« Depois que Kazan se retirou, Bakin sentou-se à mesa, como de hábito, com o intuito de continuar o manuscrito do Hakkenden, aproveitando a emoção que ainda sentia. Era seu costume, desde há muito, reler o que produzira no dia anterior, antes de continuar a escrever. Então, também nesse dia, leu com vagar e atenção as folhas do manuscrito, cheias de correções em vermelho entre as linhas cerradas.
« Mas, por que seria? Aquilo que estava escrito não sintonizava com seu espírito. Ocultas dissonâncias entre as palavras rompiam a harmonia do conjunto. No início, ele interpretou isso como efeito do seu nervosismo.
« — O problema, hoje, é meu estado de espírito. Pois o que está escrito, escrevi da melhor forma que pude.
« Assim pensando, retomou uma vez mais a leitura. Mas a tonalidade dissonante continuava inalterada. Ele começou a ser tomado pelo pavor, apesar de sua idade avançada.
« Como estará a outra parte?
« Passou os olhos pela parte que escrevera antes. Também ali via frases cruas e inúteis, espalhadas em desordem. Leu a parte anterior àquela. E depois leu a parte anterior a essa.
« Mas, à medida que as lia, a composição imatura e a redação caótica iam se desenrolando frente a seus olhos. Havia descrições de cenas que não sugeriam imagem alguma. Havia exclamações que não continham qualquer entusiasmo. E havia, ainda, uma retórica que não seguia nenhuma lógica. Todos aqueles manuscritos que lhe custaram muitos dias de trabalho, de seu ponto de vista atual, não passavam de uma inútil tagarelice. Ele sentiu de súbito uma dor lancinante a lhe penetrar a alma.
« — Não há outra solução senão reescrever desde o começo! — gritando assim com toda a alma, afastou para o lado os manuscritos, como que enojado, e deitou-se pesadamente, apoiado num dos cotovelos. Mas, talvez ainda preocupado, não desviava os olhos da mesa. Sobre aquela mesa, ele havia escrito o Yumiharizuki (Lua crescente), o Nankano yume (Sonhos de Nanka) e agora trabalhava no Hakkenden. Todos os objetos que estavam sobre a mesa — a pedra de tinta de Tankei, o peso de papel com formato de sonri, a garrafinha de bronze para água modelada em forma de sapo, o pára-vento de porcelana azul ultramar ornada de leão chinês e peônias e o pórta-pincéis grosso de bambu com orquídeas cinzeladas —, todos esses objetos de escritório desde há tempos estavam familiarizados com a dor que neles acompanhava a criação. Ao olhá-los, Bakin não podia reprimir uma inquietação abominável, como se o fracasso daquele momento projetasse uma sombra escura sobre as obras de sua vida inteira e como se sua própria competência estivesse dramaticamente sendo posta em questão.
« — Até há pouco, eu tinha a intenção de escrever uma grande obra-prima, sem igual no país. Mas pode ser que esta seja, quem sabe, uma pretensão banal.
« Essa inquietação lhe provocou um sentimento quase insuportável de solitude e desolação. Ele não era de esquecer jamais a modéstia que devia ter diante dos gênios da China e de seu país, a quem respeitava. Mas, por outro lado, acontecia de se mostrar orgulhoso e até mesmo insolente em relação aos escritores insignificantes de seu tempo. Naquele momento, ¿poderia reconhecer facilmente que também ele, afinal de contas, era tão pouco competente quanto os outros ou que, como eles, não passava de um desprezível “porco de Ryôtô”*? Além disso, o seu poderoso “ego” fervilhava demais, de emoção, para se refugiar dentro da “iluminação” e da “resignação”.»
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Trecho do conto Devoção à Literatura Popular, do livro Rashômon e Outros Contos (Editora Hedra), de Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927).
[* “Porco de Ryôtô”: História narrada na China, onde um porco de cabeça branca, tido como raro, foi levado como oferenda ao Imperador; ao chegar lá, perceberam que muitos porcos ali também tinham a cabeça branca.]
P.S.: Hoje, 24 de Julho de 2010, é aniversário de 83 anos da morte de Akutagawa.