Furibundo, o pai decidira: se necessário, iria quebrar a cara daquele professor! Onde já se viu? Isso lá era tarefa que se desse a crianças de dez anos de idade? Não, não deixaria barato. Estava tão indignado, tão furioso, que nem avisara a esposa de que iria à escola. Por que o faria? Ela ainda não sabia de nada. E ele nada lhe dissera, não simplesmente para poupá-la, mas também para evitar que ela o impedisse de levar as coisas às últimas conseqüências.

— No mínimo, no mínimo, esse professor merece um murro na cara! — grunhia.

Colocou a odiada máscara pandêmica e entrou na escola pisando duro, a agenda do filho enrolada na mão direita feito um porrete. O porteiro o interpelou:

— Aonde o senhor vai?

— Tenho uma reunião marcada com o senhor Ferreira.

Impressionado com as feições carregadas daquele pai, o porteiro interfonou imediatamente para a secretária do diretor.

— Sim, sim. Tá certo — murmurou. E para o pai: — O senhor pode entrar. Basta subir aquela escada à direita e…

— Obrigado, eu sei onde é — atalhou secamente o homem, partindo na mesma velocidade com que entrara

Na escada, já se imaginava esculhambando o professor. Dar-lhe um murro, claro, era apenas um sonho vão. Na verdade, ficaria bastante satisfeito com sua demissão e, claro, com sua condenação na Justiça.

O diretor, todo sorridente, já o aguardava à porta da sala. Tinha um ar tranqüilo. A secretária, essa, sim, parecia tensa.

— Boa tarde, doutor Araújo. Como vão as coisas?

— Péssimas — tornou o revoltado pai. — Precisamos esclarecer umas coisas.

— Entre, por favor, entre.

Sentaram-se. Doutor Araújo notou como o diretor, atrás de uma mesa gigante, ficava pequenininho em sua enorme cadeira de escritório. Pequenininho e redondo. A máscara, grande demais, meio caída sob as narinas, tornava-o ainda mais infantil.

— Do que se trata?

— Seu Ferreira, quero que o senhor chame esse tal de professor Luís para me explicar isto aqui — e, desenrolando a agenda escolar que tinha em mãos, mostrou-lhe a página com a absurda tarefa de casa.

O diretor, mudo, leu e releu a página umas três vezes. Não estava chocado, mas já não estava mais tão tranqüilo. Tinha mesmo era um ar de “ai ai, mais um imbróglio para resolver”.

— Bom, doutor… — finalmente disse, entrelaçando os dedos. — De fato, não é uma atividade das mais ortodoxas. Entendo sua preocupação.

— Das mais “ortodoxas”?! “Preocupação”? — enfureceu-se ainda mais. — Seu Ferreira, eu peguei meu filho, no flagra, fazendo troca-troca com outros cinco colegas dele! Cinco! Todos alunos desta escola. E, quando gritei com eles, disseram-me que era uma tarefa. E veja aí: é verdade!

— Troca-troca? Como assim “troca-troca”? — gaguejou o outro.

— Ué, vai me dizer que o senhor não sabe do que se trata? Eles estavam fazendo uma suruba, porra! Comendo os rabos uns dos outros!

— Suruba?! — empalideceu o diretor.

— Sim, exatamente. Garotos de dez anos fazendo suruba a mando de um professor descarado, de um pervertido. Até aquele menininho novato de Taiwan, que mal fala o português, estava lá! Enfim, quero que o senhor chame esse professor aqui… agora!

Sentindo que, caso não convocasse o professor, acabaria tendo de chamar seguranças, ou a cavalaria, serviços que não possuía, seu Ferreira engoliu em seco e, bufando, digitou um número no interfone.

— Dona Dalva, por favor, encontre o professor Luís e diga-lhe que venha urgentemente à minha sala — e ficou a ouvir a réplica. — Não — acrescentou, baixando a voz —, não importa que esteja em aula. Diga-lhe para vir. Qualquer coisa, fique a senhora mesma cuidando da turma dele — e desligou.

Notando mais acuradamente a atmosfera de adrenalina, testosterona e sede de justiça que cercava aquele médico de meia-idade, o diretor decidiu botar água na fervura: não pretendia testemunhar um docentecídio.

