Em algum ponto da Transilvânia, Drácula, o monstro, dorme em seu caixão forrado de cetim, esperando pela noite. Como a exposição aos raios solares faz-lhe mal à pele, podendo até destruí-lo, ele se mantém protegido na sua tumba, a qual ostenta, gravado em prata, o nome de sua família. Chega então a hora das trevas e, guiado por seu miraculoso instinto, o demônio emerge da segurança de seu esconderijo e, assumindo as pavorosas formas do morcego ou do lobo, erra pelas redondezas, bebendo o sangue de suas vítimas. Finalmente, antes que despontem no céu os primeiros raios de seu arquiinimigo, o sol, ele volta ao jazigo e dorme, à espera de que o ciclo recomece.
Neste momento ele começa a se mexer. O bater de suas pálpebras é a reação a um instinto secular e inexplicável de que o sol está se pondo e que chega a sua hora. Está particularmente sedento esta noite e, enquanto permanece deitado, já totalmente desperto, vestido com sua capa negra por fora e vermelha por dentro, aguarda que a noite a tudo envolva para que abra a pesada tampa do caixão. Entrementes, decide quais serão as suas vítimas àquela noite. Por que não o padeiro e sua mulher? São suculentos, disponíveis e ingênuos. A lembrança do desavisado casal, cuja confiança ele cultivou cuidadosamente, excita de maneira quase febril a sua sede de sangue, e ele mal pode esperar mais alguns segundos para sair em busca de sua presa.
E, de repente, ele sabe que o sol se pôs. Como um anjo do inferno, levanta-se rapidamente e, transformando-se num morcego, adeja diabolicamente até a cabana de suas vítimas.
“Conde Drácula! Mas que surpresa agradável!”, diz a mulher do padeiro, abrindo a porta e convidando-o a entrar. (Claro que ele já reassumiu a forma humana, usando de todo o seu charme para disfarçar intenções tão malévolas.)
“O que o traz aqui tão cedo?”, pergunta o padeiro.
“O seu convite para jantar, naturalmente”, ele responde. “Espero não ter cometido um engano. Tínhamos marcado para esta noite, não?”
“Sim, para esta noite, mas ainda é meio-dia!”
“Como disse?” – perguntou o Conde, confuso.
“Ou veio para assistir conosco ao eclipse?”
“Eclipse?”
“Sim. Estamos tendo eclipse total.”
“O QUÊ?”
“O eclipse foi previsto para dois minutos depois do meio-dia. Deve estar terminando. Olhe pela janela.”
“Oh! Acho que estou frito!”
“Como?”
“Com licença, tenho que me retirar…”
“Como disse, Conde Drácula?”
“Preciso ir – ahhh – oh, meu Deus…” – e freneticamente agarra a maçaneta da porta.
“Já está indo, Conde? Mas o senhor acabou de chegar!”’
“Eu sei – mas – acho que me enganei…”
“Conde Drácula, o senhor está tão pálido!”
“Estou? Devo estar precisando de ar fresco. Olhem, foi um prazer revê-los e…”
“Ora, não faça cerimônia. Sente-se. Vamos tomar um drinque.’“
“Drinque? Não, preciso sair correndo. Aliás, voando! Tire o pé de minha capa.”
“Ah, desculpe. Vamos, relaxe. Quer um vinho?”
“Vinho? Não, pode deixar. Sofro do fígado, você sabe. E agora, tchau, tchau, preciso sair daqui a jato. Acabo de me lembrar que deixei acesas ao luzes do meu castelo. E com as contas ao preço em que estão…”
“Por favor”, insiste o padeiro, abraçando firmemente o Conde. “O senhor não está incomodando. Não seja tão cerimonioso. Apenas chegou mais cedo.”
“Olhem, eu gostaria, mas há uma reunião de condes romenos no castelo e ainda tenho que preparar os frios.”
“Mas que pressa. Não sei como não tem um ataque do coração!”
“Para dizer a verdade, acho que vou ter um agora!”
“Eu estava preparando justamente um empadão de galinha para esta noite”, diz a mulher do padeiro. “Espero que goste.”
“Adoro, adoro”, diz o Conde com um sorriso, empurrando a mulher sobre uma pilha de roupa suja. Abre por engano a porta de um armário, entra e diz: “Meu Deus, onde fica a merda da porta da frente?”
“Ha, ha!”, ri a mulher do padeiro. “Como o Conde é engraçado!”
