palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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O Fim do Mundo

Em 1999, quando eu dirigia pela Marginal Tietê, via outdoors pretos enormes com os dizeres em branco: “Jesus está voltando”. Na mesma época, houve o Grande Apagão de Março, um evento impressionante, principalmente para quem ligou o rádio no momento mesmo em que ele ocorria: “houve uma explosão solar, o apagão é global”, etc. etc. Já no “sétimo mês”, em Julho, a OTAN − “o grande rei do terror”, segundo a propaganda sérvia − atacou nostradamicamente Belgrado.

Ainda no mesmo ano, tal como comento no meu livro “O Exorcista na Casa do Sol”, houve a noite em que a Hilda Hilst, depois de uns uísques, tentou me sacanear dizendo que o mundo já havia acabado e só sobráramos nós dois sentados numa réplica astral da sua sala de estar. Quando fiz cara de preocupado – “será que ela ficou gagá?” –, ela caiu na gargalhada.
Passei os réveillons de 1999, de 2000 e de 2001 em meio a gente cujo pensamento subjacente era: “Agora o mundo acaba”. Coisas de Alto Paraíso de Goiás, se é que me entendem… E, no entanto, depois de cada virada… nada. (Tudo isso sem mencionar a turma do Calendário Maia, que teve paciência até 2012.)

Enfim, parafraseando Louis Pauwels, o milenarismo apressadinho é uma doença cíclica do espírito. O interessante é que ele tem ressurgido nas bocas de alguns curiosos youtubers. Ora bolas, só Deus sabe o ano, o mês, a semana, o dia, a hora e o minuto. E ficar empolgado, acreditando que será um dos profetas ou uma das testemunhas desse acontecimento insigne, me soa como uma das coisas mais presunçosas do mundo.

Projeto de Lei: o cartório do cartório do cartório

Em vez de acabar com os cartórios — esse graaaande avanço civilizacional — deviam criar o “cartório do cartório” e o “cartório do cartório do cartório”. Seria assim: primeiro você vai ao cartório reconhecer firma, depois vai com o tabelião ao cartório do cartório que reconhecerá o reconhecedor da firma e assim por diante. Entendeu? Vou esmiuçar. Dá até para dividir o Uber com os funcionários. Com o primeiro tabelião, do cartório, e com o segundo, do cartório do cartório, você vai até o cartório do cartório do cartório que reconhecerá que os dois tabeliões anteriores são confiáveis e reconheceram a firma corretamente. Obviamente, se a pessoa achasse o processo todo muito trabalhoso, poderia recorrer a uma agência de sósias, a qual possuiria atores treinados em imitar a assinatura do cliente. Aí o ator, fingindo ser você, iria até o cartório e, em seguida, ao cartório do cartório e ao cartório do cartório do cartório. Os despachantes poderiam oferecer esse serviço. Claro, é possível que algum legislador, notando a tramóia, decidisse criar o cartório do cartório do cartório do cartório, no qual haveria, graças ao banco de dados do TSE, o reconhecimento da digital. Por que não colocariam reconhecimento da digital no primeiro cartório? Ora, e acabar com os empregos gerados pelo cartório do cartório, do cartório do cartório do cartório e do cartório do cartório do cartório do cartório? Sacanagem. Os parasitas também são gente, precisam sobreviver.

Chow! Chow!