— O senhor precisa convir que vivemos novos tempos, doutor — e esboçou um sorriso amarelo. — Aliás, é por isso que contratamos o professor Luís, que é um…

— “Novos tempos”? — rangeu o pai, entredentes. — O senhor deveria saber, seu Ferreira, que, em toda fase decadente de uma civilização, os agentes dessa decadência se acham uns apologistas de grandes novidades. Sempre as mesmas! — e sacudiu a cabeça, sorrindo amargamente. — Novos tempos! Não há nada mais velho e recorrente do que os tais “novos tempos”.

Aquilo foi dito de maneira tão contundente e peremptória que o diretor preferiu calar-se e aguardar em silêncio. Começou a tamborilar a mesa, olhando de esguelha para o relógio de pulso. Embora o professor Luís não tenha levado mais de três minutos para assomar à porta, esses três minutos pareceram ao diretor uma eternidade.

— Bom dia — disse o professor Luís, a mão ainda na maçaneta. — Do que se trata?

— Bem, para começar… — tomou a palavra o diretor.

— Começar? — interrompeu-o o Dr. Araújo. — Mas cadê o professor Luís?

— Ué. Sou eu mesmo.

Dr. Araújo observou a figura de cima a baixo: uma mulher atarracada, uns seis meses de gravidez na barriga, os cabelos curtos pintados de azul, óculos redondos, uma atitude impertinente — talvez devido à máscara que só lhe cobria o queixo — e, o que lhe apareceu ainda mais esquisito, um buço aparentemente tingido de escuro à guisa de bigode.

— Mas… você é uma mulher! — exclamou, vendo seus sonhos de esmurrar um pervertido irem por água abaixo.

A figura crispou as mãos e se abespinhou de imediato:

— Ora, o senhor me respeite! Não sou uma mulher! — replicou, batendo um pezinho no chão e engrossando comicamente a voz, o que quase desconcentrou o pobre médico, já que essa voz lembrou-lhe claramente o tom com que sua mãe, ao narrar um conto de fadas, interpretava as falas do Lobo Mau.

Desconcertado, o Dr. Araújo virou-se para o diretor:

— Tudo bem, tudo bem — quase gaguejou. — Se ela causou o problema, é com ela mesmo que…

— “Ela”, não! — berrou o professor Luís, colocando a máscara na posição correta. — Eu sou um homem trans! Não seja transfóbico comigo!

Dr. Araújo arregalou os olhos:

— Transfó… — e deu um pequeno murro na própria coxa. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece com essas besteiras políticas para cima de mim. Vim aqui discutir algo muito sério. Não vim para defender que a grama, em vez de cor-de-rosa, é verde. Eu sou médico obstetra, caramba! Onde já se viu? Um homem grávido?

— Isso mesmo! Sou homem e estou grávido. Só o mais rasteiro preconceito é incapaz de admitir isso.

— Preconceito? Quem não admite isso é a natureza. O bebê está onde? Na próstata? No saco escrotal? Vai sair pela uretra?

O professor Luís deu um passo ameaçador na direção do médico, fato esse que alarmou o diretor:

— Por favor, doutor — interveio seu Ferreira, limpando o suor da testa. — Tente ser mais cordial. Estamos aqui para ouvir suas queixas.

— OK. Se ela não vier com essas…

— “Ela”, não! Meus pronomes são “ele” e “dele”. Já disse: eu me identifico como homem. Então, fale comigo sem ser preconceituoso.

O doutor, em sua irritação, quase se levantou da cadeira. Odiava ter de trair sua apreensão direta do mundo. Mas, após remexer-se por um segundo, teve um insight e voltou a acomodar-se. Decidiu aderir estrategicamente ao jogo:

— Está certo! Entendi — soltou, num tom de quem dava o braço a torcer. — Então, por favor, exijo reciprocidade: meus pronomes são “vós” e “vossos”. Eu me identifico com um conde do século XVIII. Tratem-me de acordo.

— Dr. Araújo, o senhor não pode…

— “Vós não podeis”.

— Hum?

— “Vós não podeis”. Use comigo a segunda pessoa do plural.

O diretor relanceou um olhar confuso para o professor Luís, que permanecia de pé, numa atitude severa de galinha choca. Estava certo aquilo? Uma pessoa também podia identificar-se como um conde do século XVIII? Como seus olhos não encontraram qualquer reação ou resposta cúmplice da parte daquele indignado “homem trans”, retomou a palavra.

