palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Humor Page 1 of 13

Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’

Furibundo, o pai decidira: se necessário, iria quebrar a cara daquele professor! Onde já se viu? Isso lá era tarefa que se desse a crianças de dez anos de idade? Não, não deixaria barato. Estava tão indignado, tão furioso, que nem avisara a esposa de que iria à escola. Por que o faria? Ela ainda não sabia de nada. E ele nada lhe dissera, não simplesmente para poupá-la, mas também para evitar que ela o impedisse de levar as coisas às últimas conseqüências.

— No mínimo, no mínimo, esse professor merece um murro na cara! — grunhia.

Colocou a odiada máscara pandêmica e entrou na escola pisando duro, a agenda do filho enrolada na mão direita feito um porrete. O porteiro o interpelou:

— Aonde o senhor vai?

— Tenho uma reunião marcada com o senhor Ferreira.

Impressionado com as feições carregadas daquele pai, o porteiro interfonou imediatamente para a secretária do diretor.

— Sim, sim. Tá certo — murmurou. E para o pai: — O senhor pode entrar. Basta subir aquela escada à direita e…

— Obrigado, eu sei onde é — atalhou secamente o homem, partindo na mesma velocidade com que entrara

Na escada, já se imaginava esculhambando o professor. Dar-lhe um murro, claro, era apenas um sonho vão. Na verdade, ficaria bastante satisfeito com sua demissão e, claro, com sua condenação na Justiça.

O diretor, todo sorridente, já o aguardava à porta da sala. Tinha um ar tranqüilo. A secretária, essa, sim, parecia tensa.

— Boa tarde, doutor Araújo. Como vão as coisas?

— Péssimas — tornou o revoltado pai. — Precisamos esclarecer umas coisas.

— Entre, por favor, entre.

Sentaram-se. Doutor Araújo notou como o diretor, atrás de uma mesa gigante, ficava pequenininho em sua enorme cadeira de escritório. Pequenininho e redondo. A máscara, grande demais, meio caída sob as narinas, tornava-o ainda mais infantil.

— Do que se trata?

— Seu Ferreira, quero que o senhor chame esse tal de professor Luís para me explicar isto aqui — e, desenrolando a agenda escolar que tinha em mãos, mostrou-lhe a página com a absurda tarefa de casa.

O diretor, mudo, leu e releu a página umas três vezes. Não estava chocado, mas já não estava mais tão tranqüilo. Tinha mesmo era um ar de “ai ai, mais um imbróglio para resolver”.

— Bom, doutor… — finalmente disse, entrelaçando os dedos. — De fato, não é uma atividade das mais ortodoxas. Entendo sua preocupação.

— Das mais “ortodoxas”?! “Preocupação”? — enfureceu-se ainda mais. — Seu Ferreira, eu peguei meu filho, no flagra, fazendo troca-troca com outros cinco colegas dele! Cinco! Todos alunos desta escola. E, quando gritei com eles, disseram-me que era uma tarefa. E veja aí: é verdade!

— Troca-troca? Como assim “troca-troca”? — gaguejou o outro.

— Ué, vai me dizer que o senhor não sabe do que se trata? Eles estavam fazendo uma suruba, porra! Comendo os rabos uns dos outros!

— Suruba?! — empalideceu o diretor.

— Sim, exatamente. Garotos de dez anos fazendo suruba a mando de um professor descarado, de um pervertido. Até aquele menininho novato de Taiwan, que mal fala o português, estava lá! Enfim, quero que o senhor chame esse professor aqui… agora!

Sentindo que, caso não convocasse o professor, acabaria tendo de chamar seguranças, ou a cavalaria, serviços que não possuía, seu Ferreira engoliu em seco e, bufando, digitou um número no interfone.

— Dona Dalva, por favor, encontre o professor Luís e diga-lhe que venha urgentemente à minha sala — e ficou a ouvir a réplica. — Não — acrescentou, baixando a voz —, não importa que esteja em aula. Diga-lhe para vir. Qualquer coisa, fique a senhora mesma cuidando da turma dele — e desligou.

Notando mais acuradamente a atmosfera de adrenalina, testosterona e sede de justiça que cercava aquele médico de meia-idade, o diretor decidiu botar água na fervura: não pretendia testemunhar um docentecídio.

— O senhor precisa convir que vivemos novos tempos, doutor — e esboçou um sorriso amarelo. — Aliás, é por isso que contratamos o professor Luís, que é um…

— “Novos tempos”? — rangeu o pai, entredentes. — O senhor deveria saber, seu Ferreira, que, em toda fase decadente de uma civilização, os agentes dessa decadência se acham uns apologistas de grandes novidades. Sempre as mesmas! — e sacudiu a cabeça, sorrindo amargamente. — Novos tempos! Não há nada mais velho e recorrente do que os tais “novos tempos”.

Aquilo foi dito de maneira tão contundente e peremptória que o diretor preferiu calar-se e aguardar em silêncio. Começou a tamborilar a mesa, olhando de esguelha para o relógio de pulso. Embora o professor Luís não tenha levado mais de três minutos para assomar à porta, esses três minutos pareceram ao diretor uma eternidade.