— Você não pode dizer “vírus chinês”: isto é ra-cis-mo!
— Deixa de falar abobrinha, Tiago. Eu nem sei qual é a raça do vírus. Não sei se é pequinês, shih tzu, pug, chow chow…
— Ha-ha. Muito engraçado. Vírus não é exatamente um ser vivo. Só vive quando está dentro de você.
— Tá, mas deixa eu voltar aonde parei. Não quero ficar falando das características do zumbi microscópico. Eu só estava dizendo que o vírus chow chow ou pug (você decide a raça), enfim, que ele é uma arma do Partido Comunista deles. Isso é óbvio.
— E eles iam começar matando o próprio povo? Tá bom.
— Caramba, você não entende nada de comunista mesmo. Quem mais mata comunista nesse mundo é outro comunista, garoto.
— Querem parar com essa discussão na hora do almoço? Deixa o menino falar o que quiser, Alfredo.
— E não tô deixando? Mas eu também posso dizer o que eu penso, oras. Esse garoto, depois que entrou na universidade, ficou bobo. Impressionante! Não posso nem falar que “a coisa tá preta” que já me chama de racista. Tô de saco cheio.
— Bom, enquanto as aulas não voltarem, você vai ter de me aturar.
— E vê se pára de me tratar por “você”. Eu sou seu pai e pago as contas. Diga “senhor”, ouviu?
— Ai, que saco.
Tapa na boca.
— Parem já com isso, pelo amor de Deus!
O filho sai e, ao entrar no quarto, bate a porta.
— Esse moleque anda muito impertinente, Marisa. Pior que o vírus chinês é o vírus que ele pegou na faculdade. E ainda arranjou aquela lambisgóia pra namorar. Porra! A menina é careca! Que coisa mais feia!
— Uê, não era você o apaixonado pela Sinéad O’Connor? Vivia cantando pra mim “nothing compares to you”…
— Não compara a Sinéad com a lambisgóia. Nada compares to Sinéad! Ela não tinha um pentagrama satânico tatuado na cabeça e nem piercing nos mamilos.
— Ué! E como você sabe que a Gislaine tem piercing nos mamilos?
— Nossa, Marisa, como você é desatenta. A garota não usa sutiã e vem de camiseta aqui. Você acha que aquilo é o quê? A chave onde você liga e desliga a psicopatia dela?
— Ai, Alfredo, essa quarentena tem de acabar. Vocês dois vão me deixar louca!
— É a faculdade e a… como ela chama?
— Quem?
— A namorada dele, porra.
— Gislaine.
— Então, é ela e a faculdade que estão deixando nosso filho doido e, de tabela, nós dois. Em plena era da Fake news, o moleque foi escolher logo jornalismo para estudar. Que palhaçada.
— Tá, Alfredo, tudo bem. Também não estou satisfeita. Mas você precisa ter mais paciência. Desse jeito você vai acabar enfartando.
— Pelo menos essa agonia acabaria logo.
— Credo, meu amor! Não fala isso.
— Já tem político idiota querendo arrastar a coisa por mais alguns meses. Tem filho da puta dizendo que a quarentena tinha de durar até 2022! Imagine! Se a gente ficar desse jeito mais quinze dias, a empresa vai quebrar e vou acabar na rua.
De máscara, o filho sai do quarto, levando uma mochila às costas.
— Aonde você pensa que vai?
— Já falei com a Gislaine. Vamos morar juntos.
— Mas, meu filho, como vocês vão se manter?
— A gente dá um jeito, mãe. Aqui é que eu não fico mais.
— Deixa ele, Marisa. Assim pelo menos ele vai ver o que é bom pra tosse. Tá achando que sustentar uma esposa é fácil? Uma família então…
— Não tem problema. O Rogério também vai ajudar.
— Ah, é? E agora você vai depender de dinheiro de amigo?
— Ele não é só meu amigo. O Rô também namora a Gislaine. Somos um trisal.
— Meu filho!
— Puta que o pariu! Tá vendo, Marisa? Aquela garota é o cão. É uma islâmica ao contrário! Em breve terá quatro maridos e, em seguida, um harém.
— Pára de falar besteira, pai.
— Besteira? Eu já notei a maneira como ela fala com você: te trata feito um discípulo, um seguidor. Você é todo desafiador comigo, com seu próprio pai que sempre te amou e cuidou de você, e só falta lamber o chão que a Gilânia pisa.
— Gislaine.
— E o que eu disse? Gislânia. Aposto que você é coprófogo e ainda come a merda dela. Seu palhaço fresco.
— Eu e o Rô já bebemos mesmo o mijo dela. Nós três, no chuveiro…
A mãe fica zonza:
— Ai, ai, meu Deus, preciso me sentar.
— Sai daqui, moleque! Vai lá pra tariqa da sua mestra, vai. Vai pro ashram dela. Vai lá beber xixi e só volte quando estiver arrependido, trabalhando de terno e gravata.
— Vou mesmo. Não suporto mais essa caretice, esse conservadorismo hipócrita de vocês.
— Ah, é, somos hipócritas: eu e sua mãe ficamos zangados na sua frente e, mais tarde, na cama, comemos o cocô um do outro.
— Vai, meu filho, vai. Antes que seu pai tenha um troço.
— Tchau pra vocês.
— Isso! Chô chô. Se manda. Chow chow! Vai lá se contaminar ainda mais com esse vírus universitário seu.
— Lula livre!
O filho sai e bate a porta.
— Não disse que a gente devia ter tido uns cinco filhos? Agora não temos mais nenhum.
— Ai, Alfredo, não fala assim.
— Falo, sim, falo. Senão eu explodo!

O futuro do mundo

Pelo jeito, o futuro do mundo é este mesmo: a esquerda revolucionária desgraçará as sociedades e enfraquecerá todos os países, em seguida, aproveitando a resultante geléia anímica geral, o Islã dominará de cabo a rabo a Terra inteira, obviamente cortando as cabeças dos esquerdistas mimizentos, e, como cereja do bolo — já que todo mundo tem de quebrar a cara, incluindo os muçulmanos —, Jesus finalmente voltará. Fim.

