palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Autor: Yuri Vieira Page 53 of 82

José Guilherme Merquior fala sobre as literaturas fantástica e visionária

José Guilherme Merquior

« Depois que a crítica moderna descobriu, pela experiência de Auschwitz e Dachau, o realismo premonitório de Kafka, depois que foi levada a revelar o visionário como origem mal disfarçada de muito realista tido por exemplar – Hoffmann como fonte de Balzac – já não parece haver dúvida sobre a legitimidade do imaginário enquanto realismo. Resta apenas distinguir entre as modalidades realistas do próprio imaginário. Por que, com efeito, entre a linha de Kafka e a poética muriliana existem tantas diferenças? Admitindo o fato de que não advêm do maior ou menor valor estético nem da condição de poeta [Murilo Mendes], por oposição à do prosador, qual o núcleo estilístico responsável por essa divergência de caminhos, dentro da esfera geral do realismo imaginário?

« Talvez seja preciso fundar uma distinção entre duas vias do realismo imaginário: entre a literatura do fantástico, e a literatura do visionário. Do fantástico foi Sartre quem nos deu uma penetrante fenomenologia. A descrição do mundo fantástico descobre-lhe as leis, a primeira das quais é a que exige, para a sua realização, que esse mundo seja completo. Se não obedecer a esse caráter de universo completo – universo totalmente fantástico -, nenhum extraordinário conseguirá assumir a condição fantástica. Sartre exemplifica com o caso das fábulas, nas quais o insólito, dado entre tantas outras coisas não insólitas, não chega nunca a virar fantástico. Na fábula, um cavalo põe-se a falar: é um acontecimento extraordinário. Mas ele fala em meio a árvores, a rios, a seres e coisas que permanecem, da maneira mais natural, obedecendo às leis do mundo em sua absoluta normalidade. Por causa disso, percebe-se logo que o cavalo é tão somente máscara; compreende-se que é um homem disfarçado – e reconduz-se o pseudo fantástico ao sistema das leis do mundo. A fábula finge o fantástico; não o cria verdadeiramente. Se o cavalo falante fosse realmente fantástico, o universo inteiro também o seria, e cada coisa, cada ser violaria, tanto quanto o cavalo, a legalidade da natureza. O fantástico só se realiza quando o extraordinário abrange um universo completo. Porém desse universo, que rompe a norma do natural, qual é a lei suprema, a lei que autoriza a inversão das regras ordinárias? É a revolta dos meios contra os fins, responde Sartre. No mundo do fantástico, os objetos-meios se esquivam ao nosso uso, rebelam-se contra os fins que lhes são normalmente assinalados. No romance de que Sartre partiu para teorizar sobre o fantástico, um personagem tem um encontro no primeiro andar de um café. Chegado a este, ele vê perfeitamente que o primeiro andar ,existe, vê as mesas dos fregueses lá em cima – só não vê, por mais que a procure, a escada, ou elevador, que possa fazê-lo chegar lá. A escada é um meio rebelde, cuja rebelião adquire a forma da pura ausência. A impotência do herói diante desse meio-fantasma nada tem a ver, observa Sartre, com a impotência humana diante do absurdo. Na literatura do absurdo (em seu modelo perfeito, L’Étranger de Camus), em lugar da rebelião dos meios, acontece a pura ausência de fim, de qualquer fim. "Les hommes aussi sécretent de l’inhumain", diz Camus em Le Mythe de Sisyphe, e o inumano segregado é a consciência passiva, mecânica, que renunciou a elaborar significações e portanto a designar finalidades. O homem que constata o absurdo renuncia a todos os projetos; não reconhece mais nenhuma finalidade. O herói do mundo fantástico, entretanto, continua perseguindo os fins num universo que a insolência dos meios torna hostil, torna cruel, torna indecifrável – mas não absurdo. O mesmo Sartre separa Kafka de Camus, sob a alegação de que, no primeiro, o mundo não é sem sentido; é, isso sim, um mundo de sentido angustiantemente oculto, universo de cifras intraduzíveis. A cifra indecifrável, o texto ilegível, são manifestações da rebeldia dos meios naquilo que é o meio por excelência: a mensagem. As mensagens, objeto cuja existência se resume em comunicar, em consumir-se como ponte, como contato entre pólos, emissor e receptor, estão sempre descumprindo sua função, no plano do fantástico. Nunca transmitem normalmente: ora desaparecem, ora transmitem em falso, ora transmitem à pessoa errada. Texto rebelde, as mensagens, comunicação essencial entre os homens, correspondem no fantástico à sociedade burocrata, onde os próprios homens, num universo de meios rebeldes, se fazem meios. Os burocratas de Kafka são simples utensílios. Como utensílios, são os representantes de um mundo invertido, onde o sujeito de todas as finalidades, o homem, degrada-se em instrumento puro, enquanto os instrumentos recusam-se a servir.

