palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Honolulu, 13 de Janeiro de 2018 (conto)

Naquela manhã de sábado, William e Lindsay ainda dormiam em seus respectivos quartos, quando George C. Morgado, o pai, lhes bateu violentamente à porta:

— Bill! Levanta! Rápido! — e enquanto esmurrava a porta da filha: — Acorda, Lin! Vamos!

O homem estava tão agitado e seus gritos foram tão estridentes que as crianças, muito assustadas, deixaram a cama de um pulo:

— Que foi, papai? O que está acontecendo?

— Venham! — disse, arrastando-os pelas mãos.

— Calma, pai! Tá me machucando… — resmungou a menina, que vestia apenas uma camiseta enorme que lhe atingia os joelhos.

O pai, de olhos esbugalhados, a respiração opressa, não lhes fez caso: limitou-se a conduzi-los escada abaixo até a sala. Na cozinha, Martha, a mãe, enchia um engradado plástico com várias garrafas de água mineral, sacolas de pão, caixas de cereal, embalagens de comida congelada e demais mantimentos a esse modo. William não gostou nada de ver aquela agitação:

— Ah, não! Eu não vou acampar hoje! Tenho aula de surfe à tarde.

A mãe virou-se instantaneamente para ele: seus movimentos e sua agitação eram de puro frenesi.

— Pro porão! Pro porão! — gritou ela, fitando-os com uma expressão perplexa, insana.

Lindsay começou a chorar:

— Não fui eu! Não fui eu! Foi o Bill — protestou, sem saber do que falava, mas já prenunciando um castigo inédito qualquer.

Comovida, a mãe largou o engradado sobre a mesa e a pegou no colo:

— Calma, meu bem! Nós vamos sobreviver — retrucou, sem ter apreendido senão o choro da menina.

— Rápido, Martha! — berrou o pai, colocando uma mochila às costas. — Leve-a para o porão! Eu pego o engradado.

William assistia a tudo boquiaberto:

— O que está acontecendo com vocês dois? Alguém por acaso vem prender a gente?

Não responderam. Sustentando a menina no braço direito, a mãe o segurou com a outra mão, correndo em seguida até a porta do porão, onde se meteu escada abaixo arrastando o menino pelos degraus.

— Ai, mãe!

O pai veio logo atrás com o engradado, fechando atrás de si a porta, que era de metal e tinha uma tranca quádrupla por dentro. Lindsay soluçava.

— Calma, meu bem. Nós vamos sobreviver.

Martha esticou um colchonete no piso e se sentou nele, agarrada à filha. O menino não quis acompanhá-las.

— Vocês não vão explicar nada?

Nervosíssimo, George caminhava de um lado para o outro do pequeno cômodo, o celular em punho, o rosto iluminado pela tela brilhante.

— George, o que eles dizem? — perguntou Martha.

O marido estacou:

— A mesma coisa: “não é um exercício”.

— For God’s sake! — exclamou o garoto. — Do que vocês estão falando?!

O pai o fitou intensamente e pareceu meditar por alguns segundos. Por fim, tomou-o pelo braço e o levou até o lado oposto do porão. Então abaixou-se, encarando o filho:

— Bill, você já é praticamente um rapaz, vai completar doze anos no próximo mês. Eu preciso que você tenha coragem, porque vou te contar o que é, ok?

— Ok.

— Precisa agir como um homem. Entende?

O menino gostou de ser chamado de homem:

— Claro, papai — respondeu, o peito estufado.

George engoliu em seco:

— Veja a mensagem que o governo do Estado do Havaí nos enviou — e lhe indicou a tela do celular: “AMEAÇA DE MÍSSIL BALÍSTICO CHEGA AO HAVAÍ. PROCURE ABRIGO IMEDIATO. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO”.

— Não entendo, papai — tornou o menino, franzindo o cenho. — O que isso significa?

— Um ataque… — começou o pai, quase gritando, mas refreou-se. E então, olhando a esposa e a filha de esguelha, sussurrou: — Um ataque nuclear. A Coréia do Norte disparou mísseis contra nós.

O menino arregalou os grandes olhos azuis, fitou o pai, ensaiou uma expressão heróica de adulto e, de lábios trêmulos, perguntou:

— Não é… um trote? Pode ser uma pegadinha.

— Não, Bill. Os canais de TV e o rádio confirmaram a informação.

Essa notícia foi grave demais para aquele adulto recente — e o menino, pois, caiu em prantos.

— Não! Não! Não quero morrer! — finalmente gritou e, ato seguido, correu na direção do colchonete, atirando-se nos braços da mãe.

— Minhas crianças! Minhas crianças! — choramingava ela, afagando-os.

O pai sacudiu a cabeça, arrependido, e logo retomou sua peregrinação pelo porão, o celular em punho, o rosto pálido e iluminado como o de um vampiro à luz do luar. No WhatsApp, os parentes e amigos trocavam mensagens desesperadas, indagando uns aos outros se já estavam todos prontos para o impacto. Michael, pai de George, enviara uma mensagem amorosa, despendido-se do filho e afirmando que havia sido uma honra ter tido uma família tão liberal, tão progressista, tão inteligente, tão unida em prol dos mesmos ideais. Seu irmão, Michael Junior, ainda conseguia ter algum senso de humor em meio ao pânico geral: “Pelo menos não encontraremos mais republicanos lá no céu — se é que existe um céu”.

— Imbecil — murmurou George para si mesmo.

Enquanto continuava lendo essas mensagens, a esposa e os filhos pranteavam a morte iminente. Fitando-os com ternura, George pensou que havia chegado a hora das despedidas: aquele porão não fora construído para resistir a uma desgraça dessa escala. Quando, a passos lentos, começava a se dirigir até eles, veio o estrondo:

— PAM! PAM! PAM! PAM!

Martha e as crianças, em uníssono, gritaram histericamente. George quase descomeu o coração de tanto susto. Alguém batia na porta metálica do porão:

— George! Você tá aí? George!