Malditos ingleses

Ela deixou o irmão sozinho no carro e retornou correndo à clínica psiquiátrica:
— Doutor, você acabou de lhe dar alta, mas ele continua surtado.
— Seu irmão está tranqüilo, dona Paula, não se preocupe.
— Tranqüilo? Ele ainda acha que é Napoleão!
— Ah, sim: ele se identifica como Napoleão. Mas isso não é nada.
— Como assim “nada”, doutor? Isso é horrível!
— Horrível por quê? No STF, há rábulas que se identificam como juízes; no Planalto, há um ladrão que se identifica como presidente; na Europa, há um rapaz que se identifica como Miss Holanda; nas TVs, há militantes que se identificam como jornalistas, e assim por diante. Por que seu irmão não pode ser Napoleão?
— Mas… mas… tudo isso é loucura!
— Exato! — e o psiquiatra sorriu. — Logo, se a sociedade está louca, por que seu irmão deveria ser normal? Para ele se sentir desconfortável? Deslocado? Não, não. E o que é a normalidade afinal? Ora, tenha certeza de que ele está mais adaptado ao momento presente do que nós dois.
— Doutor Rodrigo, o senhor não… — mas, de súbito, ela se calou. De cenhos franzidos, ambos passaram a ouvir gritos e protestos vindos de fora. Assustada, Paula saiu à rua e se deparou com uma cena terrível: a torcida do Internacional de Porto Alegre depredava o carro com seu irmão lá dentro. Atrás do veículo, alguns torcedores atendiam seus colegas feridos, deitados no asfalto.
— Parem com isso! Estão assustando meu irmão, ele é um doente mental!
— Não falei que ele era louco? — disse um torcedor.
Outro torcedor, mancando, se aproximou:
— Moça, foi ele quem nos atropelou! Estávamos apenas atravessando a rua e ele jogou o carro na nossa direção.
— Ninguém o provocou — disse uma torcedora.
— Meu Deus… — murmurou Paula, que, batendo à janela com os nós dos dedos, pedia ao irmão para baixar o vidro.
— Malditos ingleses… — balbuciou ele, assim que a obedeceu. — Pensaram que eu não ia reconhecer seus uniformes.
MORAL: Coadunar com a loucura é caminhar para o desastre.

Padre Antônio Vieira: os poderosos e o dia do Juízo

Leia abaixo a parte VIII do Sermão da Primeira Dominga do Advento (1955), no qual Padre Antônio Vieira admoesta os detentores do poder político e do poder eclesiástico: “Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação, e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança”.

VIII

Oh que grande mercê de Deus fôra, se hoje, que estamos na representação do mesmo dia do Juízo, o mesmo soberano juiz nos comunicara um raio daquela luz, para que víramos agora o que então havemos de ver, e com os pecados conhecidos nos presentáramos antes ao tribunal de sua misericórdia, que depois ao de sua justiça! Mas bendita seja a bondade do mesmo Senhor, que não só nos deixou comunicado na sua doutrina um raio daquela luz, senão três, se nós lhe não cerramos os olhos. Sendo a matéria de tudo o que passou para a vida, e não há de passar para a conta, tão imensa à capacidade humana, só a sabedoria divina a poderá compreender; e assim o fez Cristo Senhor Nosso, reduzindo-a, repartindo-a em três parábolas, nas quais nos ensinou em suma toda a conta que nos há de pedir, e de quê. A primeira parábola é dos ofícios, a segunda dos talentos, a terceira das dívidas. E este mesmo número e ordem seguiremos para maior distinção e clareza.

Quanto aos ofícios, diz a primeira parábola (que é a do Villico) que houve um homem rico, o qual deu a superintendência das suas herdades a um criado, com nome de administrador delas. E porque não teve boa informação de seus procedimentos, o chamou à sua presença, e lhe pediu conta, dizendo: Redde rationem villicationis tuae; jam enim non poteris villicare. Dai conta da vossa administração, porque desde esta hora estais excluído dela. Esta circunstância de ser a conta a última, e não se poder emendar, é uma das mais rigorosas do dia do Juízo. Vindo pois ao sentido da parábola: o homem rico é Deus; as suas herdades são as igrejas e as províncias; o administrador no espiritual é o papa, no temporal é o rei, e, abaixo destes dois supremos, todos os outros ministros eclesiásticos e seculares, que repartidamente têm inferior jurisdição sobre os mesmos súditos. A todos estes, pois, há de pedir Deus estreita conta, não só quanto às pessoas, senão também, e muito mais, quanto aos ofícios. Quanto à pessoa, há de dar cada um conta de si, e quanto aos ofícios, há de dar a mesma conta de todos aqueles que governou e lhe foram sujeitos. De sorte que o papa há de dar conta de toda a cristandade, o rei de toda a monarquia, o bispo de toda a diocese, o governador de toda a Província, o pároco de toda a freguesia, o magistrado de toda a cidade, e o cabeça da casa de toda a família. Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação, e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança.

