga:

— Nossa, doutor! Será que aconteceu alguma coisa com mi filhe? — balbuciou num tom surpreendentemente feminino.

— “Mi filhe”? — E num esgar: — Que diabo de língua é essa? Esgueiranto?

O diretor não agüentava mais:

— Pelo amor de Deus, não recomecem! Chega de provocações! Pode ser?

Sem responderem nem que sim, nem que não, médico e paciente obedeceram tacitamente ao já irado diretor. O doutor Araújo, com um ar compenetrado, profissional, apalpou o ventre do professor por todos os lados. Por fim, aliviado e satisfeito, ergueu-se e declarou:

— Não se preocupe. Está tudo bem.

— Obrigado, doutor.

— Está vendo? — acrescentou o médico, solícito, numa sinceridade inocente e transbordante. — Homem ou mulher, pouco importa: você já é uma boa mãe.

Para quê… O professor Luís voltou a enfurecer-se:

— “Mãe”, não! Pai! Pai! Eu sou é o pai!

— E a mãe é quem? — retrucou o médico, cruzando os braços. — Um dos irmãos… digo, uma das “irmãs” Wachowski? O mundo virou mesmo uma Matrix, uma simulação insuportável…

O professor rosnou, fora de si, fazendo menção de levantar-se. No entanto, antes que a coisa voltasse a azedar, o diretor se interpôs:

— Por favor, doutor… conde… ou o caralho a quatro: retirai-vos. Sim? Dou por encerrada esta reunião. Conversaremos novamente noutra oportunidade.

Enquanto seu Ferreira ajudava o professor Luís a se levantar, o doutor pegou a agenda do filho e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, virou-se ainda uma vez:

— Obrigado por sua atenção, seu Ferreira, mas não voltaremos a nos falar. Aguarde a visita do meu advogado. Ficarei muitíssimo satisfeito quando esse escândalo estourar e vocês dois estiverem na cadeia — e sorriu cinicamente: — Aliás, professor Luísa, estou curioso para saber se você vai gostar da prisão masculina. Muitos homens vão querer dividir a cela com você…

E, tendo dito isso, saiu, sem deixar de reparar nos olhos arregalados da secretária, que, ao vê-lo, fingiu-se de muito ocupada.

Quando chegou em casa, o doutor, aliviado e seguro de si, finalmente contou tudo à esposa, que, até então, nem sequer havia se inteirado do famigerado troca-troca. Escandalizada, persignando-se, instou o marido a abrir um processo contra a escola o mais rápido possível. Naquele mesmo dia, ele entrou em contato com seu advogado, que lhe garantiu: a indenização estaria na casa dos seis dígitos, talvez até dos sete. De fato, o advogado foi ligeiro e, na semana seguinte, o processo estava aberto.

— A Justiça não o deixará na mão, doutor Araújo — disse-lhe ao telefone.

No mesmo dia, um camburão da polícia foi à casa do médico — para prendê-lo, claro, afinal, ele havia cometido o horroroso crime de transfobia. Sim, o professor Luís, muito escolado nessas questões de “perseguição fascista”, havia gravado, em seu celular, todo o diálogo ocorrido, tendo entregado à polícia uma versão editada na qual só se ouvia, como mais tarde noticiou a imprensa, “o discurso de ódio do maligno médico obstetra”. De fato, a professora… perdão, o professor não era nada bobo.

Sentado na traseira do camburão, o médico, que de tanta cólera finalmente atingira um estado de serena passividade, não conseguia esquecer o diálogo que tivera com o filho, na ocasião do flagra, logo após a partida dos coleguinhas:

— Meu filho, você não tem vergonha?! Isso lá é coisa que se faça?

— Calma, pai! — dizia o garoto, sorrindo.

— Que calma o quê! E tira esse sorriso bobo da cara!

— Bobo, não! Eu sou é muito esperto!

— Ah, é! Muuuito esperto! Deixar os outros come… — e pigarreou: — Deixar cinco moleques pegarem na sua bunda agora é esperteza?

