Quando Hilda Hilst faleceu, em 4 de Fevereiro de 2004, devia cerca de 800 mil reais de IPTU. Dois anos antes, a dívida era de 500 mil reais. Quando morei com ela, a dívida já era altíssima, salvo engano, aí pelos 300 mil reais. Mas, pouco antes de conhecê-la, quando a dívida já a assustava — ela caíra na armadilha de transformar uma área rural em loteamento, o que alterou o imposto de rural para urbano —, a Câmara de Vereadores de Campinas (SP) quis homenageá-la e, após votação, decidiu entregar-lhe a Chave da Cidade. Hilda foi então convidada para ir até a Câmara, mas deu de ombros: “Homenagem? Não quero homenagem, quero que revejam esse valor absurdo do meu IPTU”. Ela ganhava apenas 2000 reais por mês…
Os vereadores a esperaram em vão. No entanto, como a coisa já estava feita, decidiram enviar um representante à Casa do Sol, residência da autora, onde ele, um vereador (se não me falha a memória, o presidente da câmara), chegou todo sorridente com aquela Chave enorme nas mãos. O porteiro do condomínio anunciou a visita do sujeito, deixando Hilda irritada.
“Que petulância!”
Ela então, como costumava fazer em momentos assim, preparou sua performance: foi até o quarto e se “disfarçou” de velhinha. Sim, à época Hilda já tinha quase 70 anos de idade, mas seu espírito jamais faria alguém confundi-la com uma “velhinha”. Por isso, pegou duma bengala, jogou um xale sobre os ombros, encurvou-se e saiu caminhando como velhinha caquética até a entrada da casa, onde o vereador a esperava.
“Dona Hilda!”, começou ele, efusivo. “Vim lhe entregar a Chave da…”
“E o meu IPTU?”, cortou ela, seca.
Ele, pego de surpresa, gaguejou: “Mas, dona Hilda, nós… eu não tenho poder para isso… Vim apenas porque a Câmara resolveu lhe prestar uma homena…”
“O senhor por acaso já leu meus livros?”
Agora sim ele ficou branco. Engoliu em seco: “Não, senhora, nunca li nenhum dos seus livros”.
“Então, ponha-se daqui para fora. Meus leitores já me homenageiam quando lêem meus livros.”
O vereador ofendeu-se:
“Vim até aqui de boa vontade lhe prestar uma homenagem, lhe fazer um favor, e a senhora…”
“Favor o senhor faria se me chupasse a cona”, berrou ela, brandindo a bengala.
O vereador ficou roxo, não sabia onde enfiar a cara.
“Por favor, retire-se da minha casa”, tornou ela, com dignidade. “Vocês querem que eu pague uma fortuna para morar na minha própria casa e ainda acham que vão me comprar com uma chave idiota que não abre porta alguma? Pois diga a seus pares que os mandei enfiar, um de cada vez, a chave em seus respectivos cus. O senhor faça o mesmo.”
E então, desfazendo a corcunda, deu as costas ao homem e, pisando firme, imponente, caminhou para dentro de casa.
Até hoje ninguém sabe em qual excelentíssimo fiofó foi parar a chave.
1 Pingback