Se é tão dificultoso dar boa conta da alma própria, que é uma, quão difícil e quão impossível será dá-la boa de tantas mil? Como é certo, que não temos fé, nem sabemos a que nos obriga! Vedes quantas almas há nesta cidade, quantas almas há nesta Província, quantas almas há em todo o reino? Pois sabei, se o ignorais, ou não advertis, que de todas essas almas hão de dar conta a Deus os que governam a cidade, a Província e o reino. Porque assim como sobre todos e cada um tem poder e mando, assim em todos e cada um são obrigados a lhes fazer guardar as leis, não só humanas, senão também as divinas. Não é isto encarecimento meu, senão doutrina sólida e de fé, pronunciada por boca de S. Paulo: Obedite praepositis vestris, et subjacete eis; ipsi enim pervigilant, quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Obedecei, diz o apóstolo, a vossos superiores e sede-lhes muito sujeitos, porque a sua obrigação é zelar e vigiar sobre as vossas vidas, como aqueles que hão de dar conta a Deus de vossas almas. Vede quanto maior é a sujeição dos superiores que a dos súditos. Quantos são os súditos que estão sujeitos ao superior, tantas são as almas de que está sujeito o superior a dar conta a Deus. E posto que este oráculo bastava para nenhum homem que tem fé querer tomar sobre si uma tal sujeição, ouvi agora o que nunca ouviste. Nem todas as sentenças de Cristo estão escritas no Evangelho, algumas ficaram somente impressas na tradição de seus discípulos, entre as quais é tão notável como terrível esta: Omne peccatum, quod remissus, et indisciplinatus admiserit frater, ad negligentem protinus revertitur seniarem. Quer dizer: todos os pecados que cometem os súditos, se escrevem e carregam logo no livro das culpas do superior, porque há de dar conta deles. De modo que segundo esta sentença e revelação do mesmo Cristo, todos os homicídios, todos os adultérios, todos os furtos, todos os sacrilégios e mais pecados que os vassalos cometem na vida e reinado de um rei, e as ovelhas e súditos na vida e governo de um prelado, todos estes pecados se lançam logo e escrevem nos livros de Deus, debaixo do título do tal rei e debaixo do título do tal prelado, para se lhes pedir conta deles, no dia do Juízo.

Ponhamos agora este rei, e depois poremos também este prelado diante do tribunal divino, e vejamos que respondem a estes cargos. O rei é a cabeça dos vassalos; e quem há de dar conta dos membros, senão a cabeça? O rei é a alma do reino; e quem há de dar conta do corpo, senão a alma? Pedirá, pois, conta Deus a qualquer rei, não digo dos pecados seus e da sua pessoa, senão dos alheios e do ofício. E que responderá já não rei, mas réu? Parece que poderá dizer: Eu, Senhor, bem conhecia que era obrigado a evitar os pecados dos meus vassalos, quanto me fosse possível, mas a minha corte era grande, o meu reino dilatado, a minha monarquia estendida pela África, pela Ásia e pela América; e como eu não podia estar em tantas partes, e tão distantes, na corte tinha provido os tribunais de presidentes e conselheiros, no reino de ministros de justiça e letras, nas conquistas de vice-reis e governadores, instruídos de regimentos muito justos e aprovados. E isto é tudo o que fiz e pude fazer. Também poderá meter nesta conta o seu próprio palácio, e aqueles de que se servia mais familiar e interiormente. Mas sobre todos cai a réplica. E estes que elegestes (dirá Deus) por que os elegestes? Não foram alguns por afeição, e outros por intercessão, e outros por adulação, e outros por ruim e apaixonada informação? E os que ficaram de fora com mais conhecido merecimento, por que os excluístes? Mas dado que todos fossem eleitos com os olhos em mim, e justamente, depois que na administração de seus ofícios conhecestes que não procediam como eram obrigados, por que os não removestes logo, por que os dissimulastes e conservastes, e, o que pior é, por que os despachastes de novo, e com mais autorizados postos? Se o que assolou uma Província o deixastes continuar na mesma assolação, e depois o promovestes a outro governo maior, como não fostes cúmplice das suas injustiças, e das culpas que ele em vez de remediar acrescentou com as suas, e com o exemplo delas? Se as suas tiranias vos foram manifestas, como as deixastes sem castigo, e os danos dos ofendidos sem restituição? Quantas lágrimas de órfãos, quantos gemidos de viúvas, quantos clamores de pobres chegavam ao céu no vosso reinado, porque para suprir superfluidades vãs, e doações inoficiosas, vossos ministros (por isso premiados e louvados) com impiedade mais que desumana, não os despojavam, mas despiam. Isto é o que poderá replicar Deus, emudecendo, e não tendo que responder o triste rei. E qual será a sua sentença? No dia do Juízo se ouvirá. O certo é que Davi, rei santo antes de pecador e depois de pecador exemplo de penitência, o que pedia perdão a Deus, era dos pecados ocultos e dos alheios: Ab occultis meis munda me, et ab alenis parce servo tuo. Mas os pecados ocultos naquele dia são manifestos, e dos alheios, por ter sido rei, se lhe pedirá tão estreita conta como dos próprios.