Acreditando tratar-se de um parente ou de um amigo a buscar abrigo, George galgou rapidamente a escada de dois em dois degraus. E abriu a porta: era Tom, o jardineiro.

— Oi, George. O que você está fazendo trancado aí dentro? Quer que eu volte depois?

Estranhando toda aquela calma, perguntou de rebate:

— Tom, você não está sabendo de nada?! O que veio fazer aqui? E sua família?

O velho sorriu:

— Eu vim pegar o cortador de grama. Hoje é dia, né.

— Mas… e sua família?

— Estão bem, graças a Deus. Obrigado por perguntar. Quer que eu volte depois?

— Tom, a Coréia do Norte está nos atacando! Um míssil nuclear pode nos atingir a qualquer instante. Venha pra dentro! — e tentou puxar o velho pelo braço.

Tom se desvencilhou:

— Calma, George. Não vai acontecer nada. É uma bobagem.

— Mas o governo emitiu o alerta! Não é brincadeira!

— Ah, o governo… — suspirou o outro. — E você ainda acredita no governo? — e deu uma risadinha. — Vocês democratas são engraçados: se o Trump faz alguma coisa boa real, de verdade, vocês não acreditam. Se o governador democrata do Havaí diz que estamos sendo atacados pelo… como chama? King Kong-un?

— Kim Jong-un.

— Mesma coisa — e pigarreou. — Enfim, só porque o governo daqui é democrata vocês dão crédito pra ele. Uma bobagem.

George mal podia acreditar no estado de negação em que se encontrava mergulhado o velho jardineiro: estaria caduco?

— Tom, fique aqui com a gente. Ou então corra pra casa. Esqueça nosso jardim.

O velho voltou a rir:

— Sabe, George. Eu sou casado com uma nativa havaiana. Mas já fui casado antes, lá no Texas. Um dia, descobri que essa minha primeira mulher tinha um caso com um safado que morava a uma milha da minha casa. Peguei meu Colt 1911 e fui atrás do sujeito. Ele vivia nas aforas da cidade, já no meio do mato. Quando eu já estava dando a volta na casa, para surpreendê-lo pelos fundos, ouvi disparos de fuzil. Quase me atirei ao chão de tanto susto.

— Mas o que isso tem a… — começou George, aflito.

— Calma — atalhou-o o velho jardineiro, sorrindo. — Enfim… quando eu já ia me jogar ao chão, vi o sujeitinho treinando tiro ao alvo no meio da mata que tinha atrás da casa dele. O desgraçado tinha um fuzil AR-15! Sabe o que eu fiz?

— Hum.

— Meti o rabo entre as pernas, pedi o divórcio e me mudei para o Havaí: para não passar vergonha. E aí tive a sorte de conhecer a Mary.

— Pelo amor de Deus, Tom! O que você tá tentando me dizer, homem?

— Você viu o que os jornais disseram sobre o Trump no dia 3 de Janeiro? Disseram que, na noite anterior, ele havia respondido às ameaças do King Kong na internet.

— Kim Jong!

— Então! Foi o que eu disse! — e sorriu, concordante. — Enfim, ele respondeu às ameaças do coreano na internet, dizendo que o botão dele, Trump, o botão de disparar as bombas atômicas, é muito maior que o botão do ditadorzinho comunista. E que além disso é um botão que funciona! — e colocou a mão no ombro do interlocutor. — Olha, George, quando eu morava no Texas, eu era um cara bem doido: mas não era idiota! Esses tiranos podem não acreditar na existência das almas, mas acreditam na existência dos corpos e na perpetuação da sua própria dinastia, da sua descendência. Um ataque americano transformaria a Coréia do Norte num deserto. Ficaria pior que Cartago, faltando apenas que alguém lhe despejasse toneladas de sal. É óbvio que o King Kong sabe disso tão bem quanto eu.

Martha surgiu no topo da escada bufando, o pesado cortador de grama entre os braços:

— Pode ir cortar, Tom — disse, entregando-lhe a geringonça.

— Ah, obriga….

Mas, sem terminar de ouvi-lo, Martha apenas o empurrou para fora, fechando com estrondo a porta do porão:

— Você está maluco, George?! — rosnou ela, o dedo indicador em riste. — Quer passar os últimos minutos de nossas vidas conversando com um republicano que votou no Trump? É por culpa dessa gente que estamos sendo atacados.

A família, pois, permaneceu trancada no porão por mais meia hora, ao fim da qual o governo local se pronunciou confessando que havia ocorrido um erro da parte de um funcionário da Agência de Gestão de Emergência do Havaí: não havia nenhuma ameaça real. Quando voltaram à cozinha, viram pela janela que Tom ainda cortava tranquilamente a grama do jardim traseiro, enquanto, em meio ao rugido da máquina, cantarolava uma incompreensível canção country de amor e morte.

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Na Wikipédia: 2018 Hawaii false missile alert.

Aquecimento global: você é supersticioso?

Se você ainda acredita na SUPERSTIÇÃO segundo a qual o HOMEM é a CAUSA do AQUECIMENTO GLOBAL e das mudanças climáticas (isto é, você crê no “aquecimento global antropogênico”— e também na fada do IPCC, que o aquecimento é causado por um capeta chamado “efeito estufa”, que as manchas solares não têm nada a ver com isso, e assim por diante), então precisa rever urgentemente o documentário A GRANDE FARSA DO AQUECIMENTO GLOBAL (ver abaixo). Entre outras coisas, você vai descobrir que:

→ A Terra era mais quente durante a idade média do que é agora;

→ O aumento da temperatura nunca acompanhou necessariamente o aumento da ação humana e da industrialização;

→ É a elevação da temperatura que causa o aumento do nível de gás carbônico, e não o contrário (os gráficos que indicam uma relação entre os níveis de ambos mostram que, ao longo dos milênios, o aumento da temperatura antecipava o aumento de CO2 em cerca de 800 anos);