— Bom dia — disse o professor Luís, a mão ainda na maçaneta. — Do que se trata?

— Bem, para começar… — tomou a palavra o diretor.

— Começar? — interrompeu-o o Dr. Araújo. — Mas cadê o professor Luís?

— Ué. Sou eu mesmo.

Dr. Araújo observou a figura de cima a baixo: uma mulher atarracada, uns seis meses de gravidez na barriga, os cabelos curtos pintados de azul, óculos redondos, uma atitude impertinente — talvez devido à máscara que só lhe cobria o queixo — e, o que lhe apareceu ainda mais esquisito, um buço aparentemente tingido de escuro à guisa de bigode.

— Mas… você é uma mulher! — exclamou, vendo seus sonhos de esmurrar um pervertido irem por água abaixo.

A figura crispou as mãos e se abespinhou de imediato:

— Ora, o senhor me respeite! Não sou uma mulher! — replicou, batendo um pezinho no chão e engrossando comicamente a voz, o que quase desconcentrou o pobre médico, já que essa voz lembrou-lhe claramente o tom com que sua mãe, ao narrar um conto de fadas, interpretava as falas do Lobo Mau.

Desconcertado, o Dr. Araújo virou-se para o diretor:

— Tudo bem, tudo bem — quase gaguejou. — Se ela causou o problema, é com ela mesmo que…

— “Ela”, não! — berrou o professor Luís, colocando a máscara na posição correta. — Eu sou um homem trans! Não seja transfóbico comigo!

Dr. Araújo arregalou os olhos:

— Transfó… — e deu um pequeno murro na própria coxa. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece com essas besteiras políticas para cima de mim. Vim aqui discutir algo muito sério. Não vim para defender que a grama, em vez de cor-de-rosa, é verde. Eu sou médico obstetra, caramba! Onde já se viu? Um homem grávido?

— Isso mesmo! Sou homem e estou grávido. Só o mais rasteiro preconceito é incapaz de admitir isso.

— Preconceito? Quem não admite isso é a natureza. O bebê está onde? Na próstata? No saco escrotal? Vai sair pela uretra?

O professor Luís deu um passo ameaçador na direção do médico, fato esse que alarmou o diretor:

— Por favor, doutor — interveio seu Ferreira, limpando o suor da testa. — Tente ser mais cordial. Estamos aqui para ouvir suas queixas.

— OK. Se ela não vier com essas…

— “Ela”, não! Meus pronomes são “ele” e “dele”. Já disse: eu me identifico como homem. Então, fale comigo sem ser preconceituoso.

O doutor, em sua irritação, quase se levantou da cadeira. Odiava ter de trair sua apreensão direta do mundo. Mas, após remexer-se por um segundo, teve um insight e voltou a acomodar-se. Decidiu aderir estrategicamente ao jogo:

— Está certo! Entendi — soltou, num tom de quem dava o braço a torcer. — Então, por favor, exijo reciprocidade: meus pronomes são “vós” e “vossos”. Eu me identifico com um conde do século XVIII. Tratem-me de acordo.

— Dr. Araújo, o senhor não pode…

— “Vós não podeis”.

— Hum?

— “Vós não podeis”. Use comigo a segunda pessoa do plural.

O diretor relanceou um olhar confuso para o professor Luís, que permanecia de pé, numa atitude severa de galinha choca. Estava certo aquilo? Uma pessoa também podia identificar-se como um conde do século XVIII? Como seus olhos não encontraram qualquer reação ou resposta cúmplice da parte daquele indignado “homem trans”, retomou a palavra.

— Doutor Araújo, vós… bem, vós não podeis se dirigir a uma pessoa trans…

— “Conde Araújo, vós não podeis dirigir-VOS…”

O diretor calou-se e cerrou os olhos, petrificado como uma estátua. O doutor quase podia ouvi-lo contando internamente até dez. Por alguma razão, pensou, a exasperação do diretor era uma espécie de socialização da sua própria indignação. Até sentiu que seu fardo estava mais leve, uma vez que mais alguém ajudava a carregá-lo. Talvez o próprio diretor percebesse o ridículo daquela situação, mas, para manter o emprego, via-se obrigado a seguir o faz-de-conta.

— Bem, vamos prosseguir com o que realmente interessa — disse finalmente seu Ferreira, abrindo os olhos. E respirou fundo: — O caso, professor Luís, é que o dou… quero dizer, o Conde Araújo tem uma reclamação justa e pode prová-la: veja a tarefa anotada pelo filho vosso… quer dizer, vosso filho dele. É verdade que você mandou os meninos fazerem uma… — e pigarreou: — uma suruba?

O professor Luís, de braços cruzados sobre o barrigão, o queixo erguido, mantinha uma atitude desafiadora:

— Suruba? — e deu uma risadinha desdenhosa. — Imagino que pessoas caretas e recalcadas até poderiam interpretar assim, mas a tarefa que dei pra eles foi a de conhecer os corpos uns dos outros. Como vão saber se preferem namorar meninos ou meninas? Precisam se conhecer. Por isso nunca disse que isso devia ser feito apenas entre meninos.