Entre agora o prelado a dar conta, e a ouvir em estátua o processo que depois da ressurreição lhe será notificado em carne. Oh que espetáculo será aparecer descoroado da mitra, e despido dos paramentos pontificiais diante da majestade de Cristo Jesus, aquele a quem o mesmo Senhor autorizou com o nome e poderes de seu vigário, e cuja humana e divina pessoa representou nesta vida! O pastor, et Idolum! lhe dirá Cristo: Tu que foste pastor no nome, e como ídolo te contentaste com a adoração exterior que não merecias, dá conta. Não ta peço das misérias ocultas, senão das públicas e escandalosas de tuas mal guardadas e desprezadas ovelhas. Eram miseráveis no temporal, e não trataste de remediar suas pobrezas, e eram muito mais miseráveis no espiritual, e não cuidaste de curar nem de preservar seus pecados. Se as rendas, que com tanta cobiça recolhias, e com tantas avarezas guardavas, eram o meu patrimônio, que eu adquiri, não menos que com o meu sangue, por que o não distribuíste aos meus verdadeiros credores, que são os pobres? Por que o dispendeste em carroças, criados e cavalos regulados, estando eles morrendo de fome, e em vestir as suas paredes de oiro e seda, andando eles despidos e tremendo de frio? Se o zelo de teus ministros visitava as vidas dos pequeninos, tratando mais de se aproveitar das condenações, que de lhes emendar as consciências; os pecados monstruosos dos grandes, que tão soberba e escandalosamente viviam na face do mundo, como os deixaste triunfar com perpétua imunidade, como se foram superiores às leis da minha Igreja?

Confesso, Senhor, responderá o prelado, que em uma e outra coisa faltei, mas não sem causa. O que dispendi com minha casa e pessoa foi para satisfazer aos olhos do vulgo, que só se leva destes exteriores, e para conservar a autoridade do ofício e veneração da dignidade. E se contra os pecados dos grandes me não atrevi, foi porque os seus poderes são inexpugnáveis; e julguei por menos inconveniente não entrar com eles em batalha, que com afronta e desprezo das mesmas leis da Igreja, ficar no fim da peleja vencido: e finalmente, Senhor em uma e outra omissão segui o exemplo universal, e o que usam neste ofício os que com mais poderosas armas, e com maiores jurisdições que a minha, costumam em toda a parte fazer o mesmo. Ó ignorante! ó covarde! replicará Cristo. Tão ignorante e covarde, como se não tiveras lido as Escrituras, nem os Cânones, e exemplos da mesma Igreja. Porventura Pedro, e Paulo, e os outros apóstolos que me imitaram a mim, e os seus verdadeiros sucessores, que os imitaram a eles, conciliavam a autoridade das pessoas e do ofício, ainda entre gentios, com os aparatos exteriores? Não sabes que esse mesmo povo, com cujos olhos te escusas, se por dares tudo aos pobres, te vissem desacompanhado, só, e a pé pelas ruas, e ainda com os pés descalços, então se ajoelhariam todos diante de ti, e te adorariam? E quanto à covardia de te não atreveres com os grandes, tendo a teu lado a espada de Pedro; contra quem se atrevia Davi, que foi o exemplar dos meus pastores? Entre as feras tomava-se com os leões, e entre os homens com os gigantes. Que fera mais fera que a imperatriz Eudóxia, e vê como a não temeu Crisóstomo; e que leão mais coroado que o imperador Teodósío, e vê como o humilhou e pôs a seus pés Ambrósio. Finalmente, se não seguiste o valor destes, senão o que chamas costume dos outros, agora verás em ti e neles, que se eles o costumam fazer assim, Eu também costumo mandar ao inferno os que assim o fazem. Isto baste quanto à conta dos ofícios, e tomem exemplo os ministros seculares na conta do rei, e os eclesiásticos na do prelado.

Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’

Furibundo, o pai decidira: se necessário, iria quebrar a cara daquele professor! Onde já se viu? Isso lá era tarefa que se desse a crianças de dez anos de idade? Não, não deixaria barato. Estava tão indignado, tão furioso, que nem avisara a esposa de que iria à escola. Por que o faria? Ela ainda não sabia de nada. E ele nada lhe dissera, não simplesmente para poupá-la, mas também para evitar que ela o impedisse de levar as coisas às últimas conseqüências.

— No mínimo, no mínimo, esse professor merece um murro na cara! — grunhia.

Colocou a odiada máscara pandêmica e entrou na escola pisando duro, a agenda do filho enrolada na mão direita feito um porrete. O porteiro o interpelou:

— Aonde o senhor vai?

— Tenho uma reunião marcada com o senhor Ferreira.

Impressionado com as feições carregadas daquele pai, o porteiro interfonou imediatamente para a secretária do diretor.

— Sim, sim. Tá certo — murmurou. E para o pai: — O senhor pode entrar. Basta subir aquela escada à direita e…

— Obrigado, eu sei onde é — atalhou secamente o homem, partindo na mesma velocidade com que entrara

Na escada, já se imaginava esculhambando o professor. Dar-lhe um murro, claro, era apenas um sonho vão. Na verdade, ficaria bastante satisfeito com sua demissão e, claro, com sua condenação na Justiça.

O diretor, todo sorridente, já o aguardava à porta da sala. Tinha um ar tranqüilo. A secretária, essa, sim, parecia tensa.

— Boa tarde, doutor Araújo. Como vão as coisas?

— Péssimas — tornou o revoltado pai. — Precisamos esclarecer umas coisas.

— Entre, por favor, entre.

Sentaram-se. Doutor Araújo notou como o diretor, atrás de uma mesa gigante, ficava pequenininho em sua enorme cadeira de escritório. Pequenininho e redondo. A máscara, grande demais, meio caída sob as narinas, tornava-o ainda mais infantil.

— Do que se trata?

