A Fada não deu resposta alguma a isto, e a pressão constante do braço dela obrigou Mark, a não ser que estivesse preparado para lutar, a seguir com ela pelo corredor. A intimidade e autoridade do aperto era jocosamente ambíguo e ter-se-ia adaptado quase igualmente bem às relações entre polícia e preso, amante e amante, ama e criança. Mark sentiu que, se encontrassem alguém, pareceria um tolo.
Ela o levou para o seu próprio gabinete que era no segundo andar. A sala exterior estava cheia daquilo que ele já tinha aprendido a chamar Waips, moças da Polícia Institucional Auxiliar Feminina. Os homens desse serviço, embora muito mais numerosos, não se encontravam tantas vezes dentro de casa, mas sempre se viam Waips voando para cá e para lá, sempre que aparecia Miss Hardcastle. Longe de partilhar as características masculinas da sua chefe, eram (como dissera Feverstone uma vez) «femininas ao ponto de imbecilidade», pequenas e delgadas e penugentas e cheias de risos abafados.
Miss Hardcastle comportava-se com elas como se fosse um homem e se dirigia a elas em tons de galanteria meio jovial, meio feroz.
— Cocktails, Dolly — apregoou ela quando entraram na sala exterior. Quando chegaram ao gabinete interior, fez Mark sentar-se, mas ficou ela própria de pé, com as costas para o fogo e as pernas bem separadas. As bebidas foram trazidas e Dolly retirou-se, fechando a porta atrás dela. Mark tinha contado os seus agravos, resmungando, no caminho.
— Deixe disso, Studdock — disse Miss Hardcastle. — E faça o que fizer, não vá maçar o DA [Diretor-adjunto]. Já lhe disse que não precisa de se preocupar com toda essa gente pequena do terceiro andar, contanto que o tenha a ele do seu lado. Que presentemente tem. Mas não terá se continuar a ir até ele com queixas.— Isso seria muito bom conselho, Miss Hardcastle — disse Mark —, se eu já tivesse o compromisso de aqui ficar. Mas não tenho. E por aquilo que já vi não gosto do local. Já quase decidi a ir para casa. Pensei apenas que era bom ter uma conversa com ele primeiro, para pôr tudo claro.
— Pôr as coisas a claro é a única que o DA não pode suportar — replicou Miss Hardcastle. — Não é assim que ele dirige este lugar. E lembre-se, ele sabe o que faz. Funciona, meu filho. Ainda não faz idéia alguma como funciona bem. Quanto a largar isto… você não é supersticioso, pois não? Eu sou, não penso que dê sorte deixar o NICE [Instituto Nacional de Experiências Coordenadas, uma organização de natureza totalitária]. Não precisa maçar a cabeça por causa de todos os Steeles e Cossers. Isso faz parte da sua aprendizagem. Neste momento fazem-no atravessar isso, mas, se agüentar, acaba por ficar por cima deles. Tudo o que tem de fazer é ficar quieto. Nenhum deles vai ficar aqui quando começarmos a andar.
— Foi essa a linha seguida por Cosser e Steele, justamente — disse Mark — , e não me pareceu que me sirva de muito quando chegar a hora.
— Sabe, Studdock — disse Miss Hardcastle —, tenho um fraco por si. E ainda bem que tenho. Porque se não tivesse, sentir-me-ia disposta a ficar ofendida com essa última observação.
— Eu não queria ser ofensivo — disse Mark. — Mas, que diabo, olhe a coisa do meu ponto de vista.
— Não serve, meu filho — disse Miss Hardcastle, sacudindo a cabeça. — Você conhece os fatos apenas o suficiente para que o seu ponto de vista valha seis pence. Ainda não compreendeu aquilo em que se meteu. Está sendo-lhe oferecida a oportunidade de chegar a algo muito maior do que um lugar no Governo. E só há duas alternativas, sabe. Ou se está dentro do NICE ou se está fora dele. E eu sei melhor do que você o que vai ser mais interessante.
— Eu compreendo isso — disse Mark. — Mas qualquer coisa é melhor do que estar nominalmente dentro e não ter nada que fazer. Dê-me um lugar real no Departamento de Sociologia e eu…
— Bolas! O departamento inteiro vai para a sucata. Tem de lá estar, no princípio, para efeitos de propaganda. Mas todos vão ser postos fora.
— Mas que garantia tenho eu de vir a ser um dos sucessores deles?
— Não vai ser. Eles não vão ter sucessores nenhuns. O trabalho real nada tem a ver com todos esses departamentos. O tipo de sociologia em que nós estamos interessados será feito pela minha gente, a polícia.