O médico mal podia acreditar no que ouvia:

— Conhecer os corpos! Meu Deus… — e suspirou. — Então, para conhecer alguma coisa eles precisam usar o tato, a pele, esfregando-se uns nos outros, tocando-se, pegando nos órgãos genitais alheios e o pior: metendo os pauzinhos nos cus uns dos outros? Namorar uma pinóia! Isso é troca-troca! E não havia menina nenhuma! Se houvesse, tanto pior! Eles são crianças! Crianças! Entendeu? Mas, enfim, o fato é que era uma surubinha gay!

O professor Luís, mal contendo uma veleidade de sorriso, passou tranqüilamente uma mão pela cabeça colorida:

— Admito que mandei eles se desnudarem, se tocarem, se esfregarem, para melhor se conhecerem. Mas não mandei ninguém comer ninguém.

— Ah, isso é muito bonito: “Mandei esparramarem a gasolina pelo chão e acender o fósforo, mas não mandei ninguém incendiar a casa”. Você é retardada por acaso?

— “Retardada”, não! Mais respeito com os defi…

— Ah, me desculpe, errei o gênero: você é retardado?

Mais tarde o Dr. Araújo, ao narrar a cena para a esposa, compararia o que se seguiu a uma dessas cenas em câmera lenta de filme de ação: numa fração de segundo, o professor Luís, com a mão direita erguida, o olhar alucinado, voou em sua direção com o claro intuito de estapeá-lo, porém, o diretor, com a agilidade de um macaco-prego, sim, um macaco gordinho, galgara simultaneamente a mesa, atirando-se sobre o professor antes que o tabefe fosse desferido. Ambos caíram ao chão, atrelados um ao outro, o que muito preocupou o médico obstetra, que avançou para tentar proteger com as mãos o inocente nascituro. O professor, sem sucesso, tentava livrar-se do abraço pacificador do diretor e parecia acreditar que o doutor tencionava agredi-lo. A essa altura, ninguém mais usava máscaras.

— Que loucura! Vocês vão matar a criança! — berrou o doutor, os olhos esbugalhados.

Alarmado com essa observação, o diretor engatinhou a um lado, ao passo que o professor caía das nuvens, preocupadíssimo, aceitando as mãos do médico sobre sua barriga:

— Nossa, doutor! Será que aconteceu alguma coisa com mi filhe? — balbuciou num tom surpreendentemente feminino.

— “Mi filhe”? — E num esgar: — Que diabo de língua é essa? Esgueiranto?

O diretor não agüentava mais:

— Pelo amor de Deus, não recomecem! Chega de provocações! Pode ser?

Sem responderem nem que sim, nem que não, médico e paciente obedeceram tacitamente ao já irado diretor. O doutor Araújo, com um ar compenetrado, profissional, apalpou o ventre do professor por todos os lados. Por fim, aliviado e satisfeito, ergueu-se e declarou:

— Não se preocupe. Está tudo bem.

— Obrigado, doutor.

— Está vendo? — acrescentou o médico, solícito, numa sinceridade inocente e transbordante. — Homem ou mulher, pouco importa: você já é uma boa mãe.

Para quê… O professor Luís voltou a enfurecer-se:

— “Mãe”, não! Pai! Pai! Eu sou é o pai!

— E a mãe é quem? — retrucou o médico, cruzando os braços. — Um dos irmãos… digo, uma das “irmãs” Wachowski? O mundo virou mesmo uma Matrix, uma simulação insuportável…

O professor rosnou, fora de si, fazendo menção de levantar-se. No entanto, antes que a coisa voltasse a azedar, o diretor se interpôs:

— Por favor, doutor… conde… ou o caralho a quatro: retirai-vos. Sim? Dou por encerrada esta reunião. Conversaremos novamente noutra oportunidade.

Enquanto seu Ferreira ajudava o professor Luís a se levantar, o doutor pegou a agenda do filho e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, virou-se ainda uma vez:

— Obrigado por sua atenção, seu Ferreira, mas não voltaremos a nos falar. Aguarde a visita do meu advogado. Ficarei muitíssimo satisfeito quando esse escândalo estourar e vocês dois estiverem na cadeia — e sorriu cinicamente: — Aliás, professor Luísa, estou curioso para saber se você vai gostar da prisão masculina. Muitos homens vão querer dividir a cela com você…

E, tendo dito isso, saiu, sem deixar de reparar nos olhos arregalados da secretária, que, ao vê-lo, fingiu-se de muito ocupada.

Quando chegou em casa, o doutor, aliviado e seguro de si, finalmente contou tudo à esposa, que, até então, nem sequer havia se inteirado do famigerado troca-troca. Escandalizada, persignando-se, instou o marido a abrir um processo contra a escola o mais rápido possível. Naquele mesmo dia, ele entrou em contato com seu advogado, que lhe garantiu: a indenização estaria na casa dos seis dígitos, talvez até dos sete. De fato, o advogado foi ligeiro e, na semana seguinte, o processo estava aberto.