— Seu Ferreira, quero que o senhor chame esse tal de professor Luís para me explicar isto aqui — e, desenrolando a agenda escolar que tinha em mãos, mostrou-lhe a página com a absurda tarefa de casa.

O diretor, mudo, leu e releu a página umas três vezes. Não estava chocado, mas já não estava mais tão tranqüilo. Tinha mesmo era um ar de “ai ai, mais um imbróglio para resolver”.

— Bom, doutor… — finalmente disse, entrelaçando os dedos. — De fato, não é uma atividade das mais ortodoxas. Entendo sua preocupação.

— Das mais “ortodoxas”?! “Preocupação”? — enfureceu-se ainda mais. — Seu Ferreira, eu peguei meu filho, no flagra, fazendo troca-troca com outros cinco colegas dele! Cinco! Todos alunos desta escola. E, quando gritei com eles, disseram-me que era uma tarefa. E veja aí: é verdade!

— Troca-troca? Como assim “troca-troca”? — gaguejou o outro.

— Ué, vai me dizer que o senhor não sabe do que se trata? Eles estavam fazendo uma suruba, porra! Comendo os rabos uns dos outros!

— Suruba?! — empalideceu o diretor.

— Sim, exatamente. Garotos de dez anos fazendo suruba a mando de um professor descarado, de um pervertido. Até aquele menininho novato de Taiwan, que mal fala o português, estava lá! Enfim, quero que o senhor chame esse professor aqui… agora!

Sentindo que, caso não convocasse o professor, acabaria tendo de chamar seguranças, ou a cavalaria, serviços que não possuía, seu Ferreira engoliu em seco e, bufando, digitou um número no interfone.

— Dona Dalva, por favor, encontre o professor Luís e diga-lhe que venha urgentemente à minha sala — e ficou a ouvir a réplica. — Não — acrescentou, baixando a voz —, não importa que esteja em aula. Diga-lhe para vir. Qualquer coisa, fique a senhora mesma cuidando da turma dele — e desligou.

Notando mais acuradamente a atmosfera de adrenalina, testosterona e sede de justiça que cercava aquele médico de meia-idade, o diretor decidiu botar água na fervura: não pretendia testemunhar um docentecídio.

— O senhor precisa convir que vivemos novos tempos, doutor — e esboçou um sorriso amarelo. — Aliás, é por isso que contratamos o professor Luís, que é um…

— “Novos tempos”? — rangeu o pai, entredentes. — O senhor deveria saber, seu Ferreira, que, em toda fase decadente de uma civilização, os agentes dessa decadência se acham uns apologistas de grandes novidades. Sempre as mesmas! — e sacudiu a cabeça, sorrindo amargamente. — Novos tempos! Não há nada mais velho e recorrente do que os tais “novos tempos”.

Aquilo foi dito de maneira tão contundente e peremptória que o diretor preferiu calar-se e aguardar em silêncio. Começou a tamborilar a mesa, olhando de esguelha para o relógio de pulso. Embora o professor Luís não tenha levado mais de três minutos para assomar à porta, esses três minutos pareceram ao diretor uma eternidade.

— Bom dia — disse o professor Luís, a mão ainda na maçaneta. — Do que se trata?

— Bem, para começar… — tomou a palavra o diretor.

— Começar? — interrompeu-o o Dr. Araújo. — Mas cadê o professor Luís?

— Ué. Sou eu mesmo.

Dr. Araújo observou a figura de cima a baixo: uma mulher atarracada, uns seis meses de gravidez na barriga, os cabelos curtos pintados de azul, óculos redondos, uma atitude impertinente — talvez devido à máscara que só lhe cobria o queixo — e, o que lhe apareceu ainda mais esquisito, um buço aparentemente tingido de escuro à guisa de bigode.

— Mas… você é uma mulher! — exclamou, vendo seus sonhos de esmurrar um pervertido irem por água abaixo.

A figura crispou as mãos e se abespinhou de imediato:

— Ora, o senhor me respeite! Não sou uma mulher! — replicou, batendo um pezinho no chão e engrossando comicamente a voz, o que quase desconcentrou o pobre médico, já que essa voz lembrou-lhe claramente o tom com que sua mãe, ao narrar um conto de fadas, interpretava as falas do Lobo Mau.

Desconcertado, o Dr. Araújo virou-se para o diretor:

— Tudo bem, tudo bem — quase gaguejou. — Se ela causou o problema, é com ela mesmo que…

— “Ela”, não! — berrou o professor Luís, colocando a máscara na posição correta. — Eu sou um homem trans! Não seja transfóbico comigo!

Dr. Araújo arregalou os olhos:

— Transfó… — e deu um pequeno murro na própria coxa. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece com essas besteiras políticas para cima de mim. Vim aqui discutir algo muito sério. Não vim para defender que a grama, em vez de cor-de-rosa, é verde. Eu sou médico obstetra, caramba! Onde já se viu? Um homem grávido?

— Isso mesmo! Sou homem e estou grávido. Só o mais rasteiro preconceito é incapaz de admitir isso.

— Preconceito? Quem não admite isso é a natureza. O bebê está onde? Na próstata? No saco escrotal? Vai sair pela uretra?