→ O aumento da temperatura pode levar vários séculos para determinar o comportamento dos oceanos;

→ A ação dos mares sobre os continentes tem mais a ver com o deslocamento das placas continentais do que com o clima e com um suposto “derretimento das calotas polares”;

→ Os oceanos, os vulcões, a vegetação e as bactérias produzem infinitamente mais gás carbônico que o ser humano;

→ O “efeito estufa” não é a causa do aquecimento, se fosse, haveria elevação de temperatura na troposfera, e isso não ocorre. Aliás, o vapor d’água interfere mais no efeito estufa do que o gás carbônico;

→ O gás carbônico é indício de vida; as épocas mais quentes sempre foram mais prósperas;

→ O mosquito não é uma exclusividade dos trópicos que está se alastrando agora devido ao suposto “efeito estufa”. A maior epidemia de malária já registrada ocorreu dentro do círculo ártico, nos anos 1920, na União Soviética, tendo contaminado certa de 12 milhões de pessoas e matado 600 mil;

→ Grande parte dos “cientistas” do IPCC não é constituída de verdadeiros cientistas;

→ Muitos cientistas citados pelo IPCC não aceitam a tese do “aquecimento global antropogênico”, mas são convenientemente ignorados;

→ Alguns cientistas são considerados membros do IPCC contra a sua própria vontade (alguns conseguiram retirar seu nome da lista após ameaça de processo legal);

→ O QUE CAUSA então o aumento ou diminuição da temperatura global? A maior ou menor ocorrência de manchas solares. Na Terra, são as nuvens que mantêm a temperatura baixa mediante a reflexão dos raios solares, que são então “devolvidos” para o espaço. As nuvens, por sua vez, são formadas por ação dos raios cósmicos sobre o vapor d’água. Quanto maior a incidência de raios cósmicos, maior a quantidade de nuvens e menor a temperatura. O problema é: as manchas solares interferem nos raios cósmicos. Quanto maior a ocorrência de manchas solares, maior a incidência de “ventos solares”, os quais irão impedir os raios cósmicos de criarem nuvens. Em suma: o magnetismo dos ventos solares bloqueia a entrada de raios cósmicos como se fosse um grande guarda-chuva. Logo, quanto menor a quantidade de nuvens, maior o calor. Numa frase: “É o Sol, estúpido!”;

→ A conversa fiada segundo a qual o gás carbônico poderia aumentar a temperatura da Terra começou entre os anos 1960 e 1970, quando então se acreditava na vinda de uma nova Era Glacial; e tal teoria desprovida de fundamentos foi proposta como uma esperança de sobrevivência da humanidade, tipo: “não se preocupem com a nova Era Glacial, pois o homem produz muito CO2 que, não temos certeza ainda mas é provável, irá intensificar o efeito estufa e manter a temperatura elevada apesar da glaciação”;

→ Embora a esquerda mundial use o “aquecimento global antropogênico” como forma de atacar o capitalismo dos países ricos e o desenvolvimento dos países pobres, além de usá-lo como pretexto para aumentar o poder da ONU, das ONGs e demais organismos globalistas, foi a conservadora Margaret Thatcher a primeira política a acreditar na teoria do “efeito estufa”. Ela estava preocupada com o aumento do poder dos árabes (petróleo) e com o aumento do poder dos sindicatos esquerdistas (mineradores de carvão), e então decidiu que era preciso ignorá-los e investir em energia nuclear. Para convencer o público, usou como propaganda a teoria de que os combustíveis fósseis causariam o aumento da temperatura, por meio de efeito estufa, e que isso significava uma única coisa: catástrofe climática. Hoje, os esquerdistas utilizam como estratégia uma tática equivocada de uma direitista;

→ A farsa de um “aquecimento global antropogênico” criou uma bilionária indústria de burocratas ambientalistas cujo leque de funções se resume a viajar pelo planeta, aterrorizar as populações mediante pregações apocalípticas e impedir o pleno desenvolvimento das economias, já que se coloca contra a industrialização e o uso de combustíveis fósseis. Os ambientalistas conservam a pobreza e a fome no mundo;

→ Cientistas que negam o “aquecimento global antropogênico” não conseguem fundos para bancar suas pesquisas. Até mesmo uma simples pesquisa sobre esquilos deve incluir uma referência ao aquecimento global em seu título, ou não conseguirá dinheiro;

→ Sempre que um cientista elabora uma teoria racional e bem fundamentada, provando que o “efeito estufa” e o CO2 não controlam a temperatura da terra, a mídia e a imprensa o ignoram, porque notícias amenas não vendem jornais. A imprensa ama as catástrofes!;

→ Cientistas que negam o “aquecimento global antropogênico” são hostilizados por seus pares e ignorados pela imprensa;

→ Em suma: o “aquecimento global antropogênico” é apenas PROPAGANDA POLÍTICA orientada ideologicamente.

O DOCUMENTÁRIO:

Enquanto isso, em Miami… (conto)

Mal entrou no X Club, badalada casa noturna da Eleventh Street, em Miami, André Jorge, o mais novo galã das novelas globais, dirigiu-se ao balcão e pediu um uísque com energético. Feliz com sua nova aquisição, só pensava em comemorar. Chegara naquela tarde de Orlando, onde assinara o contrato de sua nova propriedade: uma mansão de quatro suítes e três pisos no condomínio Magic Village Resort. Após quase quatro horas de viagem num carro alugado, ali estava ele, cartão magnético do hotel no bolso, pronto para a caça. Cansado do assédio constante que sofria no Brasil — em geral, um assédio promovido por quem não lhe interessava —, na Flórida poderia se desvencilhar facilmente das raras brasileiras que por ventura lhe cruzassem o caminho, o que, para um pretenso alívio da sua vaidade, o faria sentir-se novamente uma pessoa normal. Sim, ele também sentia muita falta da difícil arte da sedução, aquela arte à qual, ‘confidenciava’ nas entrevistas, tanto se dedicara antes do estrelato. Mulher fácil, repetia aos colegas do Projac, não era com ele.