— A Justiça não o deixará na mão, doutor Araújo — disse-lhe ao telefone.

No mesmo dia, um camburão da polícia foi à casa do médico — para prendê-lo, claro, afinal, ele havia cometido o horroroso crime de transfobia. Sim, o professor Luís, muito escolado nessas questões de “perseguição fascista”, havia gravado, em seu celular, todo o diálogo ocorrido, tendo entregado à polícia uma versão editada na qual só se ouvia, como mais tarde noticiou a imprensa, “o discurso de ódio do maligno médico obstetra”. De fato, a professora… perdão, o professor não era nada bobo.

Sentado na traseira do camburão, o médico, que de tanta cólera finalmente atingira um estado de serena passividade, não conseguia esquecer o diálogo que tivera com o filho, na ocasião do flagra, logo após a partida dos coleguinhas:

— Meu filho, você não tem vergonha?! Isso lá é coisa que se faça?

— Calma, pai! — dizia o garoto, sorrindo.

— Que calma o quê! E tira esse sorriso bobo da cara!

— Bobo, não! Eu sou é muito esperto!

— Ah, é! Muuuito esperto! Deixar os outros come… — e pigarreou: — Deixar cinco moleques pegarem na sua bunda agora é esperteza?

— Não, pai: eu sou muito esperto mesmo. Na verdade, eu comi todo mundo e só dei uma vez! E dei justamente pro Liu Xiang, que tem um pau desse tamaninho!

No camburão, o médico imaginava que, se tivesse uma personalidade diferente, se fosse, como se diz, mais “zoeiro”, talvez até tivesse achado graça naquilo: “Nossa, meu filho é esperto mesmo! Comeu todo mundo e só deu uma vez”. Mas era impossível, pois não tirava da cabeça a imagem do filho ao ser flagrado: aquele olharzinho maquiavélico, ladino, calculista… aquele sorrisinho perverso, dos mais devassos… E ele só tinha dez anos de idade!

— Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’ — murmurava sem parar, o olhar perdido, a cabeça a golpear, a cada solavanco, a janela da viatura.

                FIM

Trecho de “O doente imaginário”, de Molière

Ato III, Cena III de “O doente imaginário”, de Molière.

O não-vacinado e o vacinado

BERALDO
Posso pedir-lhe, meu irmão, antes de tudo, que não se irrite durante a nossa conversa?

ARGAN
Muito bem.

BERALDO
E respondas sem rancor a tudo que eu possa dizer?

ARGAN
Sim.

BERALDO
E raciocinarmos juntos sobre o que temos de falar, com o espírito livre de toda paixão?

ARGAN
Sim, que diabo! Acabe com o preâmbulo!

BERALDO
De onde lhe vem a idéia de meter sua filha num convento?

ARGAN
Vem do fato de eu ser dono de minha família e poder fazer com ela o que me parecer melhor!

BERALDO
Sua mulher não se cansa de aconselhar que você se livre de suas filhas; e eu não duvido de que, por espírito religioso, ela se encante de ver as duas como freiras.

ARGAN
Agora chegamos ao ponto. Já está em jogo a minha pobre mulher. É ela quem pratica todo o mal; ninguém gosta dela!

BERALDO
Não, meu caro irmão. Sua mulher tem as melhores intenções para com sua família, e não liga a qualquer interesse; e lhe dedica uma ternura maravilhosa; e mostra por suas filhas uma afeição e uma bondade inconcebíveis. Tudo isto é certo. Não falemos disto e voltemos a Angélica. Por que quer você entregá-la ao filho desse médico?

ARGAN
Porque quero um genro que me convenha.

BERALDO
Parece até que você quer casar com ele! Pois eu lhe digo; apareceu um melhor partido para sua filha.

ARGAN
Mas o que escolhi é melhor partido para mim.

BERALDO
Mas o marido é para ela ou para você?

ARGAN
Para ela e para mim: quero na família as pessoas de que preciso.

BERALDO
E por isso se Luizinha fosse mais crescida, você lhe arranjaria um farmacêutico?

ARGAN
Por que não?

BERALDO
Será que você estará sempre enrabichado pelos seus doutores e farmacêuticos, e deseja ser doente a ponto de contrariar a natureza?

ARGAN
Que é que você acha, meu irmão?

BERALDO
Não vejo ninguém menos doente do que você; eu gostaria de ter a sua saúde! Uma grande prova de que você se sente bem e tem uma resistência incrível, é que todos esses clisteres não conseguiram derrubá-lo e você consegue ficar em pé depois de tantas inundações.

ARGAN
Mas são estas coisas que me conservam! O Doutor Purgon afirma: eu morrerei se passar três dias sem sua assistência!

BERALDO
Se você não tomar cuidado, ele lhe dará tanta assistência que o enviará ao outro mundo.

ARGAN
Vamos lá: raciocinemos, meu irmão. Você não acredita na medicina?

BERALDO
Não, meu irmão: e não vejo necessidade de crer para ter saúde.