— Não, pai: eu sou muito esperto mesmo. Na verdade, eu comi todo mundo e só dei uma vez! E dei justamente pro Liu Xiang, que tem um pau desse tamaninho!

No camburão, o médico imaginava que, se tivesse uma personalidade diferente, se fosse, como se diz, mais “zoeiro”, talvez até tivesse achado graça naquilo: “Nossa, meu filho é esperto mesmo! Comeu todo mundo e só deu uma vez”. Mas era impossível, pois não tirava da cabeça a imagem do filho ao ser flagrado: aquele olharzinho maquiavélico, ladino, calculista… aquele sorrisinho perverso, dos mais devassos… E ele só tinha dez anos de idade!

— Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’ — murmurava sem parar, o olhar perdido, a cabeça a golpear, a cada solavanco, a janela da viatura.

                FIM

Decameron: Giovanni Boccaccio descreve as atribulações dos florentinos durante a Peste Negra

Giovanni Boccaccio

Leia o trecho abaixo e ajuste seu senso das proporções.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

“E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

“Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação.

“E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.

“É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse. Digo que era tamanha a eficácia de tal peste em passar de um ser a outro, que ela não o fazia apenas de homem para homem, mas fazia muito mais (coisa que indubitavelmente ocorreu várias vezes), ou seja, o animal não pertencente à espécie do homem que tocasse as coisas do homem que adoecera ou morrera dessa doença não só adoecia também como morria em brevíssimo espaço de tempo. Tive, entre outras, a seguinte experiência, coisa vista com meus próprios olhos, como há pouco disse: um dia tendo os farrapos de um pobre homem morto da doença sido jogados na via pública, dois porcos se aproximaram deles e, conforme é seu costume, primeiro os fuçaram e depois os tomaram entre os dentes para sacudi-los; em pouco tempo, como se tivessem tomado veneno, após algumas contorções ambos caíram mortos sobre os trapos que em má hora haviam puxado.

“De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. E podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem viver, tinham abandonado suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, em sua maioria, tinham se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e, apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse. Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios. Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira.

“E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos. E, do fato de estarem os doentes abandonados por vizinhos, parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse, se importava de ter um homem a seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos.

“Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. Essas coisas, depois do aumento da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras em seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor, como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges; em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina, aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. E eram raros aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.

“E, deixando de lado todas as particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes, onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias, sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas quase como animais. Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos em seus costumes, eles não cuidavam de suas coisas nem de seus afazeres; ao contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no presente. Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por pastores.

“Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho (por força da doença pestífera e porque muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados em suas necessidades, devido ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!”

Trecho de Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375)

O Abominável Homem do Campus – Paulo Briguet

Yuri Vieira é um dos melhores e mais engraçados escritores em atividade no Brasil. Em 1997, depois de abandonar cinco cursos universitários — Jornalismo, Engenharia Civil, Engenharia Florestal, Letras e Artes Plásticas — e morar por cinco anos no alojamento estudantil da UnB (Universidade de Brasília), ele resolveu adotar a estratégia de Henry Miller e escrever sobre o seu suposto fracasso. O resultado é o livro “A Tragicomédia Acadêmica — Contos Imediatos do Terceiro Grau”, que tive a felicidade de ler nos últimos dias, com 20 anos de atraso. 

Conheci pessoalmente Yuri Vieira em 2015, durante um encontro de escritores na casa do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, em Richmond, EUA. Há uma década eu já era um leitor dos contos, crônicas e entrevistas publicados em seu blog pessoal. Ao conviver com Yuri por uma semana, comprovei que ele era tudo aquilo e mais um pouco: um cara inteligente, com boas histórias para contar, divertidíssimo e, além de tudo, um razoável cantor, com quem fiz alguns duetos na legendária van dirigida pelo professor Silvio Grimaldo nas estradas da Virgínia. Ah, Yuri gosta de cerveja. 

“A Tragicomédia Acadêmica”, republicado em 2016 pela Vide Editorial, é um livro que parece ter sido escrito por um Henry Miller possuído pelo espírito de Millôr Fernandes. São histórias de uma realidade ao mesmo tempo fantástica e profética, que mais uma vez comprovam a justeza da frase de Hoffmmansthal: “Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na sua literatura”. A universidade descrita por Yuri, absolutamente dominada por delírios ideológicos e egocêntricos, é uma imagem precisa e inesperadamente realista da maioria dos campi brasileiros em 2017. 