— It’s today! — gritou ele, copo na mão, traduzindo ao inglês uma expressão idiomática brasileira que não fez o menor sentido para quem estava à sua volta.

André Jorge era um homem bonito, másculo, simpático e seu olhar sedutor, do alto de seus trinta e dois anos, fazia as fãs brasileiras se atirarem aos seus pés. Tendo tantas vantagens naturais, colocou seus atributos masculinos em ação. Infelizmente, após meia-dúzia de tentativas frustradas, percebeu que, nos Estados Unidos, seu parco domínio do inglês tornara-se um súbito entrave aos seus planos. Ora, flertar em inglês não era tão fácil quanto pedir um prato num restaurante ou um quarto num hotel! Por mais que preferisse trabalhar arduamente para levar uma mulher para a cama, nada conseguiria se continuasse tartamudeando feito um inseguro nerd. Sem dizer que aquelas mulheres do club, pelo jeito, não eram dotadas de nenhum espírito de baile funk, no qual uma mera encoxada já fazia as vezes de uma conversa envolvente. Decidiu, pois, que teria mais sucesso abordando mulheres latinas com seu portunhol recentemente desenvolvido em Madrid. Sim, desenvolvido tal como apregoou, embora o famoso ator o tenha negado, o site O Fuxico: mediante a assistência de prostitutas hispano-americanas residentes na Espanha… Durante as gravações naquela capital dos capítulos iniciais de sua última novela, adotou, sem o saber, a técnica de aprendizado de idiomas do explorador inglês Sir Richard Francis Burton: um mês utilizando a língua num bordel.

— Hola! — disse ele para uma linda morena, metida num vestido colante revelador, que acabara de pedir um Apple martini. — Hablas español?

Ela o olhou de cima a baixo, e então sorriu: — Sí, claro.

— Puedes decirme cuales son los mejores drinks acá?

— Pero si ya estás bebiendo! — contestou a gata de olhos grandes e lábios fartos.

De fato, ele já estava bebendo. Mas dissera a primeira coisa que lhe viera à mente. Riu meio sem jeito e foi direto ao ponto: — Queres bailar conmigo un rato?

— Qué pasa, cariño? Ese huevón te está molestando? — disse um sujeito enorme, surgido repentinamente do meio da multidão, que se achegou à linda garota e a abraçou pela cintura.

Ela riu: — No. Solo me preguntaba sobre los drinks.

O homem se inclinou na direção do ator global e rosnou: — Oiga! No moleste mi novia solo porque ella es famosa! Queremos privacidad!

André Jorge já ia dizendo que também era uma celebridade, ao menos no Brasil, mas o casal, de mãos dadas, desapareceu em meio à efervescência da pista de dança. Aquilo o irritou profundamente… Virou pois o copo, tragando a bebida num único gole, e decidiu que o melhor a fazer era mesmo dançar. Dirigiu-se, pois, à pista de dança e tentou, em meio à espremeção geral, dar vazão à sua dança do acasalamento versão “música eletrônica”. Claro, sendo apenas “mais um entre muitos”, permaneceu no seu papel de incógnito solitário a atrair, no máximo, sorrisos de desdém ou até mesmo de escárnio, afinal, danças ridículas só fazem sucesso entre amigos e fãs. Mas ele, álcool na cachola, persistiu e, a certa altura, avistou outra bela morena, olhos amendoados, seios enormes, longas pernas, a qual, com um olhar estranhamente acanhado, vinha abrindo passo em meio à algazarra. Ele se deixou enfeitiçar por aquela beldade e, sem se dar conta, estacou enquanto ela cruzava sua frente. Então, de repente, alguém se chocou contra suas costas e o empurrou na direção da moça, que, de olhos arregalados, tentou recuar: tarde demais. O encontrão foi tão violento que ele quase a derrubou! Segurando-a pelos braços, pediu desculpas em espanhol, mas ela retrucou, enfastiada: “I’m don’t speak spanish, asshole! I speak only a little english”. E, aparentemente ofendida por ser confundida com uma latina, se desvencilhou dele, tencionando seguir seu caminho. Nesse momento, ele não pôde evitar uma espiada naqueles incríveis seios, mas o que viu o assustou: havia agora uma pequena mancha de sangue na parte inferior do seio direito. O vestido branco, extremamente colado, não deixava dúvidas: ele a havia ferido. Quis avisá-la, mas ela não lhe fez caso e prosseguiu seu caminho até o outro lado da pista. Talvez fosse brasileira, já que não falava espanhol, senão apenas “um pouco de inglês”. Brasileiras… Que se dane, pensou. André Jorge logo decidiu que era hora de voltar ao hotel. Estava cansado daquilo, não era um lobo solitário e já começava a sentir saudade de algo indefinível. Sorridente, fez então um selfie — precisava informar a seus seguidores do Instagram que sua vida era uma maravilha — e se dirigiu à saída. Antes de lá chegar, porém, ao passar novamente pelo balcão do bar, deparou-se com a loira mais deslumbrante que jamais vira na vida: e ela lhe sorriu! Num impulso, o ator soltou um tímido “hi”.

— Hola! — disse ela, o sorriso mais belo do mundo. — Eres brasileño, no es cierto?

— Sí — respondeu ele, surpreso.

— Creo que te he visto en una novela cuando estuve en Rio.

Salvo pela fama, cheio de alívio, entabulou uma agradável conversa na qual descobriu que aquela linda mulher era a mais famosa apresentadora de TV da Colômbia. Ela inclusive já havia entrevistado, em seu talk show, a atriz global que interpretara, na novela de estréia de André Jorge, o seu par romântico. E a colombiana começou a lhe apontar diversas outras celebridades latinas ali presentes: uma atriz mexicana, um âncora de telejornal argentino, uma cantora equatoriana, uma socialite chilena, dois atores venezuelanos e assim por diante. A linda garota, a quem havia abordado minutos antes, aquela do namorado brutamontes, não era senão a mais nova cantora celebridade do México, a qual, agora, iniciava uma promissora carreira de atriz nos Estados Unidos.