ARGAN
O quê? Você não acha verdadeira uma coisa estabelecida por todos e por todos os séculos reverenciada?

BERALDO
Muito ao contrário, cá entre nós, acho-a uma das maiores loucuras dos homens; e, contemplando as coisas como filósofo, não vejo palhaçada mais divertida, nada de mais ridículo, que um homem a querer curar outro.

ARGAN
Por que, meu irmão, você não quer aceitar que um homem possa curar outro?

BERALDO
Por um simples fato; as peças de nossa máquina são mistérios; até hoje os homens não entendem patavina destas coisas; e a natureza colocou véus demasiado espessos, diante dos nossos olhos, para que possamos enxergar alguma coisa.

ARGAN
Na sua opinião, os médicos não sabem nada?

BERALDO
Sabem grande quantidade de humanidades, sabem falar em belo latim, sabem batizar em grego todas as doenças, defini-las e classificá-las; mas, quando se trata de curar não sabem nada de nada.

ARGAN
Mas pelo menos vamos convir: nessa matéria, os médicos sabem mais que os outros.

BERALDO
Sabem o que eu já disse e que não cura grande coisa; e toda a excelência de sua arte e uma pomposa parlapatice, um especioso dialeto, a oferecer palavras como razões e promessas como efeitos.

ARGAN
Mas, meu irmão: há pessoas tão sensatas e hábeis quanto você, e essas pessoas, quando adoecem, chamam médicos.

BERALDO
Aí está uma marca da fraqueza humana, e não uma verdade da arte médica.

ARGAN
Mas os médicos certamente crêem na verdade de sua arte. Pois se servem dela para si mesmos.

BERALDO
É que há entre eles os que estão, eles próprios, atolados no erro popular, de onde tiram proveito: e outros que aproveitam sem acreditar no erro. Veja o Doutor Purgon, por exemplo, homem sem a menor finura: é médico, da cabeça aos pés; um homem que crê nas suas regras mais do que em todas as demonstrações matemáticas, e julgaria crime examiná-las: não vê nada de obscuro na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil: e, com uma impetuosidade de prevenção, uma confiança cega, uma total brutalidade de senso comum e de razão, sai por aí a dar lavagens e sangrias! Não devemos querer mal a ele por tudo quanto deseja fazer por você: é com a melhor boa-fé do mundo que irá mandá-lo para o outro mundo. Quando o matar, terá feito com você o que fez com a mulher e os filhos e o que acabará fazendo com ele mesmo.

ARGAN
Você tem é implicância com ele! Mas vamos ao fato: que devemos fazer quando adoecemos?

BERALDO
Nada.

ARGAN
Nada?

BERALDO
Nada. Nada de ficar em repouso. Quando deixamos agir a natureza, ela se safa docemente da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência que estragam tudo; e quase todos os homens morrem dos seus remédios, não de suas doenças.

ARGAN
Mas é preciso concordar, meu irmão: pode-se ajudar a natureza por certos meios.

BERALDO
Santo Deus! Estas são idéias que gostamos de cultivar; em todos os tempos, surgem entre os homens belas fantasias em que acabamos acreditando, porque é agradável imaginá-las verdadeiras. Quando um médico fala de ajudar, de socorrer, de aliviar, de arrancar da natureza o que a aflige e de lhe dar o que lhe falta, de restabelecê-la no pleno gozo de suas funções, quando fala de corrigir o sangue, de temperar as entranhas e o cérebro, de esvaziar as glândulas, de sossegar o peito, de consertar o fígado, de fortificar o coração, de restabelecer e conservar o calor natural, e de ter segredos para prolongar a vida, está falando justamente do romance da medicina. Mas quando se vai à verdade da experiência, não se encontra nada disto: tudo é como os belos sonhos, que ao despertar nos deixam apenas a tristeza de ter acreditado neles.

ARGAN
Muito bem! Toda a ciência do mundo está guardada na sua cabeça! E você sabe mais que todos os grandes médicos do século!

BERALDO
Nos discursos e na ação, são pessoas diferentes esses seus grandes médicos: quando falam, são os mais hábeis do mundo; quando agem, são os mais ignorantes dos homens.

ARGAN
Ah! Pelo que vejo, você é um grande doutor, e eu gostaria que aqui estivesse algum desses senhores, para revidar seus raciocínios e baixar o seu topete.

BERALDO
Não me atribuo a tarefa de combater a medicina, meu irmão; cada um corra o risco de crer no que quiser. O que eu digo é entre nós; e eu gostaria de levá-lo, para divertir-se sobre o assunto, a ver alguma das comédias de Molière.

ARGAN
Aí está um bom impertinente, esse Molière, com suas comédias! E não deixa de ser um gaiato, quando zomba de gente honesta como os médicos!

BERALDO
Não é dos médicos que ele zomba: é do ridículo da medicina.

ARGAN
Fica-lhe muito bem meter-se a controlar a medicina! Aí está um belo joão-ninguém, a zombar de consultas e receitas, a atacar a corporação dos médicos, a exibir no teatro pessoas verdadeiras como os doutores!