Todos os contos do livro são bons, mas eu destacaria dois: “Paralíticos e Desintegrados” e “O Abominável Homem do Minhocão”. O primeiro é uma clara referência paródica ao livro “Apocalípticos e Integrados”, de Umberto Eco. Trata-se de uma delirante entrevista de um jovem estudante de jornalismo com dois figurões da mídia cultural: o jornalista Mauro Austris e o semiólogo e escritor Roberto Eca. Um dia ainda vou gravar um vídeo encenando esse conto, com meu amigo Bernardo Pires Küster no papel de Eca e eu mesmo no papel de Austris. 
“O Abominável Homem do Minhocão” é uma perfeita metáfora do que aconteceu em grande parte do mundo acadêmico brasileiro, em especial nos departamentos de humanidades. Em 1974, com medo de ser preso pela ditadura, um professor refugia-se nos subterrâneos de um prédio universitário e passa a assombrar os alunos e professores da instituição. Para ele, os generais ainda estão no poder e o socialismo continua sendo a esperança da humanidade. 

Ao lado dos bons professores e estudantes, que felizmente ainda são a maioria, lutemos para que a nossa UEL não seja dominada por semelhante fantasma, que aqui se chamaria, sem dúvida, o Abominável Homem do Pinicão. 

Artigo de Paulo Briguet para a Folha de Londrina.
Fale com o colunista: avenidaparana@folhadelondrina.com.br

Rodrigo Gurgel: “Dr. João Pinto Grande — um herói para o nosso tempo”

Resenha crítica de Rodrigo Gurgel, crítico da Folha de S. Paulo  e do Jornal Rascunho:

O mais recente livro de Yuri Vieira, A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, esconde, sob o título atrevido, ao menos dois contos que merecem leitura cuidadosa.

“Amarás ao teu vizinho” é uma aventura da qual participa o personagem que dá nome à coletânea. O substantivo aventura, contudo, não expressa com acerto a índole e o tom da narrativa, composta, em grande parte, de longos diálogos, pois os riscos e peripécias enfrentados pelo protagonista extrapolam o campo das façanhas heroicas a que o senso comum está acostumado, avançando para camadas menos superficiais do comportamento humano.

No primeiro diálogo, o protagonista encontra-se, no portão de sua casa, com Francisco, morador do “único casebre miserável da rua”, sempre disposto, quando bêbado, a conversar com o Dr. João. O diálogo é sugestivo, bem construído, com leves tiradas humorísticas — a analogia entre o desenho do Pica-Pau e a ideia budista da vida como sofrimento, por exemplo, quebra o tom filosófico e paternalista que Pinto Grande concede às suas falas, tão longas que obrigam o paciente Francisco a isolar-se em sua curiosa busca do samádi. No final da narrativa, aliás, o próprio Dr. João, recordando esse diálogo, reconhecerá o erro de trocar “caridade por papo-cabeça sobre o amor”, trecho que demonstra o controle de Yuri Vieira sobre suas histórias: o que, no início, parecia hesitação ou descuido com os rumos da trama, revela-se introdução adequada ao tema que será aprofundado no segundo diálogo.

Na verdade, o conto esconde detalhado planejamento: desde o primeiro parágrafo, duas linhas narrativas se anunciam, ambas marcadas pelo tema da “vizinhança”: o diálogo com Francisco, vizinho pobre e desprezado por toda a rua, inclusive pela própria família, e a visita ao casal Josif e Draga, antigos vizinhos de Pinto Grande, quando era adolescente, com os quais jantará minutos depois.

Quanto mais avançamos nessa noite em que a relação com o próximo será triturada, exposta em suas contradições e levada a paroxismos, mais percebemos o intrincado enredo a que fomos conduzidos: o jantar transforma-se numa descida ao vale do Flegetonte, para conhecer não só a violência contra nossos semelhantes, mas também homens distintos: os que soçobram diante do apelo a diferentes gestos de agressão e aqueles que, dominando seus instintos, recusam o Mal.