— Increíble — repetia ele.

E a apresentadora colombiana o convenceu a acompanhá-la até sua mesa, onde André Jorge conheceu mais meia-dúzia de famosos hispano-americanos. A conversa teve como mote, de início, esse irônico fato de haver tantas celebridades presentes que mal conheciam umas às outras. “E que os americanos não fazem a menor idéia de que sejam famosos em seus países”, acrescentou alguém. Depois falaram de suas casas na Flórida, de como era mil vezes melhor morar num país onde havia liberdade de ir e vir sem serem atormentados constantemente pelos fãs, e assim por diante. Uma atriz equatoriana, ademais, era vizinha do Sílvio Santos em Orlando e, apesar de saber que se tratava de um brasileiro rico e famoso, não tinha a menor idéia de quem ele era ou o que fazia.

— Que verga! — exclamou ela. — Una celebridad desde los años 1960!

Em seguida, falaram de como era muito mais seguro viver nos Estados Unidos, longe dos crimes horríveis e da eterna corrupção que assolam a América Latina. Dois dos presentes logo narraram os episódios em que, cada qual em seu país, haviam sido sequestrados, permanecendo em cativeiro vários dias, até que, num caso, o resgate foi pago e, no outro, os bandidos foram mortos pela polícia. O próprio André Jorge já havia sido vítima de um sequestro relâmpago no Rio de Janeiro, mas nada comentou a respeito porque, não apenas sua aventura havia sido inferior àquelas duas narradas, mas também nem sequer era famoso na época do ocorrido. A conclusão daquele assunto, enfim, era a verdade pungente de que a América Latina continuava desgovernada e cruel, e de que não havia melhor saída do que a clássica saída do aeroporto.

— Me voy una vez cada semana para mi país y despues vuelvo corriendo! — finalizou um ator colombiano, ao que lhe replicou um venezuelano que, no seu caso, nem sequer voltava mais para a Venezuela, afinal, seu país era agora um país socialista mergulhado no caos e todos os cidadãos que tinham condições e meios já se haviam exilado.

— Que buena nota es Estados Unidos, no? Todavía somos libres acá — comentou a equatoriana, toda sorridente.

Depois de algumas enfáticas concordâncias, a bela apresentadora colombiana, com ar sombrio, disse: — Sí, pero los americanos son estúpidos! Eligieron Trump!

E então iniciou-se uma série de longas asserções onde cada qual, inclusive o ator brasileiro, expressou seu espanto diante do resultado das eleições americanas e sua incapacidade de compreender como um povo tão próspero era capaz de eleger um louco como Donald Trump.

— Luego ya no podremos vivir acá! Trump odia a los inmigrantes.

E esse tema se prolongou tanto — recheado de tantas previsões de catástrofes que o novo presidente americano certamente causaria — que André Jorge, que falava apenas portunhol, começou a perder o fio da meada, já que todos, eufóricos de tanta indignação, passaram a falar o espanhol demasiado rápido para seus ouvidos brasileiros. E ele se distraiu. E, distraído, deixou o olhar vagar pelo club. Observou as pessoas na pista, dançando ao ritmo da música eletrônica, as pessoas mais ao longe, no balcão do bar, aqueles que, como ele e seus colegas famosos, estavam sentados nas mesas dos camarotes e então… Sim, cruzou olhares com a beldade, a mesma que se irritou ao ser confundida com uma latino-americana! Que linda ela era! E estava sentada apenas três mesas adiante acompanhada por outra garota tão bonita quanto ela. Curiosamente, pareciam tensas, irritadas, deslocadas. Talvez já tivessem se dado conta de que ele a machucara. Era bem provável que, tal como acontecera meses atrás com uma colega do Projac — uma atriz recém saída da adolescência — ele, ao chocar-se contra ela, tenha rompido os pontos de uma cirurgia para implantes de silicone mal feita. Sentindo-se culpado, decidiu ir pedir-lhe desculpas e, talvez, caso ela necessitasse, oferecer a devida reparação financeira. Vai que realmente se tratava de uma brasileira, pensou. Pediu, pois, licença aos novos amigos — já tinha o WhatsApp de todos (fariam muitas festas em Orlando) — e se dirigiu à mesa da morena, que, ao notar sua aproximação, pareceu ficar ainda mais aflita. Quando ele já estava abrindo a boca para lhe dirigir a palavra, ela sussurrou qualquer coisa para a amiga e, numa pressa nervosa, levantou-se e se retirou, metendo-se rapidamente entre os dançantes da pista. A moça que permaneceu na mesa o encarou, muito séria, e retirou um celular da bolsa. Ele a ignorou e saiu no encalço da primeira, a qual, provavelmente por acreditar ser ele um tipo qualquer de stalker, devia estar à procura de um segurança. André Jorge, porém, sentido-se seguro de si — afinal encontrara “sua turma” e voltara a ter consciência de quem ele era — não se fez de rogado e a perseguiu até o meio da pista, quando ela então estacou de costas para ele.

— Excuse me, miss — disse ele amavelmente, tocando-a de leve no braço.