— Então onde é que eu entro?
— Se confiar em mim — disse a Fada, pousando o copo vazio e puxando um charuto — posso pô-lo em contato com um pedaço do seu trabalho real, aquilo para o que foi realmente trazido para cá, e já.
— Que é isso?
— Alcasan — disse Miss Hardcastle entre dentes. Tinha começado uma das suas intermináveis fumadelas fingidas. Depois, olhando de relance para Mark com um traço de desprezo. — Sabe de quem estou falando, não sabe?
— Quer dizer o radiologista, o homem que foi guilhotinado? — perguntou Mark que estava completamente desnorteado. A Fada acenou afirmativamente.
— Ele é para ser reabilitado — disse ela. — Gradualmente. Tenho todos os fatos no processo. Você começa com um pequeno artigo sossegado, sem pôr em causa a sua culpa, não logo de entrada, mas apenas insinuando que, é claro, ele era um membro do governo Quisling deles e havia um preconceito contra ele. Digamos que não se duvida que o veredito foi justo, mas que é inquietante compreender que ele teria quase com certeza sido o mesmo, ainda que ele estivesse inocente. Então, um dia ou dois depois, segue com um artigo de natureza completamente diferente. Estimativa popular do valor da sua obra. Pode obter os fatos, suficientes para esse tipo de artigo, numa tarde. Depois uma carta, bastante indignada, ao jornal que publicou o primeiro artigo, e indo muito mais longe. A execução foi um erro judiciário. Por essa altura…
— Mas que raio é a finalidade disso tudo?
— Estou lhe dizendo, Studdock. Alcasan é para ser reabilitado. Transformado num mártir. Uma perda irreparável para a raça humana.
— Mas para quê?
— Aí vai você outra vez! Resmunga por não lhe darem nada para fazer, e logo que eu sugiro um pedaço de trabalho autêntico, espera que lhe contem todo o plano de campanha antes de o fazer. Não faz sentido. Não é esse o caminho para se progredir aqui. A grande coisa é fazer o que nos dizem para fazer. Se realmente for mesmo bom, em breve compreenderá o que se passa. Mas tem de começar a fazer o trabalho. Você não parece perceber o que nós somos. Somos um exército.
— De qualquer maneira — disse Mark —, não sou um jornalista. Não vim para cá para escrever artigos de jornal. Tentei tornar isso claro para Feverstone logo de início.
— Quanto mais cedo deixar toda essa conversa sobre o que veio para cá fazer, tanto melhor fará carreira. Estou falando para o seu próprio bem, Studdock. Você é capaz de escrever. Essa é uma das coisas por que o querem aqui.
— Então vim para cá por causa de um mal-entendido — disse Mark. O elogio à sua vaidade literária, naquela altura da sua carreira, de forma alguma compensava a implicação de que a sua sociologia não tinha qualquer importância. — Não tenho intenção alguma de gastar a minha vida escrevendo artigos de jornal — disse ele. — E se tivesse, havia de querer saber um bom bocado mais sobre a política do NICE antes de me meter nisso.
— Não lhe disseram que é estritamente apolítico?
— Disseram-me tantas coisas que eu não sei se estou assentado na cabeça ou nos pés — disse Mark. — Mas não vejo como é que se vai começar uma manobra jornalística (que é mais ou menos aquilo em que a coisa consiste) sem ser de natureza política. São jornais da esquerda ou da direita que vão publicar toda essa porcaria a respeito de Alcasan?
— Ambos, doçura, ambos — disse Miss Hardcastle. — Será que não compreende nada? Pois não é absolutamente essencial manter uma esquerda feroz e uma feroz direita, ambas prontas a arrancar, e com terror uma da outra? É assim que fazemos as coisas. Qualquer oposição ao NICE é representada com uma falcatrua da esquerda nos jornais da direita e uma falcatrua da direita nos jornais da esquerda. Se for convenientemente feito, temos cada um dos lados oferecendo mais do que o outro em nosso apoio, para reputar as calúnias do inimigo. É claro que somos apolíticos. O poder autêntico sempre é.
— Não acredito que se possa fazer isso — disse Mark. — Não com os jornais que são lidos pelas pessoas instruídas.
— Isso mostra que ainda está no jardim de infância, queridinho — disse Miss Hardcastle. — Ainda não percebeu que é exatamente ao contrário.
— Que é que quer dizer?