BERALDO
Que é que você quer que ele exiba? Todas as profissões? Aí se exibem também todos os dias os príncipes e os reis, gente tão decente quanto os médicos.

ARGAN
Com mil demônios! Se eu fosse médico, me vingaria de sua impertinência! E quando adoecer, deixem morrer sem socorro esse senhor Molière! Eu o deixaria falando sozinho, não lhe receitaria a menor sangria, o menor clister! E lhe diria: morra, morra! Isto te ensinará a zombar da Faculdade!

BERALDO
Que cólera contra ele!

ARGAN
Estou com raiva, sim! É um tolo! E se os médicos têm juízo, farão o que eu digo!

BERALDO
Terá mais juízo do que os seus médicos, porque não lhes pedirá socorro.

ARGAN
Pior para ele, se não usa remédios.

BERALDO
Para isto tem suas razões; e sustenta que só os robustos e vigorosos podem fazê-lo, suportando os remédios e ao mesmo tempo a doença; quanto a ele, diz que só tem forças para carregar seu próprio mal.

ARGAN
Que razões tolas! Chega de falar desse homem: isto me esquenta a bílis e me faz piorar.

BERALDO
Para mudar de assunto, quero dizer-lhe: você não deve mandar sua filha para um convento pelo fato de ela mostrar suas pequenas repugnâncias. Para a escolha de um genro, não se deve seguir cegamente a paixão que o arrebata. Neste assunto, deve-se procurar atender um pouco às inclinações da jovem. Trata-se de uma escolha para toda a vida, e dela depende a felicidade do casamento.

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A peça pode ser baixada, em PDF, neste link.

O décimo terceiro apóstolo

Outro dia, assisti no Youtube a uma entrevista do John Cleese (ex-integrante do grupo Monty Python) concedida ao ótimo e sempre elegante Dick Cavett. Falavam sobre o filme A Vida de Brian.

Cleese comenta que a idéia original era tornar Brian o décimo terceiro apóstolo de Cristo, aquele que sempre chegaria atrasado às reuniões, que ficaria extremamente confuso com as parábolas e cuja mãe, controladora que só, atrapalharia seu ministério religioso. Mas os membros do Monty Python, nem um pouco idiotas, refletiram: ora, Jesus, sendo Deus, sendo o homem perfeito, sempre conseguiria dar a volta por cima, tolerar o Brian e ensinar-lhe muitas coisas. Ou seja: não teria graça, pois, como diz Cleese, citando Aristóteles sem o perceber, “a comédia é a imitação de pessoas piores do que a gente”. Como fazer humor de alguém que é infinitas vezes melhor do que nós? Não funcionaria.

Não sei se os membros do Monty Python acreditam ou não em Jesus, não sei se são ou não cristãos. Sei apenas que alguns deles de vez em quando dizem algumas besteiras sobre política no Twitter, o que, na confusão dos dias atuais, é compreensível. Mas o fato é que, na época em que escreveram o roteiro de A Vida de Brian, demonstraram entender de símbolos — e isto basta para a arte.

De início, quando ouvi a idéia sobre o “décimo terceiro apóstolo”, pensei: terão temido as críticas dos cristãos? E logo vi que não: coragem não lhes faltava, nem ousadia. Mas, além dessas virtudes, também possuíam imaginação moral e compreensão de arquétipos. Ora, antes de o sujeito ser irreverente, ele precisa primeiro conhecer a reverência. Mas vai tentar enfiar isto na cabeça desses supostos humoristas que hoje andam por aí…

Retardados

Um caminhão carregado de laranjas tombou em frente ao Instituto Antônio Houaiss. Não foi um acidente: as próprias laranjas, após uma acalorada reunião, o tombaram. Em seguida, rolaram até a portaria do prédio, onde começaram a protestar, afirmando que o uso de seu nome, enquanto referência a um crime de natureza política, denigria sua imagem.

Um militante do movimento negro, passando por lá naquele mesmo instante, ouviu a terrível palavrinha — “Denigrir”?! — e enfezou-se. Sim, diria o vulgo, como se estivesse cheio de fezes.(O vulgo não sabe que a palavra “enfezar” vem do latim infensare.) E o militante, pois, furibundo, começou a pisotear as laranjas, que então gritaram de dor:

— Ai! Ele tá judiando da gente!

Ao ouvir aquilo, um careca (sim, um neonazista com as suásticas tatuadas ocultas sob a camiseta) — irritar-se-ão os que sofrem de calvície? — enfim, um careca iniciou um discurso no qual dizia que não apenas o holocausto, mas até mesmo os pogrons, nunca aconteceram. E também passou a sapatear sobre as pobres frutas. De fato, ouviu-se uma idosa dizer claramente: “Pobres frutas!”. E isto, claro, ofendeu um mendigo que, até então, limitara-se a observar silenciosamente a cena:

— Fruta é o veado do seu filho!

Para quê… Um militante gay enfureceu-se com aquilo, e então berrou:

— Veado é a mãe! Eu sou é gay.

No zoológico ao lado, o veado macho, líder do bando, pai zeloso, subiu nas tamancas, bradando lá de dentro:

— Como é que é?! Mãe?! Tá me estranhando?