Ela se virou, brusca, os olhos arregalados, uma expressão ao mesmo tempo decidida e cheia de espanto: encarando-o, ela ergueu o celular na mão direita. Ao mesmo tempo, André Jorge ouviu um grito vindo da mesa que acabara de deixar: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! A garota que ele seguia repetiu o grito: — Allahu Akbar!!! Allahu Akbar!!! — e imediatamente apertou uma tecla do celular: as duas enormes explosões foram praticamente simultâneas. Havia trezentas e vinte e duas pessoas naquele club de Miami. Sessenta e três morreram instantaneamente. Outras sete morreram mais tarde no hospital ou a caminho dele. Setenta ficaram feridas. De fato, soube-se mais tarde, quando o vídeo das duas terroristas tornou-se público, que André Jorge tinha razão: não apenas a primeira, mas ambas haviam feito cirurgias para aumentar os seios. Contudo, em vez de silicone, haviam implantado o famigerado explosivo C-4, o qual fora detonado via bluetooth mediante um singelo aplicativo de celular. O próximo papel de André Jorge, na Globo, teria sido o de Riobaldo, numa nova adaptação do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Foi por isso que a revista Época, em sua capa, na qual falava desse atentado e da morte do ator, usara como manchete a frase do mais famoso jagunço da literatura brasileira: “Viver é muito perigoso”.

10 anos: parece que foi ontem

Em 2006, publiquei cerca de dez horas de entrevista (em áudio) com Olavo de Carvalho, sua primeira aparição no YouTube. Eu procurava, procurava, procurava e não encontrava nada sobre ele ali. ¿Como era possível? ¿Depois de Olavo ter escrito todos aqueles livros?! Absurdo. Então lhe fiz a proposta e ele a aceitou. Nas gravações, a atualidade de tudo o que ele diz é espantosa. Desde então, graças ao movimento revolucionário, o Brasil permaneceu completamente atolado. Ou melhor: afundou mais.

Quem não ouviu essa conversa — que acabou dando origem ao programa True Outspeak — não sabe o que está perdendo…

Caso alguém queira baixar os arquivos MP3, clique aqui.

Ouça a entrevista completa abaixo:

Educando para a guerra

Certa vez, durante meu intercâmbio no Equador, iniciei sem querer-querendo uma tremenda polêmica em sala de aula. Era uma aula de geografia e, enquanto o professor discorria sobre as riquezas naturais do país, eu encarava incrédulo o mapa estampado no meu livro: nele, o rio Amazonas iniciava no Equador! Eu, que sempre fui um CDF, não conseguia compreender semelhante equívoco. Lá pelas tantas, levantei a mão e indaguei ao licenciado — no Equador, você sempre se dirige aos professores pelo título — indaguei se aquele livro estava atualizado. Respondeu que “sí” e me perguntou o porquê.

— Uê, licenciado, porque, neste mapa, o rio Amazonas começa no Equador, e isso não é verdade. O Amazonas começa no Peru.

Eu pensei que estava sendo útil, pensei que estava a corrigir o material didático do colégio, mas os olhares reprovadores de boa parte dos meus colegas, além da expressão de espanto do professor, indicavam um grande mico da minha parte.

— Senhor Vieira, o livro está certo: esse território pertence, sim, ao Equador. O Protocolo do Rio de Janeiro, de 1942, foi uma afronta ao nosso país. O Brasil, a Argentina, o Chile e os Estados Unidos, signatários do Protocolo, e anos depois a ONU, podem achar que o problema ficou no passado. Mas essa região, além de oferecer uma saída para o rio Amazonas, é rica em petróleo, e futuramente voltará a fazer parte do Equador.

Arqueei as sobrancelhas: — Então estou certo: não faz parte do Equador.

— Se um ladrão rouba o carro do seu pai e você o encontra na rua, ¿o que você diz? ¿”Olha lá o carro do ladrão”?

Finalmente compreendendo onde havia me metido, engoli em seco: — Não. Digo que é o carro do meu pai.

— Estamos conversados — concluiu, e me virou as costas voltando ao quadro negro.

Depois da aula, fui rodeado por vários colegas que me explicaram a situação: o Equador jamais engoliu o resultado da guerra ocorrida com o Peru entre 1941 e 1942. Tanto que, no início dos anos 1980, houve alguma escaramuça. Alguns estudantes, com ar patriótico, me diziam que aquilo iria ser corrigido muito em breve. Outros, como quem diz “ah, essa mania de guerra!”, sorriam cinicamente: não estavam nem aí para aquela história. Entre esses estava Paul Segovia, um sujeito engraçadíssimo, músico multi-instrumentista, um talento nato, que na época atuava no grupo de música andina Siembra, mas que, anos mais tarde, sem que eu me inteirasse daqui do Brasil, haveria de tornar-se o mais bem sucedido vocalista de rock da história do Equador, uma espécie de Jim Morrison local, que, tal como o americano, também morreria jovem, no ápice da carreira, de causas nebulosas.

Oye, hermano, não dê atenção a esses tromposos! Isso tudo é só desculpa para o Exército encher el culo de plata. Não vai ter guerra nenhuma. É mais fácil o Cotopaxi entrar em erupção do que rolar novamente outra briguinha com o Peru. E o Cotopaxi está dormindo desde 1904!

Naquela ocasião, concordei com Paul: já não vivemos numa América do Sul afeita a guerras. Claro que não ocorreria nada. Nem com o Peru nem com o Cotopaxi, vulcão que eu escalaria meses mais tarde. Tínhamos certeza de que tudo não passava de cara feia de professor e de desenhozinho de livro. Bem… no fundo, nós apenas gostávamos de acreditar nessa paz continental tanto quanto gostávamos da paz telúrica do vulcão. A marcha da história e a marcha da Terra, porém, não seguem os desejos humanos: cinco anos após meu retorno ao Brasil, uma nova guerra estourou entre os dois países, a Guerra de Cenepa, e, anos mais tarde, em 2015, o Cotopaxi entrou em erupção. A geração que conheci já vinha sendo preparada para esses acontecimentos havia anos. (Eu mesmo participara de simulações de evacuação, em caso de erupção vulcânica, promovidas pela defesa civil de Latacunga.) Quanto à guerra, ¿de que adianta um punhado de espertos acreditarem que nada de mais há de ocorrer quando todos os jovens do país estão sendo doutrinados? De resto, ¿você sabia que as crianças do Brasil estão sendo preparadas para uma guerra cultural? As guerras sempre começam no gabinete de algum intelectual, do contrário não estariam em livros didáticos antes de surgir no horizonte. ¿Você sabe o que andam ensinando às crianças brasileiras? Se não sabe, melhor pesquisar. Nós, escritores, já a estamos lutando. Como bem escreveu Louis Pauwels: «O público em geral não sabe que estamos em guerra civil nos meios da cultura. Contudo, o resultado dessa guerra determinará o destino cotidiano».