— Ouça lá, meu tolo, é o leitor instruído que pode ser enganado. Todas as nossas dificuldades vêm dos outros. Quando é que encontrou um trabalhador que acredite nos jornais? Ele tem por garantido que todos eles são propaganda e passa por cima dos artigos de opinião. Ele compra o seu jornal pelos resultados do futebol e pelos pequenos parágrafos sobre moças que caem das janelas e cadáveres encontrados em apartamentos de Mayfair. Ele é nosso problema. Temos de o recondicionar. Mas o público instruído, as pessoas que lêem os semanários intelectuais, não precisam de recondicionamento. Já estão muito bem. Acreditarão em qualquer coisa.
— Como um dos da classe que menciona — disse Mark com um sorriso —, eu apenas não acredito nisso.
— Santo Deus! — disse a fada. — Onde estão os seus olhos? Olhe para aquilo com que os semanários têm conseguido sair-se bem! Olhe para o Weekly Question. Aí está um jornal para si. Quando apareceu o inglês básico, simplesmente como invenção de um professor de Cambridge, livre pensador, nada era muito bom para lhe chamarem; logo que foi adotado por um primeiro-ministro conservador tornou-se uma ameaça à pureza da nossa língua. E não foi a monarquia um absurdo dispendioso durante dez anos? E depois, quando o duque de Windsor abdicou, não se tornou o Question todo monárquico e legitimista durante cerca de uma quinzena? Perderam um único leitor? Não está vendo que o leitor instruído não pode parar de ler os semanários intelectuais, façam eles o que fizerem? Não pode. Foi condicionado.
— Bem — disse Mark —, tudo isso é muito interessante, Miss Hardcastle, mas nada tem a ver comigo. Em primeiro lugar, não quero de forma alguma tornar-me num jornalista, e se o fizesse, gostaria de ser um jornalista honesto.
— Muito bem — disse Miss Hardcastle. — Tudo o que vai fazer é ajudar a arruinar este país e talvez toda a raça humana. Além de destroçar a sua própria carreira.
O tom confidencial no qual ela tinha estado falando até então, desaparecera e havia um ar de ameaçadora finalidade na sua voz. O cidadão e o homem honesto que tinham despertado em Mark com a conversa desanimaram um pouco; o seu outro e bem mais forte «eu», o «eu» que estava ansioso, a todo o custo, por não ser colocado do lado de fora, saltou, totalmente alarmado.
— Eu não quero dizer — disse ele — que não esteja vendo as suas razões. Estava apenas a imaginar…
— Para mim é tudo igual, Studdock — disse Miss Hardcastle, sentando-se finalmente à sua escrivaninha. — Se você não gosta do emprego, isso, é claro, é assunto seu. Vá e arrume o caso com o DA. Ele não gosta que as pessoas se demitam, mas é claro que você pode. Ele vai ter de dizer qualquer coisa a Feverstone por o ter trazido para cá. Nós admitimos que você compreendia.
A menção de Feverstone colocou bruscamente diante de Mark, como realidade, o plano, que até então tinha sido levemente irreal, de regressar a Edgestow e de se contentar com a carreira de um professor de Bracton. Em que termos iria ele regressar? Continuaria a ser membro do círculo interior, mesmo em Bracton? Encontrar-se sem a confiança do Elemento Progressista, ser atirado para o meio dos Telfords e dos Jewels, parecia-lhe insuportável. E o salário de um simples professor parecia coisa pequena depois dos sonhos que vinha sonhando durante os últimos dias. A vida de casado já se estava a tornar mais dispendiosa do que ele tinha pensado. Então apareceu-lhe a dúvida aguda a respeito das duzentas libras para ser sócio do clube do NICE. Mas não, isso era absurdo. Eles não podiam com certeza importuná-lo com isso.
— Bem, evidentemente — disse numa voz vaga —, a primeira coisa é ir ter com o DA.
— Agora que se vai embora — disse a Fada —, há uma coisa que tenho de dizer: pus as cartas todas na mesa. Se alguma vez lhe passar pela cabeça que seria engraçado repetir qualquer coisa desta conversa no mundo exterior, siga o meu conselho e não o faça. Não seria de forma alguma saudável para a sua carreira futura.
— Oh, mas é claro — começou Mark.
— É melhor pôr-se andando agora — disse Miss Hardcastle. — Tenha uma agradável conversa com o DA. Tenha cuidado em não aborrecer o velho. Ele detesta tanto demissões.
Mark fez uma tentativa para prolongar a entrevista mas a Fada não o permitiu e em alguns segundos estava fora da porta.
Extraído do livro Aquela Força Medonha (vol.1), de C. S. Lewis.