E logo pulou a cerca, indo chifrar o militante gay.

O furdunço foi tamanho, que o Dicionário Houaiss, o famigerado Pai-dos-burros, que anos atrás já tivera problemas enormes com os ciganos (informe-se), levantou-se da prateleira e, da janela do prédio, ralhou a plenos pulmões com seus filhos, todos ali, engalfinhados na calçada, a rolar sobre marolas de suco de laranja:

— Parem de confundir o sentido literal ou o etimológico com o sentido conotativo, seus retardados!

Olharam-no pasmados, mas, sem dar com o significado daquelas estranhas palavras, partiram, em uníssono, para uma nova ignorância:

— Aquele livro falante ofendeu as pessoas portadoras de deficiência mental! Vamos rasgá-lo!

E isso explica por que, em frente ao Instituto Antônio Houaiss, nesta tarde, havia tanto papel misturado a bagaços de laranja.

Eu, o motorista e a camisinha cor-de-rosa

Em 1997, por indicação da minha amiga Monica Fernandes, consegui trabalho na Chroma Filmes, ex-Adrenalina Filmes, uma produtora de cinema paulistana, na qual assumi a posição de assistente de produção. Trabalhei em menos de uma dezena de filmes publicitários porque, mais tarde, em 1998, eu e alguns amigos abrimos nosso próprio estúdio. Mas, dentre todos os filmes em que trabalhei na Chroma, o de que mais me lembro foi um comercial de chiclete. (Não consigo encontrar nenhum dos filmes no YouTube, provavelmente porque a produtora não existe há anos e também porque já há outras produtoras homônimas.) Enfim, o caso é que passamos uns dois dias rodando o comercial no Clube de Regatas Tietê, cujo protagonista era um time de basquete espantoso que mais parecia uma versão local dos Harlem Globetrotters: aqueles caras gigantes, todos negros, não erravam uma bola!

Após gravar as cenas de jogo, as cenas da platéia — na qual eu mesmo tive de participar como figurante, com um pseudo-entusiasmo nascido da minha pungente necessidade de dinheiro — chegou o momento de rodar as cenas de primeiro plano, as quais incluíam a de um jogador que deveria inflar uma enorme bola com a goma do chiclete. (O chiclete, aliás, ao sair do pacote, tinha o formato de uma bola de basquete, incluindo a divisão em gomos. Seu interior, como a do concorrente mais famoso, tinha um líquido viscoso adocicado, o qual, nas cenas de detalhe, foi simulado com xampu, corante e mel, já que no lugar do chiclete, nessa ocasião, foi utilizado um mocape do tamanho de uma bola de futebol, mocape esse criado por um japonês formado em engenharia naval.)

Voltando… a questão é que nenhum dos jogadores selecionados conseguia fazer uma bola convincente com o chiclete! E isso simplesmente porque o chiclete era uma boa porcaria. Partiu-se então para os mais diversos substitutos: três chicletes ao mesmo tempo, chicletes concorrentes, bexigas de borracha, etc. mas nada dava certo. Na época, não havia computação gráfica no Brasil com qualidade suficiente para enganar o público e satisfazer o Odorico Mendes, diretor do comercial. E então alguém teve a grande idéia:

— Por que não usamos uma camisinha?

— Sim, concordou o diretor, pode dar certo.

E então, claro, sobrou para o coitado do assistente de produção, eu, ir comprar uma camisinha que deveria ter a ponta arredondada — sem aquele apêndice que visa conter o esperma — e o principal: deveria ser cor-de-rosa. Fui até a van (ou seria uma Kombi?) e saí com o motorista nessa busca frenética, deixando todo um set de filmagens de braço cruzado a me aguardar com aquela paciência áspera e fatal que só os profissionais de São Paulo conhecem. (E é por isso que o nome Adrenalina era muito mais condizente com a produtora do que o agradável Chroma.) Passamos por umas três farmácias que só possuíam as tradicionais Jontex e Olla “cor da pele” — informação essa que passei ao motorista, que se irritou, porque era um negro de dois metros de altura, com um torso de geladeira — e, finalmente, numa quarta farmácia, após deixar o gaiato, porém irritado, motorista na van, vi-me de repente cercado por prateleiras com as mais diversas marcas de camisinhas. Já fui logo dizendo à atendente:

— Qual dessas é cor-de-rosa?

Ela me encarou de um jeito estranho, suspicaz, como se eu fosse um fetichista de um tipo inédito:

— Não sei. Mas deve estar escrito nos pacotes, não?

E, apressado, comecei a ler rótulo por rótulo, abrindo alguns que tinham a embalagem rosada e me decepcionando com o resultado:

— Você vai pagar por essas.

— Claro que vou. Vai separando aí.

Lá pelas tantas, após um intervalo de tempo que pode ter sido tanto de cinco quanto de quinze minutos — já estava imaginando a bronca do diretor e por isso o tempo se dilatava —, entrou na farmácia o negão de dois metros de altura com torso de geladeira tamanho família:

— E aí, Yuri? Já comprou a camisinha? Eu tenho que cumprir o horário, não posso ficar tanto tempo por conta.

