« Para nós, que pretendemos discuti-la aqui, em si mesma, sem nos ocupar de suas origens históricas, a tese de Ruskin pode ser resumida de modo bastante exato por estas palavras de Descartes, quando diz que “a leitura de todos os bons livros é como uma conversação com as pessoas mais honestas dos séculos passados e que foram seus autores”. Provavelmente Ruskin não tenha conhecido esse pensamento, aliás um pouco seco, do filósofo francês, mas é ele, na realidade, que encontramos em toda a sua conferência, apenas envolvido num ouro apolíneo no qual se dissipam as brumas inglesas, e semelhante àquele cuja glória ilumina as paisagens de seu pintor preferido. “Supondo, diz ele, que tenhamos a vontade e a inteligência de escolher bem nossos amigos, quão poucos entre nós têm o poder para fazê-lo e quanto é limitada a esfera de nossa escolha. Não podemos conhecer quem queremos… Podemos, com muita sorte, entrever um grande poeta e escutar o som de sua voz, ou fazer uma pergunta a um homem de ciência que nos responderá amavelmente. Podemos usurpar dez minutos de entrevista no gabinete de um ministro, ter uma vez na vida o privilégio de deter o olhar de uma rainha. Contudo, esses acasos fugitivos, nós os cobiçamos, dispendemos nossos anos, nossas paixões e nossas faculdades perseguindo um pouco menos que isso, enquanto, durante esse tempo, há uma sociedade que nos é sempre aberta, pessoas que nos falariam o quanto quiséssemos, seja qual for a nossa posição. Esta sociedade, porque ela é tão numerosa e tão dócil e que podemos fazê-la esperar perto de nós durante um dia inteiro — reis e homens de Estado esperam pacientemente não para dar uma audiência, mas para consegui-la — não iremos jamais procurá-la nestas antecâmaras mobiliadas de modo simples que são as prateleiras de nossas bibliotecas, não escutamos jamais uma só palavra do que teriam a nos dizer.” “Vocês me dirão talvez, continua Ruskin, que se vocês preferem conversar com os vivos é porque vocês vêem os seus rostos, etc.”, e refutando esta primeira objeção, depois uma segunda, mostra que a leitura é exatamente uma conversação com homens muito mais sábios e mais interessantes que aqueles que podemos ter a chance de conhecer à nossa volta. Procurei mostrar nas notas que se seguem a este volume que a leitura não poderia ser assimilada a uma conversação, mesmo com o mais sábio dos homens; que a diferença essencial entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menor sabedoria, mas a maneira pela qual a gente se comunica com eles, a leitura, ao contrário da conversação, consistindo para cada um de nós em receber a comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo sozinho, isto é, continuando a desfrutar do poder intelectual que se tem na solidão e que a conversação dissipa imediatamente, continuando a poder ser inspirado, a permanecer em pleno trabalho fecundo do espírito sobre si mesmo.»
(…)
« E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se “Conclusões” e para o leitor “Incitações”. Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos. Estes desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram. Aliás, se lhes fizermos perguntas, às quais não podem responder, também pedimos-lhes repostas que não nos instruirão em nada. Porque é um efeito do amor que os poetas consigam fazer com que demos uma importância literal a coisas que não são para eles mais do que significativas de emoções pessoais. Em cada quadro que nos mostram, parecem dar-nos apenas uma ligeira impressão de uma paisagem maravilhosa, diferente do resto do mundo e no coração da qual gostaríamos que eles nos fizessem penetrar.»
(…)
« Este é o preço da leitura e esta é a sua insuficiência. É dar um papel muito grande ao que não é mais que uma iniciação para uma disciplina. A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui.
« Há, contudo, certos casos patológicos, por assim dizer, de depressão espiritual para os quais a leitura pode tornar-se uma espécie de disciplina curativa e se encarregar, por incitações repetidas, de reintroduzir perpetuamente um espírito preguiçoso na vida do espírito. Os livros desempenham então um papel análogo ao dos psicoterapeutas para certos neurastênicos.