“Engraçadíssimo”, responde o Conde, forçando uma risadinha. “Agora saia da frente, sua broa velha!” Finalmente abre a porta da frente, mas já não há tempo.
“Olhe, mamãe!”, grita o padeiro. “O eclipse deve ter terminado! O sol está saindo de novo!”
“É isso mesmo”, diz o Conde, voltando para dentro e trancando a porta. “Resolvi ficar. Fechem todas as cortinas depressa! Depressa!”
“Que cortinas, Conde?”
“Ah, vocês não têm cortinas. Devia ter adivinhado. O porão, onde fica o porão?”
“Não temos porão”, responde a mulher com ar compreensivo. “Estou sempre dizendo a Jarslov, temos que construir um porão, Jarslov. Mas Jarslov é assim, nunca segue meus conselhos, não é, Jarslov?”
“Estou sufocando. Onde é o armário?”
“Essa brincadeira nós já conhecemos, Conde. Mamãe e eu rimos muito.”
“Ah, como o Conde é engraçado!”
“Olhem, vou me trancar no armário. Acordem-me às 7:30!” E assim dizendo, o Conde se trancou no armário.
“Ah, ah, ah! Ele não é uma graça, Jarslov?”
“Oh. Sr. Conde, saia do armário! Não seja bobinho!”
De dentro do armário sai a voz abafada do Conde: “Não – posso. Por favor. Deixem-me – ficar aqui. Está escurinho, gostoso…”
“Sr. Conde, pare com isso. Já não agüentamos de tanto rir!”
“Eu – adoro – esse armário -”
Sim, mas…
“Eu sei, eu sei. Parece estranho, mas eu gosto de ficar aqui dentro. Outro dia mesmo eu estava dizendo à Sra. Hess, sou louco por armários. Sou capaz de ficar horas dentro deles. Boa mulher, a Sra. Hess. Gorda, mas uma doce criatura. Agora, por que vocês não vão dar uma volta e me chamam à noite, hem? Ramonal, la-ra-ri-la-ri-ri-ri-ri..,”
Chegam o Prefeito e sua mulher. Estavam passando e resolveram entrar para visitar seus bons amigos, o padeiro e a mulher.
“Olá, Jarslov. Espero que eu e Katia não estejamos incomodando.”
“Ora, Sr. Prefeito, é uma honra. Saia daí, Conde Drácula! Temos visitas!”
“O Conde está aqui?, pergunta surpreso o Prefeito.
“Está, e o senhor nunca adivinharia onde”, diz a mulher do padeiro,
“É tão difícil vê-lo a esta hora. Acho até que nunca o vi durante o dia.”
“Pois o fato é que ele está aqui. Saia daí, Conde Drácula!”
“Onde está ele?”, pergunta Katia, sem saber se deve rir ou não.
“Pare com essa brincadeira! Saia daí já-já!”, ordena a mulher do padeiro, já impaciente.
“Está trancado no armário”, diz o padeiro, meio sem jeito.
“É mesmo?”, pergunta o Prefeito.
“Vamos logo”, berra a mulher, esmurrando a porta. “Já perdeu a graça. O Prefeito está aqui.”
“Ora, Drácula, que piada é esta?”, grita o Prefeito. “Vamos tomar um drinque.”
“Vão embora, todos vocês. Estou ocupado” responde a voz do Conde.
“No armário?”
“Pois é. Não se preocupem. Daqui posso ouvir o que vocês dizem. Se tiver alguma coisa a acrescentar, prometo entrar na conversa.”
Os dois casais se entreolham, desistem, servem as bebidas e começam o papo.
“Que eclipse hoje, hem?”, comenta o Prefeito, bebericando.
“É, Incrível.”
“Incrível mesmo!”, comenta Drácula, lá do armário.
“O que foi, Conde?”
“Nada, nada. Esqueçam.”
E assim passa o tempo, até o Prefeito já não agüenta mais e abre à força a porta do armário, gritando: “Chega, Drácula. Saia daí. Você é um homem crescido. Pare com esta loucura.”
A luz do sol penetra no ambiente, fazendo com que o monstro comece a encolher, lentamente transformar-se em um esqueleto e finalmente ser reduzido a pó, diante dos atônitos presentes. Abaixando-se para contemplar o montinho de cinzas brancas no chão do armário, a mulher do padeiro grita:
“Quer dizer que vamos ter de jantar fora esta noite?”
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Cuca fundida, de Woody Allen.
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