— Doutor Araújo, vós… bem, vós não podeis se dirigir a uma pessoa trans…

— “Conde Araújo, vós não podeis dirigir-VOS…”

O diretor calou-se e cerrou os olhos, petrificado como uma estátua. O doutor quase podia ouvi-lo contando internamente até dez. Por alguma razão, pensou, a exasperação do diretor era uma espécie de socialização da sua própria indignação. Até sentiu que seu fardo estava mais leve, uma vez que mais alguém ajudava a carregá-lo. Talvez o próprio diretor percebesse o ridículo daquela situação, mas, para manter o emprego, via-se obrigado a seguir o faz-de-conta.

— Bem, vamos prosseguir com o que realmente interessa — disse finalmente seu Ferreira, abrindo os olhos. E respirou fundo: — O caso, professor Luís, é que o dou… quero dizer, o Conde Araújo tem uma reclamação justa e pode prová-la: veja a tarefa anotada pelo filho vosso… quer dizer, vosso filho dele. É verdade que você mandou os meninos fazerem uma… — e pigarreou: — uma suruba?

O professor Luís, de braços cruzados sobre o barrigão, o queixo erguido, mantinha uma atitude desafiadora:

— Suruba? — e deu uma risadinha desdenhosa. — Imagino que pessoas caretas e recalcadas até poderiam interpretar assim, mas a tarefa que dei pra eles foi a de conhecer os corpos uns dos outros. Como vão saber se preferem namorar meninos ou meninas? Precisam se conhecer. Por isso nunca disse que isso devia ser feito apenas entre meninos.

O médico mal podia acreditar no que ouvia:

— Conhecer os corpos! Meu Deus… — e suspirou. — Então, para conhecer alguma coisa eles precisam usar o tato, a pele, esfregando-se uns nos outros, tocando-se, pegando nos órgãos genitais alheios e o pior: metendo os pauzinhos nos cus uns dos outros? Namorar uma pinóia! Isso é troca-troca! E não havia menina nenhuma! Se houvesse, tanto pior! Eles são crianças! Crianças! Entendeu? Mas, enfim, o fato é que era uma surubinha gay!

O professor Luís, mal contendo uma veleidade de sorriso, passou tranqüilamente uma mão pela cabeça colorida:

— Admito que mandei eles se desnudarem, se tocarem, se esfregarem, para melhor se conhecerem. Mas não mandei ninguém comer ninguém.

— Ah, isso é muito bonito: “Mandei esparramarem a gasolina pelo chão e acender o fósforo, mas não mandei ninguém incendiar a casa”. Você é retardada por acaso?

— “Retardada”, não! Mais respeito com os defi…

— Ah, me desculpe, errei o gênero: você é retardado?

Mais tarde o Dr. Araújo, ao narrar a cena para a esposa, compararia o que se seguiu a uma dessas cenas em câmera lenta de filme de ação: numa fração de segundo, o professor Luís, com a mão direita erguida, o olhar alucinado, voou em sua direção com o claro intuito de estapeá-lo, porém, o diretor, com a agilidade de um macaco-prego, sim, um macaco gordinho, galgara simultaneamente a mesa, atirando-se sobre o professor antes que o tabefe fosse desferido. Ambos caíram ao chão, atrelados um ao outro, o que muito preocupou o médico obstetra, que avançou para tentar proteger com as mãos o inocente nascituro. O professor, sem sucesso, tentava livrar-se do abraço pacificador do diretor e parecia acreditar que o doutor tencionava agredi-lo. A essa altura, ninguém mais usava máscaras.

— Que loucura! Vocês vão matar a criança! — berrou o doutor, os olhos esbugalhados.

Alarmado com essa observação, o diretor engatinhou a um lado, ao passo que o professor caía das nuvens, preocupadíssimo, aceitando as mãos do médico sobre sua barriga:

— Nossa, doutor! Será que aconteceu alguma coisa com mi filhe? — balbuciou num tom surpreendentemente feminino.

— “Mi filhe”? — E num esgar: — Que diabo de língua é essa? Esgueiranto?

O diretor não agüentava mais:

— Pelo amor de Deus, não recomecem! Chega de provocações! Pode ser?