« Sabe-se que, em certas afecções do sistema nervoso, o doente, sem que tenha nenhum de seus órgãos atingidos, é mergulhado numa espécie de impossibilidade de querer, como numa rotina profunda da qual não pode escapar sozinho e na qual acabará por perecer se uma mão poderosa e segura não lhe for estendida. Seu cérebro, suas pernas, seus pulmões, seu estômago continuam intactos. Não têm nenhuma incapacidade real de trabalhar, de andar, de expor-se ao frio, de comer. Mas estes diferentes atos, que ele seria absolutamente capaz de realizar, ele é incapaz de querer realizá-los. E uma degradação orgânica, que terminaria por tornar-se equivalente a uma doença que ele não tem, seria a conseqüência irremediável da inércia de sua vontade, se o estímulo que ele não pode encontrar em si mesmo não lhe viesse de fora, de um médico que queira por ele, até o dia em que sejam pouco a pouco reeducadas suas diversas vontades orgânicas. Ora, existem certos espíritos que poderiam ser comparados a esses doentes e que uma espécie de preguiça ou de frivolidade impedem de descer espontaneamente às regiões mais profundas de si mesmos onde começa a verdadeira vida do espírito. Não basta que sejam conduzidos uma vez para que sejam capazes de descobrir e de explorar as verdadeiras riquezas, que lá subjazem, mas, sem essa intervenção estrangeira, eles vivem na superfície num perpétuo esquecimento de si mesmos, numa espécie de passividade que os torna o brinquedo de todos os prazeres, os diminui até o tamanho dos que os cercam e os agitam, e, semelhantes a este cavalheiro que, convivendo desde a sua infância com salteadores de estrada, não se lembrava mais de seu nome, por ter há muito cessado de utilizá-lo, eles terminariam por abolir em si próprios todo sentimento e toda lembrança de sua nobreza espiritual, se um estímulo exterior não viesse, de alguma forma, reintroduzir força na vida do espírito, no qual subitamente reencontram o poder de pensar por si mesmos e de criar. Ora, este estímulo que o espírito preguiçoso não pode encontrar em si próprio e que deve vir de outrem, é claro que deve recebê-lo no seio da solidão fora da qual, como vimos, não se pode produzir esta atividade criativa que é preciso ressuscitar. Da pura solidão o espírito preguiçoso não pode tirar nada, pois é incapaz de, sozinho, pôr em movimento sua atividade criativa. Mas a mais elevada conversação, os conselhos mais profundos também de nada serviriam, já que essa atividade original, eles não a podem produzir diretamente. O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro, se produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo de um outro espírito, mas recebido no seio da solidão. Ora, vimos que essa era precisamente a definição de leitura e que não era conveniente senão à leitura. A única disciplina que pode exercer uma influência favorável sobre estes espíritos é, portanto, a leitura: como queríamos demonstrar, à maneira do que dizem os geômetras. Mas ainda aqui a leitura não age senão sob a forma de um estímulo que não pode de modo algum substituir-se à nossa atividade pessoal; ela se contenta em nos devolver o seu uso como nas afecções nervosas às quais aludimos há pouco, o psicoterapeuta não faz mais que restituir ao doente a vontade de se servir de seu estômago, de suas pernas, de seu cérebro, que permaneceram intactos. Aliás, seja porque todos os espíritos participam mais ou menos dessa preguiça, dessa estagnação nos níveis mais baixos, seja porque, sem que lhe seja necessária, a exaltação que acompanha certas leituras tem uma influência propícia sobre o trabalho pessoal, cita-se mais de um escritor que amava ler uma bela página antes de se pôr a trabalhar. Emerson raramente começava a escrever sem reler algumas páginas de Platão. E Dante não é o único poeta que Virgílio conduziu às portas do Paraíso.
« Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigosa, ao contrário, quando, em lugar de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela, quando a verdade não aparece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço do nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros como um mel todo preparado pelos outros e que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras das bibliotecas e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito.»
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Sobre a Leitura, de Marcel Proust (trad. de Carlos Vogt).