O professor Luís deu um passo ameaçador na direção do médico, fato esse que alarmou o diretor:

— Por favor, doutor — interveio seu Ferreira, limpando o suor da testa. — Tente ser mais cordial. Estamos aqui para ouvir suas queixas.

— OK. Se ela não vier com essas…

— “Ela”, não! Meus pronomes são “ele” e “dele”. Já disse: eu me identifico como homem. Então, fale comigo sem ser preconceituoso.

O doutor, em sua irritação, quase se levantou da cadeira. Odiava ter de trair sua apreensão direta do mundo. Mas, após remexer-se por um segundo, teve um insight e voltou a acomodar-se. Decidiu aderir estrategicamente ao jogo:

— Está certo! Entendi — soltou, num tom de quem dava o braço a torcer. — Então, por favor, exijo reciprocidade: meus pronomes são “vós” e “vossos”. Eu me identifico com um conde do século XVIII. Tratem-me de acordo.

— Dr. Araújo, o senhor não pode…

— “Vós não podeis”.

— Hum?

— “Vós não podeis”. Use comigo a segunda pessoa do plural.

O diretor relanceou um olhar confuso para o professor Luís, que permanecia de pé, numa atitude severa de galinha choca. Estava certo aquilo? Uma pessoa também podia identificar-se como um conde do século XVIII? Como seus olhos não encontraram qualquer reação ou resposta cúmplice da parte daquele indignado “homem trans”, retomou a palavra.

— Doutor Araújo, vós… bem, vós não podeis se dirigir a uma pessoa trans…

— “Conde Araújo, vós não podeis dirigir-VOS…”

O diretor calou-se e cerrou os olhos, petrificado como uma estátua. O doutor quase podia ouvi-lo contando internamente até dez. Por alguma razão, pensou, a exasperação do diretor era uma espécie de socialização da sua própria indignação. Até sentiu que seu fardo estava mais leve, uma vez que mais alguém ajudava a carregá-lo. Talvez o próprio diretor percebesse o ridículo daquela situação, mas, para manter o emprego, via-se obrigado a seguir o faz-de-conta.

— Bem, vamos prosseguir com o que realmente interessa — disse finalmente seu Ferreira, abrindo os olhos. E respirou fundo: — O caso, professor Luís, é que o dou… quero dizer, o Conde Araújo tem uma reclamação justa e pode prová-la: veja a tarefa anotada pelo filho vosso… quer dizer, vosso filho dele. É verdade que você mandou os meninos fazerem uma… — e pigarreou: — uma suruba?

O professor Luís, de braços cruzados sobre o barrigão, o queixo erguido, mantinha uma atitude desafiadora:

— Suruba? — e deu uma risadinha desdenhosa. — Imagino que pessoas caretas e recalcadas até poderiam interpretar assim, mas a tarefa que dei pra eles foi a de conhecer os corpos uns dos outros. Como vão saber se preferem namorar meninos ou meninas? Precisam se conhecer. Por isso nunca disse que isso devia ser feito apenas entre meninos.

O médico mal podia acreditar no que ouvia:

— Conhecer os corpos! Meu Deus… — e suspirou. — Então, para conhecer alguma coisa eles precisam usar o tato, a pele, esfregando-se uns nos outros, tocando-se, pegando nos órgãos genitais alheios e o pior: metendo os pauzinhos nos cus uns dos outros? Namorar uma pinóia! Isso é troca-troca! E não havia menina nenhuma! Se houvesse, tanto pior! Eles são crianças! Crianças! Entendeu? Mas, enfim, o fato é que era uma surubinha gay!

O professor Luís, mal contendo uma veleidade de sorriso, passou tranqüilamente uma mão pela cabeça colorida:

— Admito que mandei eles se desnudarem, se tocarem, se esfregarem, para melhor se conhecerem. Mas não mandei ninguém comer ninguém.

— Ah, isso é muito bonito: “Mandei esparramarem a gasolina pelo chão e acender o fósforo, mas não mandei ninguém incendiar a casa”. Você é retardada por acaso?

— “Retardada”, não! Mais respeito com os defi…

— Ah, me desculpe, errei o gênero: você é retardado?

Mais tarde o Dr. Araújo, ao narrar a cena para a esposa, compararia o que se seguiu a uma dessas cenas em câmera lenta de filme de ação: numa fração de segundo, o professor Luís, com a mão direita erguida, o olhar alucinado, voou em sua direção com o claro intuito de estapeá-lo, porém, o diretor, com a agilidade de um macaco-prego, sim, um macaco gordinho, galgara simultaneamente a mesa, atirando-se sobre o professor antes que o tabefe fosse desferido. Ambos caíram ao chão, atrelados um ao outro, o que muito preocupou o médico obstetra, que avançou para tentar proteger com as mãos o inocente nascituro. O professor, sem sucesso, tentava livrar-se do abraço pacificador do diretor e parecia acreditar que o doutor tencionava agredi-lo. A essa altura, ninguém mais usava máscaras.