Albert Camus: Niilismo e História

albert camus

« Cento e cinquenta anos de revolta metafísica e de niilismo viram reaparecer, sob máscaras diferentes, mas com obstinação, o mesmo rosto devastado — o do protesto humano. Todos, sublevados contra a condição e contra o seu Criador, têm afirmado a solidão da criatura e o nada de toda a moral. Mas todos, ao mesmo tempo, procuraram construir um reino puramente terrestre em que reinasse a regra por eles escolhida. Rivais do Criador, foram logicamente conduzidos a refazer por si próprios a criação. Aqueles que, pelo mundo que acabavam de criar, recusaram outra regra que não fosse a do desejo ou a do poder, precipitaram-se no suicídio ou na loucura e cantaram o apocalipse. Quanto aos outros, que pretenderam criar as suas regras por meio das próprias forças, escolheram uma parada vã: o parecer ou a banalidade, ou ainda o assassínio e a destruição. Mas Sade e os românticos, Karamazov ou Nietzsche só penetraram no mundo da morte porque desejaram a verdadeira vida. E com tanto empenho que, por efeito inverso, foi o apelo desesperado à regra, à ordem e à moral que ressoou neste universo louco. As suas conclusões só foram nefastas ou liberticidas a partir do momento em que eles se desembaraçaram do fardo da revolta, fugiram à tensão que ela pressupõe e escolheram o conforto da tirania ou da servidão.

« A insurreição humana, nas suas formas elevadas e trágicas, não é nem pode ser mais do que um longo protesto contra a morte, uma acusação enraivecida contra essa condição regida pela pena de morte generalizada. Em todos os casos que se nos têm deparado, todas as vezes o protesto se dirige a quanto na criação é dissonância, opacidade, solução de continuidade.Trata-se, pois, essencialmente, de uma interminável reivindicação de unidade. A recusa à morte, o desejo de duração e de transparência são as molas reais de todas essas sublimes ou pueris loucuras. Tratar-se-á simplesmente de uma recusa covarde e pessoal ao ato de morrer? Não, pois muitos desses rebeldes pagaram o que era preciso para se alcandorarem à altura da sua exigência. O revoltado não reclama a vida, mas as razões da vida. Recusa a consequência trazida pela morte. Se coisa alguma dura, nada se justifica; o que morre é falho de sentido. Lutar contra a morte equivale a reivindicar o significado da vida, a combater pela regra e pela unidade.

« O protesto contra o mal que reside mesmo no coração da revolta metafísica é, neste caso, significativo. Não é o sofrimento da criança que se deve considerar revoltante em si próprio, mas o fato de tal sofrimento não ser justificado. No fim das contas, a dor, o exílio, a claustração são por vezes aceites quando a medicina ou o bom senso no-los impõem. Aos olhos do revoltado, o que falta à dor neste mundo, como aos instantes de felicidade, é um princípio de explicação. A insurreição contra o mal mantém-se em primeiro lugar como uma reivindicação de unidade. No mundo dos condenados à morte, à opacidade mortal da condição, o revoltado opõe incansavelmente a sua exigência de vida e de transparência definitivas. Procura, sem o saber, uma moral ou um sagrado. A revolta é uma ascese, embora cega. Se nessa altura o revoltado blasfema, é na esperança de encontrar o novo deus. Sente-se abalado sob o choque do primeiro e do mais profundo dos movimentos religiosos, mas trata-se de um movimento religioso frustrado. Não é a revolta em si própria que se deve ter por nobre, mas sim o que ela exige, embora aquilo que ela obtiver se haja de considerar ainda ignóbil.

« Mas, pelo menos, há que saber identificar o que ela obtém de ignóbil. Cada vez que deifica a recusa total do que existe, o não absoluto, ela mata. Cada vez que cegamente aceita o que é e proclama o sim absoluto, mata igualmente. O ódio ao Criador pode converter-se em ódio da criação ou em amor exclusivo e provocante do que existe. Mas, em ambos os casos, ela vai dar ao assassínio e perde o direito ao seu nome de revolta. Pode ser niilista de duas maneiras e, em cada uma delas, por uma intemperança do absoluto. Existem aparentemente os revoltados que querem morrer e aqueles que querem dar morte. Mas trata-se dos mesmos indivíduos, queimados pelo desejo da verdadeira vida, frustrados no ser e preferindo nessa altura a injustiça generalizada a uma justiça mutilada. Atingido este grau de indignação, a razão converte-se em fúria. Se é certo que a revolta instintiva do coração humano avança a pouco e pouco ao longo dos séculos a caminho da sua máxima consciência, também cresceu, como vimos, em cega audácia até ao momento desmesurado em que decidiu responder ao crime universal pelo assassínio metafísico.

