« Mas para continuar a história das minhas experiências profissionais, eu ganhei uma libra, dez shillings e seis pence pela minha primeira resenha, e comprei um gato persa com os ganhos. Então tornei-me ambiciosa. Um gato persa até serve – eu disse –, mas um gato persa não é suficiente. E tenho que ter um carro. E foi assim portanto que me tornei romancista – porque é muito estranho que as pessoas dêem a você um carro se você lhes contar uma história. É uma coisa ainda mais estranha que não haja nada tão prazeroso no mundo quanto contar histórias. É muito mais prazeroso que escrever resenhas de romances famosos. E ainda, se for obedecer sua secretária e contar a vocês minhas experiências profissionais como romancista, devo contar-lhes uma experiência muito estranha que me aconteceu. E para entendê-la vocês devem primeiro tentar imaginar o estado de espírito de um romancista. Eu espero não estar revelando segredos profissionais ao dizer que o maior desejo de um romancista é ser tão inconsciente quanto possível. Ele quer induzir a si mesmo a um estado de perpétua letargia. Ele quer que a vida continue com a máxima quietude e regularidade. Ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas dia após dia, mês após mês, enquanto ele está escrevendo, de forma que nada deve quebrar a ilusão em que ele está vivendo – de forma que nada deve perturbar ou inquietar as misteriosas bisbilhotices, impressões, tiros, golpes e descobertas súbitas daquele mesmo espírito tímido e ilusivo, a imaginação. Suspeito que esse estado seja o mesmo para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocês me imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocês figurem uma menina sentada com uma caneta na mão, que por minutos, e na verdade por horas, ela nunca molha no pote de tinta. A imagem que me vem à mente quando penso nessa menina é a de um pescador imerso em sonhos à beira de um lago profundo, segurando um caniço sobre a água. Ela estava deixando sua imaginação disparar desenfreada por entre todas as rochas e fendas do mundo que ficam submersas nas profundezas do nosso ser inconsciente. Agora veio a experiência, a experiência que acredito ser realmente mais comum com as mulheres escritoras que com homens. A linha correu pelos dedos da menina. Sua imaginação disparou. Buscou as lagoas, as profundezas, os lugares escuros onde cochila o maior peixe. E de repente, um estrondo. Uma explosão. Espuma e confusão. A imaginação havia se lançado contra algo duro. A garota foi despertada de seu sonho. Ela estava na verdade no estado de mais aguda e difícil aflição. Para falar se meias-palavras, ela tinha pensado em algo, algo sobre o corpo, sobre as paixões que para ela, como mulher, não seria apropriado dizer. Os homens, sua razão dizia, ficariam chocados. A consciência do que os homens diriam de uma mulher que falasse a verdade sobre suas paixões havia a despertado do estado de inconsciência da artista. Ela não podia mais escrever. O transe tinha acabado. Sua imaginação não podia mais funcionar. Eu acredito que isto seja uma experiência de fato comum com as mulheres escritoras – elas são impelidas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Porque apesar de os homens sensatamente se permitirem grande liberdade neste aspecto, eu duvido que eles percebam ou possam controlar a extrema severidade com que condenam tal liberdade nas mulheres.»
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Trecho de Profissões para mulheres, discurso proferido por Virginia Woolf na National Society for Women’s Service, em 21 de Janeiro de 1931, disponível neste livro.
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