Yuri Vieira constrói, assim, raro exemplo de conto filosófico — e não ideológico. Não se trata de uma peça de propaganda política ou religiosa, não há ideias a priori que o autor deseja propagandear. A interrogação a respeito de nossa relação com o Outro manifesta-se nas situações vividas durante o jantar, em longo e diversificado diálogo, quando os personagens se entrechocam num antagonismo crescente. Os extremos a que somos levados, do inocente diálogo com Chico ao terrível embate na casa dos iugoslavos, são representações realistas dos encontros e desencontros a que estamos fadados — e não meras abstrações de um ideólogo que desejou escrever ficção. O conto dá concretude às escolhas humanas, tantas vezes próximas do completo desatino. E dessa noche oscura, em que os personagens se debatem à procura de saídas para o desespero, emerge, no final perfeito, a límpida figura do Dr. João Pinto Grande, plenamente livre em seu repúdio ao Mal.

O gênero do conto é conduzido, assim, a regiões pouco visitadas em nossa literatura contemporânea: longe dos insignificantes quebra-cabeças linguísticos ou dos narradores ambíguos — que, na verdade, escondem escritores preguiçosos —, o leitor terá de respirar numa atmosfera espessa, hostil, de informações adversas, na qual pieguice e vitimismo são substituídos pela correta — e esquecida — consciência do que é uma virtude.

Verdugos hipócritas

“A menina branca” segue chave diversa. Nesse conto, o destino de Edgard, o protagonista, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o Brasil luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela nos recorda a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em A marca humana.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

O narrador de “A menina branca” nos sequestra desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo é perfeito.

Yuri também demonstra timing correto e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por um inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

A narrativa, contudo, esconde, nas entrelinhas da derrocada de Edgard, crítica perturbadora: o personagem erra não por sua própria vontade, mas pressionado pelo que se costuma chamar, na falta de expressão menos demagógica, de opinião pública. É o paradoxo do nosso tempo: ser levado ao erro pela vontade cega do politicamente correto — e depois ver-se condenado por esses mesmos verdugos hipócritas.

Yuri Vieira não sofre, decididamente, de narratofobia. E agora sinto-me obrigado a ler todos os contos.

Rodrigo Constantino: “A imaginação moral de Yuri Vieira e A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande”

Nunca tinha lido nada de Yuri Vieira. Que desperdício de tempo! O prejuízo foi meu, certamente. Li sobre seu livro A Tragicomédia Acadêmica – Contos Imediatos do Terceiro Grau, em A corrupção da inteligência, de Flávio Gordon,  fiquei curioso e o comprei. E logo o devorei.

Lembrei, depois, que meu editor Carlos Andreazza tinha me mandado de presente seu novo livro, A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, cujo título já é uma comédia em si. Resultado: tive uma “overdose” de Yuri Vieira nos últimos dias, com a sensação de ter de recuperar o tempo perdido, de quando ainda não conhecia seus contos hilários, seu estilo envolvente.

Edmund Burke falou en passant do conceito de “imaginação moral”, que foi elaborado por Russell Kirk depois e se tornou uma ideia cara aos conservadores. G.K. Chesterton, T.S. Eliot, Tolkien e C.S. Lewis são exemplos claros de escritores que trabalharam bem com essa noção de “imaginação moral”, e transmitiram valores tradicionais por meio de suas histórias fantásticas e seus personagens encantadores.

Por acaso, terminei junto com os livros de Yuri a quinta e última temporada da série “Father Brown”, da BBC, inspirada no personagem criado por Chesterton, um dos meus favoritos (que delícia era ler seus contos antes de dormir!). Pois bem: o advogado de nome curioso, Dr. João Pinto Grande, remeteu-me ao Padre Brown, com sua postura cristã, seu desejo de realmente ajudar, fazer o bem, ser uma pessoa melhor, acreditar no outro, apostar no próximo, ter fé na humanidade, apesar de tudo.