« O mesmo se, que já reconhecemos marcar o momento capital da revolta metafísica, realiza-se em todo o caso na destruição absoluta. Já não é a revolta nem a sua nobreza que resplandecem no mundo, mas sim o niilismo. E são as suas consequências que devemos recordar sem perder de vista a verdade das suas origens. Mesmo que Deus existisse, Ivan [Karamazov] não se teria entregado a Ele, mercê da injustiça feita ao homem. Mas uma ruminação mais longa desta injustiça, uma chama mais amarga transformaram o “mesmo que tu existisses” em “tu não mereces existir” e, depois, em “tu não existes”. As vítimas procuraram a força e as razões do crime último na inocência que elas reconheciam em si próprias. Desesperando da sua imortalidade, certos da sua condenação, decidiram matar Deus. Se não corresponde à verdade afirmar que, a partir desse dia, começou a tragédia do homem contemporâneo, também não é verdade que ela acabasse nessa altura. Esse atentado marca, pelo contrário, o momento mais alto de um drama começado a partir do fim do mundo antigo e cujas últimas palavras ainda não foram pronunciadas. A partir desse momento, o homem decide eximir-se à graça e viver pelos seus próprios meios. O progresso consiste, de Sade até aos nossos dias, em dilatar cada vez mais o recinto fechado onde, segundo a sua própria regra, reinava ferozmente o homem sem Deus. Levaram cada vez mais longe as fronteiras do campo murado perante a divindade, até converterem o universo inteiro numa fortaleza contra o deus decaído e exilado. O homem, ao cabo da sua revolta, enclausurava-se; a sua grande liberdade consistia unicamente, desde o castelo trágico de Sade até ao campo de concentração, em construir a prisão dos seus crimes. Mas o estado de sítio vai-se generalizando a pouco e pouco; a reivindicação de liberdade quer abranger toda a gente. Há então que edificar o único reino que se opõe ao da graça — o da justiça — e reunir enfim a comunidade humana sobre os escombros da comunidade divina. Matar Deus e edificar uma igreja, eis o movimento constante e contraditório da revolta. A liberdade absoluta converte-se enfim numa prisão de deveres absolutos, numa ascese coletiva, numa história por acabar. O século XIX, que é o da revolta, entra assim no século XX da justiça e da moral, onde cada um se ocupa em bater no peito. Chamfort, moralista da revolta, já lhe tinha criado a fórmula: “É preciso ser-se justo antes de se ser generoso, tal como se possuem camisas antes de se terem rendas”. Assim se renunciará à moral de luxo em proveito da áspera ética dos construtores. É este convulsivo esforço em direção ao império do mundo e da regra universal que teremos agora de focar.

« Chegamos ao momento em que a revolta, repelindo toda a espécie de servidão, pretende anexar por completo a criação. Sempre que um malogro se verificava, vimos já anunciar-se a solução política e conquistadora. Doravante, apenas conservará das suas aquisições — e com o niilismo moral — a vontade de poder. Em princípio, o revoltado apenas desejava conquistar o seu próprio ser e mantê-lo à face de Deus. Mas perde a memória das suas origens e, pela lei de um imperialismo espiritual, ei-lo a caminho do império do mundo através dos crimes, multiplicados ao infinito. Expulsou Deus do seu céu, mas o espírito de revolta metafísica, unindo-se então francamente ao movimento revolucionário e à reivindicação irracional da liberdade, vai paradoxalmente eleger como arma a razão, único poder de conquista que lhe parece puramente humano. Morto Deus, restam os homens, isto é, a história que se impõe compreender e construir. O niilismo que, no seio da revolta, submerge nesta altura a força da criação, acrescenta unicamente a seguinte afirmação: podemos edificá-la lançando mão de todos os meios. Aos crimes do irracional, o homem, numa terra que ele reconhece daí em diante como solitária, vai acumular os crimes da razão a caminho do império dos homens. Ao “revolto-me”, “portanto existimos”, acrescenta, meditando prodigiosos desígnios e até a própria morte da revolta: “E encontramo-nos sós”.»

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Conclusão do segundo capítulo do livro O Homem Revoltado, de Albert Camus.

Una bella definición de la libertad

Alexis de Tocqueville

« Cuando, después de haber dirigido una mirada rápida a la sociedad norteamericana de 1650, se examina la situación de Europa hacia la misma época, se siente uno sobrecogido de profunda sorpresa: en el continente europeo, a principios del siglo XVII, triunfaba en todas partes la monarquía absoluta sobre los restos de la libertad oligárquica y feudal de la Edad Media. En el seno de esa Europa brillante y literaria, nunca fue tal vez más completamente desconocida la idea de los derechos; los pueblos nunca habían vivido menos su vida política; jamás las nociones de la verdadera libertad habían preocupado menos a los espíritus. Fue entonces cuando esos mismos principios, no conocidos en las naciones europeas o despreciados por ellas, se proclamaron en los desiertos del Nuevo Mundo y llegaron a ser el símbolo de un futuro gran pueblo. Las más atrevidas teorías del espíritu humano se hallaban convertidas a la práctica en esa sociedad tan humilde en apariencia, de la que sin duda ningún hombre de Estado de entonces hubiera dignado ocuparse. Entregada a la originalidad de su naturaleza, la imaginación del hombre improvisaba allá una legislación sin precedente. En el seno de esa oscura democracia, que no había engendrado aún ni generales, ni filósofos, ni grandes escritores, un hombre podía erguirse en presencia de su pueblo libre, y dar, entre las aclamaciones de todos, esta bella definición de la libertad:

“No nos engañemos sobre lo que debemos entender por nuestra independencia. Hay en efecto una especie de libertad corrompida, cuyo uso es común a los animales y al hombre, que consiste en hacer cuanto le agrada. Esta libertad es enemiga de toda autoridad; se resiste impacientemente a cualesquiera reglas; con ella, nos volvemos inferiores a nosotros mismos; es enemiga de la verdad y de la paz; y Dios ha creído un deber alzarse contra ella. Pero hay una libertad civil y moral que encuentra su fuerza en la unión y que la misión del poder mismo es protegerla; es la libertad de hacer sin temor todo lo que es justo y bueno. Esta santa libertad, debemos defenderla en todas las ocasiones y exponer, si es necesario, por ella nuestra vida (41).”

« Ya he hablado sobre esto lo suficiente para esclarecer el carácter de la civilización angloamericana. Es el producto -y este punto de partida debemos tenerlo siempre presente- de dos elementos completamente distintos, que en otras partes se hicieron a menudo la guerra, pero que, en América, se ha logrado incorporar en cierto modo el uno al otro, y combinarse maravillosamente: el espíritu de religión y el espíritu de libertad.»

Alexis de Tocqueville, La Democracia en América (1835).

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