— Que loucura! Vocês vão matar a criança! — berrou o doutor, os olhos esbugalhados.

Alarmado com essa observação, o diretor engatinhou a um lado, ao passo que o professor caía das nuvens, preocupadíssimo, aceitando as mãos do médico sobre sua barriga:

— Nossa, doutor! Será que aconteceu alguma coisa com mi filhe? — balbuciou num tom surpreendentemente feminino.

— “Mi filhe”? — E num esgar: — Que diabo de língua é essa? Esgueiranto?

O diretor não agüentava mais:

— Pelo amor de Deus, não recomecem! Chega de provocações! Pode ser?

Sem responderem nem que sim, nem que não, médico e paciente obedeceram tacitamente ao já irado diretor. O doutor Araújo, com um ar compenetrado, profissional, apalpou o ventre do professor por todos os lados. Por fim, aliviado e satisfeito, ergueu-se e declarou:

— Não se preocupe. Está tudo bem.

— Obrigado, doutor.

— Está vendo? — acrescentou o médico, solícito, numa sinceridade inocente e transbordante. — Homem ou mulher, pouco importa: você já é uma boa mãe.

Para quê… O professor Luís voltou a enfurecer-se:

— “Mãe”, não! Pai! Pai! Eu sou é o pai!

— E a mãe é quem? — retrucou o médico, cruzando os braços. — Um dos irmãos… digo, uma das “irmãs” Wachowski? O mundo virou mesmo uma Matrix, uma simulação insuportável…

O professor rosnou, fora de si, fazendo menção de levantar-se. No entanto, antes que a coisa voltasse a azedar, o diretor se interpôs:

— Por favor, doutor… conde… ou o caralho a quatro: retirai-vos. Sim? Dou por encerrada esta reunião. Conversaremos novamente noutra oportunidade.

Enquanto seu Ferreira ajudava o professor Luís a se levantar, o doutor pegou a agenda do filho e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, virou-se ainda uma vez:

— Obrigado por sua atenção, seu Ferreira, mas não voltaremos a nos falar. Aguarde a visita do meu advogado. Ficarei muitíssimo satisfeito quando esse escândalo estourar e vocês dois estiverem na cadeia — e sorriu cinicamente: — Aliás, professor Luísa, estou curioso para saber se você vai gostar da prisão masculina. Muitos homens vão querer dividir a cela com você…

E, tendo dito isso, saiu, sem deixar de reparar nos olhos arregalados da secretária, que, ao vê-lo, fingiu-se de muito ocupada.

Quando chegou em casa, o doutor, aliviado e seguro de si, finalmente contou tudo à esposa, que, até então, nem sequer havia se inteirado do famigerado troca-troca. Escandalizada, persignando-se, instou o marido a abrir um processo contra a escola o mais rápido possível. Naquele mesmo dia, ele entrou em contato com seu advogado, que lhe garantiu: a indenização estaria na casa dos seis dígitos, talvez até dos sete. De fato, o advogado foi ligeiro e, na semana seguinte, o processo estava aberto.

— A Justiça não o deixará na mão, doutor Araújo — disse-lhe ao telefone.

No mesmo dia, um camburão da polícia foi à casa do médico — para prendê-lo, claro, afinal, ele havia cometido o horroroso crime de transfobia. Sim, o professor Luís, muito escolado nessas questões de “perseguição fascista”, havia gravado, em seu celular, todo o diálogo ocorrido, tendo entregado à polícia uma versão editada na qual só se ouvia, como mais tarde noticiou a imprensa, “o discurso de ódio do maligno médico obstetra”. De fato, a professora… perdão, o professor não era nada bobo.

Sentado na traseira do camburão, o médico, que de tanta cólera finalmente atingira um estado de serena passividade, não conseguia esquecer o diálogo que tivera com o filho, na ocasião do flagra, logo após a partida dos coleguinhas:

— Meu filho, você não tem vergonha?! Isso lá é coisa que se faça?

— Calma, pai! — dizia o garoto, sorrindo.

— Que calma o quê! E tira esse sorriso bobo da cara!

— Bobo, não! Eu sou é muito esperto!

— Ah, é! Muuuito esperto! Deixar os outros come… — e pigarreou: — Deixar cinco moleques pegarem na sua bunda agora é esperteza?

— Não, pai: eu sou muito esperto mesmo. Na verdade, eu comi todo mundo e só dei uma vez! E dei justamente pro Liu Xiang, que tem um pau desse tamaninho!

No camburão, o médico imaginava que, se tivesse uma personalidade diferente, se fosse, como se diz, mais “zoeiro”, talvez até tivesse achado graça naquilo: “Nossa, meu filho é esperto mesmo! Comeu todo mundo e só deu uma vez”. Mas era impossível, pois não tirava da cabeça a imagem do filho ao ser flagrado: aquele olharzinho maquiavélico, ladino, calculista… aquele sorrisinho perverso, dos mais devassos… E ele só tinha dez anos de idade!

— Aconteceu alguma coisa com ‘mi filhe’ — murmurava sem parar, o olhar perdido, a cabeça a golpear, a cada solavanco, a janela da viatura.

                FIM

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