A vendedora, o farmacêutico, os demais fregueses, enfim, todos arregalaram os olhos e nos observaram com um silêncio dos mais constrangedores e inconvenientes, alguns com uma ruga na testa, fruto de alguma cena imaginada a contragosto. Por que aquele rapaz franzino e tímido estava comprando camisinhas acompanhado por um negro enorme?

Olhei irritado para o sujeito:

— Por que você não esperou lá na van? Devia estar com o motor ligado.

— Eu tô com o motor ligado.

Olhei para fora e vi que, de fato, o maluco tinha largado o carro ligado junto ao meio-fio. Mas também notei que essa declaração dele fez com que algumas pessoas olhassem para a sua braguilha… Isso foi o suficiente para me deixar roxo de raiva. E de vergonha, claro. Felizmente, para meu alívio, dez segundos depois encontrei uma marca importada cuja camisinha era cor-de-rosa, de ponta arredondada e que ainda tinha sabor morango.

— Perfeita! — disse o motorista, aumentando o meu constrangimento e a minha irritação.

Paguei por todas as camisinhas cujo pacote abri, pela escolhida e corremos para o Clube de Regatas. Estava com mais pressa de sair dali do que de chegar ao set de filmagens. Uma vez no set, a chefe de produção, ao me ver, fechou a cara e correu na minha direção:

— Porra, meu! Finalmente! O Odorico já tava querendo o meu fígado.

— Ele vai curtir essa aí — respondi, entregando o pacote para o assistente de direção, que viera atrás dela.

Assim que o assistente saiu, ela se virou novamente para mim e, num tom meio aliviado, meio seco, disse:

— Beleza. Cadê as notas?

Arregalei os olhos e comecei a suar frio: eu esquecera as notas fiscais! Limitei-me a sacudir a cabeça negativamente e a mostrar as mãos vazias. Para quê… a mulher soltou os cachorros em mim, gritando histericamente, o que atraiu as atenções de todo o ginásio. Lembro que os epítetos mais elogiosos foram “burro” e QI Zero”.

— Como é que eu vou justificar esse gasto no orçamento agora? Vou descontar do seu cachê!

Concordei e fiquei xingando-a por dentro. Eu nunca esquecera as notas fiscais antes, mas era a primeira vez que trabalhava com ela. Não disse nada. De que adiantaria dizer que o negão de dois metros de altura atrapalhara minha concentração lá na farmácia? Naquela época eu era tremendamente tímido e não tinha o menor jogo de cintura em situações desse gênero. Hoje em dia, eu até me viraria para o cara e diria na frente de todos: “E aí, Zezão? Acha que essa cabe em você? A minha eu já achei: e é muito maior que a sua”. Em suma: vivendo, se fodendo e aprendendo.

O rei da lua

Este é o Rei da Lua, mas poderia ser Kant ou Descartes.

Hilda Hilst: “Que besteira, meu Deus!”

Em 1998, pouco antes de me mudar para a Casa do Sol, a revista Bundas — lançada pelo Ziraldo no ano seguinte em oposição paródica à revista Caras — enviou um jornalista para entrevistar Hilda Hilst. Nessa entrevista, como é de praxe entre a nossa intelligentsia, foi-lhe perguntado algo sobre sexo e ela respondeu que já não atribuía tanta importância ao tema, tendo inclusive abraçado a castidade desde que completara 50 anos. Não me recordo do conteúdo exato da matéria publicada, mas me lembro bem do exemplo dado por ela para ilustrar esse desinteresse recente: certa feita, um amigo-secretário lhe pediu para usar seu banheiro privado, uma vez que o chuveiro do banheiro de hóspedes estava queimado. Minutos depois, enquanto ela se dirigia para o quarto, esse amigo surgiu à sua frente, no corredor, completamente nu, distraído, enxugando os cabelos com a toalha. Ela então olhou para o pau dele e… caiu na gargalhada. Ele, que não a havia visto, ficou deveras encabulado com aquela reação:

— O que é que foi, Hilda?

Ela apontou para o pau dele e, ainda às gargalhadas, quase sem fôlego, comentou:

— Mas é por isso?! É por causa dessa coisa que tanta gente chora pelos cantos, que tanta gente se mata? Que besteira, meu Deus!

Eu sei que amigo era esse, mas, infelizmente, a matéria foi publicada apenas em 1999, quando ele já havia se mudado da casa, e, claro, a coisa toda sobrou para mim, o novo “amigo secretário”. Durante pelo menos dois anos tive de ouvir:

— Yuri, o que a Hilda viu de tão engraçado e ridículo no seu pau?

— Não era o meu, cacete!!

— Yuri, é verdade que seu pau fez a Hilda desistir para sempre do sexo?

— Não era o meu, porra!

O lema da revista Bundas era: “Quem coloca a bunda em Caras não coloca a cara na Bundas”. Mas, caramba, precisavam colocar um pau? (Não era o meu, caralho.)

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