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Yuri passa as mensagens que eu tento também transmitir em meus textos, mas com incrível leveza e contando uma história divertida, muitas vezes surreal, que prende o leitor do começo ao fim. Até mesmo uma aula de Bitcoin e de escola austríaca ele conseguiu encaixar num conto que ficou, acreditem, leve e divertido. Há críticas ao feminismo, ao esquerdismo em geral, ao vegetarianismo radical, e tudo isso navegando pelas questões religiosas profundas, com excelentes diálogos.

No livro anterior, tem umas histórias bizarras que se passam na UnB como cenário, contendo críticas ácidas ao nosso modelo de ensino, aos professores, reitores, artistas e também psicólogos. Numa das histórias, em que o “artista” se torna uma “estátua viva” por acidente e é considerado um gênio, eu chorei de rir, mas depois percebi que era legítimo só chorar mesmo, sem rir, pois chegamos a esse grau de maluquice com nosso relativismo estético:

Até que um dia, desmaiou de exaustão sobre uma de suas telas. Sua cara ficou estampada ali. “Fantástico!”, afirmaram os críticos. “Ele encontrou um estilo próprio. Sente-se sua marca, sua personalidade em cada uma de suas obras. Um gênio!”

[…]

Fazia esculturas com argila. Usava-as, quando ainda úmidas, como travesseiro. Sua casa tornara-se um processo de criação artística. Os críticos aplaudiam. O dinheiro e a fama entravam.

Não é à toa que se trata de uma tragicomédia! A história com a psicóloga também é extremamente engraçada, mas triste ao mesmo tempo, quando penso em tantos psicanalistas que conheço que são exatamente assim, super vaidosos, com um ego maior do que o mundo, tentando posar para a plateia em vez de realmente se conhecer a fundo, exatamente como a autoritária personagem que só se encontrou na academia, onde poderia exercer seu desejo de comando:

Quando se formou, Maria Eugênia foi trabalhar num sanatório. Não agüentou um mês. “Aqueles malucos! Nunca prestavam atenção no que EU dizia…” Depois tentou clinicar. Mas também não deu certo. “Os pacientes? Eles só queriam saber de si mesmos, não me deixavam falar…” Maria Eugênia teve, então, a feliz idéia de seguir a carreira acadêmica. “Mas Maria Eugênia…” “Cala a boca! Afinal quem que é a doutora aqui?” Havia encontrado o seu lugar. O lugar perfeito. Finalmente chegara onde ninguém seria louco o bastante a ponto de enfrentá-la. Os alunos a temiam e a admiravam. Nas reuniões e seminários era sempre sua a última palavra.

Se o leitor não conhece uma psi assim, é porque não conhece muitas psis. As taras moderninhas orientais, substitutas para uma religião mais exigente como o cristianismo, também são ironizadas nos contos, assim como o socialismo, a seita secular onipresente na academia. Um desses dinossauros viveu anos no esgoto e nem percebeu o tempo passar, exatamente como tantos militantes disfarçados de “professores” que pululam nossas salas de aula e não se deram conta da queda do Muro ainda:

Não acreditava que passara mais de vinte anos nos esgotos do Minhocão. Acabara o comunismo na União Soviética – acabara a União Soviética! – não havia mais o muro de Berlim e havia Mac Donald’s na China… Todos tinham um computador pessoal, internet e cartões magnéticos… Sim, ainda havia fome, miséria e injustiça… Mas, meu Deus, quantas transformações! E ele perdera vinte anos de vida! Tudo por causa dum relógio russo, comprado em Cuba, que usara todo aquele tempo e cujo ponteiro mal se movia. Triste, muito triste.

Nos contos novos, a criação do personagem Dr. Pinto Grande foi uma sacada e tanto, e em diferentes histórias lá está ele, o advogado humilde, que anda armado pois sabe que o mundo é uma selva, mas que está mais preocupado com os selvagens existentes em todos nós, que devem ser domados, domesticados, civilizados. Sua postura é elegante, contida, educada, e ele faz perguntas que levam o interlocutor a reflexões importantes sobre a essência da vida. E sempre com humor, claro, pois ele é fundamental para suportarmos melhor a vida:

Seu Roberto, antes de as pessoas perderem o bom senso, elas perdem o senso de humor. É sempre assim. Nós vivemos uma época complicada, revolucionária, cheia de gente que tenta negar, não os aspectos nocivos da nossa animalidade intrínseca, mas a própria natureza humana. Um dia, nosso corpo morrerá e não sobrará senão nossa humanidade. Nossa animalidade ficará na cova.