Sem responderem nem que sim, nem que não, médico e paciente obedeceram tacitamente ao já irado diretor. O doutor Araújo, com um ar compenetrado, profissional, apalpou o ventre do professor por todos os lados. Por fim, aliviado e satisfeito, ergueu-se e declarou:

— Não se preocupe. Está tudo bem.

— Obrigado, doutor.

— Está vendo? — acrescentou o médico, solícito, numa sinceridade inocente e transbordante. — Homem ou mulher, pouco importa: você já é uma boa mãe.

Para quê… O professor Luís voltou a enfurecer-se:

— “Mãe”, não! Pai! Pai! Eu sou é o pai!

— E a mãe é quem? — retrucou o médico, cruzando os braços. — Um dos irmãos… digo, uma das “irmãs” Wachowski? O mundo virou mesmo uma Matrix, uma simulação insuportável…

O professor rosnou, fora de si, fazendo menção de levantar-se. No entanto, antes que a coisa voltasse a azedar, o diretor se interpôs:

— Por favor, doutor… conde… ou o caralho a quatro: retirai-vos. Sim? Dou por encerrada esta reunião. Conversaremos novamente noutra oportunidade.

Enquanto seu Ferreira ajudava o professor Luís a se levantar, o doutor pegou a agenda do filho e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, virou-se ainda uma vez:

— Obrigado por sua atenção, seu Ferreira, mas não voltaremos a nos falar. Aguarde a visita do meu advogado. Ficarei muitíssimo satisfeito quando esse escândalo estourar e vocês dois estiverem na cadeia — e sorriu cinicamente: — Aliás, professor Luísa, estou curioso para saber se você vai gostar da prisão masculina. Muitos homens vão querer dividir a cela com você…

E, tendo dito isso, saiu, sem deixar de reparar nos olhos arregalados da secretária, que, ao vê-lo, fingiu-se de muito ocupada.

Quando chegou em casa, o doutor, aliviado e seguro de si, finalmente contou tudo à esposa, que, até então, nem sequer havia se inteirado do famigerado troca-troca. Escandalizada, persignando-se, instou o marido a abrir um processo contra a escola o mais rápido possível. Naquele mesmo dia, ele entrou em contato com seu advogado, que lhe garantiu: a indenização estaria na casa dos seis dígitos, talvez até dos sete. De fato, o advogado foi ligeiro e, na semana seguinte, o processo estava aberto.

— A Justiça não o deixará na mão, doutor Araújo — disse-lhe ao telefone.

No mesmo dia, um camburão da polícia foi à casa do médico — para prendê-lo, claro, afinal, ele havia cometido o horroroso crime de transfobia. Sim, o professor Luís, muito escolado nessas questões de “perseguição fascista”, havia gravado, em seu celular, todo o diálogo ocorrido, tendo entregado à polícia uma versão editada na qual só se ouvia, como mais tarde noticiou a imprensa, “o discurso de ódio do maligno médico obstetra”. De fato, a professora… perdão, o professor não era nada bobo.

Sentado na traseira do camburão, o médico, que de tanta cólera finalmente atingira um estado de serena passividade, não conseguia esquecer o diálogo que tivera com o filho, na ocasião do flagra, logo após a partida dos coleguinhas:

— Meu filho, você não tem vergonha?! Isso lá é coisa que se faça?

— Calma, pai! — dizia o garoto, sorrindo.

— Que calma o quê! E tira esse sorriso bobo da cara!

— Bobo, não! Eu sou é muito esperto!

— Ah, é! Muuuito esperto! Deixar os outros come… — e pigarreou: — Deixar cinco moleques pegarem na sua bunda agora é esperteza?

— Não, pai: eu sou muito esperto mesmo. Na verdade, eu comi todo mundo e só dei uma vez! E dei justamente pro Liu Xiang, que tem um pau desse tamaninho!

No camburão, o médico imaginava que, se tivesse uma personalidade diferente, se fosse, como se diz, mais “zoeiro”, talvez até tivesse achado graça naquilo: “Nossa, meu filho é esperto mesmo! Comeu todo mundo e só deu uma vez”. Mas era impossível, pois não tirava da cabeça a imagem do filho ao ser flagrado: aquele olharzinho maquiavélico, ladino, calculista… aquele sorrisinho perverso, dos mais devassos… E ele só tinha dez anos de idade!

— Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’ — murmurava sem parar, o olhar perdido, a cabeça a golpear, a cada solavanco, a janela da viatura.

                FIM