Tudo isso, repito, em histórias muito criativas, como as de Padre Brown, cuja pacata Kembleford seria o lugar mais perigoso do mundo, a julgar pela quantidade de assassinatos que o sagaz padre precisa desvendar. A influência de Chesterton parece evidente em Yuri, e não foi por acaso a escolha da epígrafe do livro, tirada de O que há de errado com o mundo, do escritor inglês: “Não apenas estamos todos no mesmo barco como também estamos todos mareados”.

Se essa mensagem for realmente absorvida, poderá haver mais tolerância de fato, mais humildade, mais boa vontade para com o próximo, mas sem romantismo bobo, sem falsas ilusões, sem a pretensão de que o amor seja suficiente para abandonarmos as nossas armas, necessárias para nossa defesa. Leiam Yuri Vieira! Estou certo de que não vão se arrepender, e terminarão a leitura pedindo mais Pinto Grande…

Fonte: Gazeta do Povo.

O crítico literário Rodrigo Gurgel fala sobre “A menina branca”

O crítico literário Rodrigo Gurgel (Folha de São Paulo e jornal Rascunho) comenta A menina branca, um dos contos do livro A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande:

Li, neste final de semana, “A menina branca”, do Yuri Vieira. Li esperando encontrar o afamado Dr. João Pinto Grande, que dá nome ao livro, mas ele não me concedeu a graça da sua presença.

Começo pelo fim: o destino de Edgard, protagonista da história, é o risco que todos correm neste país — todos que têm alguma consciência e desejam viver de forma honesta, trabalhando, pagando impostos e usufruindo de pequenas alegrias: o país luta contra essas pessoas. E quando digo país, não me refiro a uma entidade onírica, mas a parcela do povo, a pessoas concretas que nos rodeiam. Edgard experimenta isso da pior forma, traído, de maneira abjeta, por Virgínia, sua noiva — que, entre ele e a ideologia, ou seja, entre a realidade e a ilusão, prefere a segunda, mesmo que isso signifique destruir a primeira por meio de um gesto leviano. Não se trata, portanto, de simples escolha, mas de condenação: Virgínia acredita, como todos os revolucionários e ideólogos, que sacrificar a realidade contribuirá para tornar sua ilusão real. Ela me fez lembrar a professora Delphine Roux — covarde, neurótica e arrivista —, personagem de Philip Roth em “A marca humana”.

A história, entretanto, é mais complexa — há várias camadas de trama, incluindo deliciosas referências ao conto “O gato preto”, de Edgard Allan Poe, e a outros de seus escritos: o sabiá do protagonista, por exemplo, chama-se Nevermore.

Quem me conhece sabe que me aproximo de um texto esperando que ele me ofereça o melhor. Na maioria das vezes, contudo, tenho de me esforçar para que isso aconteça. Mas o narrador de “A menina branca” me sequestrou desde o início. Sua voz, irônica e sarcástica nos momentos certos; a maneira como elabora a introspecção de Edgard, principalmente quando precisa justificar seu desesperado gesto de violência; os diálogos que conduzem o leitor pelas emoções dos personagens, revelando o labirinto psicológico que se esconde por trás das aparências — tudo me agradou.

Yuri também demonstra timing perfeito e constrói uma linha de crescente emoção: a cada cena queremos ir adiante, até o final macabro, cujo humor, com pinceladas de grand guignol e nonsense, aprofunda a tragédia de Edgard. Final, aliás, conduzido por inesperado personagem, um “comissário do povo” no melhor estilo bolchevique — isto é, destituído de qualquer mínimo senso moral.

Só me resta, agora, prosseguir na leitura, para uma resenha completa, em que eu possa falar do famigerado Pinto Grande.

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