« Se o fantástico é um universo completo, vale dizer, onde tudo é homogeneamente extraordinário, no plano do visionário o mundo é, diversamente, um universo misto. Misto ou híbrido, no universo visionário convivem o insólito e o natural o maravilhoso e o vulgar. O plano do visionário é eminentemente transitivo: nele, o espantoso irrompe e desaparece com a mesma naturalidade. Seu ingresso abrupto, e sua não menos brusca reconversão ao natural, são fenômenos freqüentes numa esfera em permanente processo. Em oposição ao estático do fantástico, o mundo visionário é vivamente dinâmico. Heterogêneo, aí se chocam vários elementos contraditórios, num procedimento dialético jamais reduzido à imobilidade. Nenhuma situação é fixa; nenhuma se exime de ser envolvida pelo processo. Assim, se os meios às vezes se rebelam, se os utensílios ameaçam trair sua função, nunca se pode dizer, do homem desse universo, que tenha perdido sem apelação a liberdade de sua consciência. O habitante do visionário não é, como o do fantástico, um burocrata medular. Ele perde-e-recupera, perde-mas-recupera o seu status humano de detentor supremo de finalidades. Tampouco habita um mundo sem significação (absurdo), ou de significação irremediavelmente oculta (fantástico). Por mais que vacile, por mais que se contradiga, atribui sempre ao mundo um sentido inteligível, de leitura parcial e não raro difícil, mas nunca impossível. A concepção do mundo do visionário é, portanto, aberta ao entendimento de uma lógica do acontecer, de uma razão histórica e de uma ordem temporal – embora não seja esta simplesmente linear.

« Se é possível estabelecer uma distinção entre as técnicas de representação derivadas dessa diferença de visão global, deverá ser dito que a literatura do fantástico se funda no uso de um estilo alegórico, ao passo que a literatura do visionário se encarna num estilo de natureza preferencialmente simbólica. O uso poético da alegoria foi definido, em grande profundidade, no ensaio de Walter Benjamin sobre o drama barroco alemão (publicado em 1928; redigido, como tese universitária, alguns anos antes). Suas conclusões foram em parte aproveitadas por Lukács num ensaio do livro Die Gegenwartsbedeutung des kritischen Realismus. Benjamim, embora oficialmente estudando apenas a tragédia barroca, na realidade desenvolveu uma teoria do estilo alegórico como fundamento da literatura de vanguarda contemporânea, com especial aplicação a Kafka, autor a quem dedicou outro de seus ensaios. Para ele, a alegoria fixa o sentido da temporalidade como certeza da morte e da decadência. No estilo alegórico, a significação de todo fluir está ligada aos motivos do pessimismo e à revelação do vazio da existência. "As alegorias são no reino das idéias o que as ruínas são no reino das coisas". No estilo alegórico, toda a significação do real se encontra na caducidade, na "paixão do mundo" em que se transforma a História como pura vocação para o nada; e por isso mesmo, toda singularidade, toda coisa, pessoa ou relação pode vir a representar qualquer coisa: pois o mundo profano, mundo sem sentido, embaralha as significações em virtude da sua completa privação de valores. As relações da literatura do fantástico com o estilo alegórico são patentes. Benjamim cita as palavras do próprio Kafka: "A mais profunda das experiências vividas é a de um mundo rigorosamente sem sentido, que exc1ui toda esperança, e que é o nosso mundo, o mundo do homem, do homem burguês contemporâneo". Kafka concebe o universo como um sem-sentido. Benjamim insiste numa interpretação antibrodiana de Kafka. Segundo sua linha de análise, Kafka é um ateu, não do tipo progressista, que afasta Deus do mundo para liberar este último do controle transcendente, mas sim – como nota Lukács – do tipo niilista que imagina um mundo abandonado por Deus para figurá-lo inteiramente despojado de significação, e sem nenhum vislumbre consolador. O Deus de Kafka, os juízes supremos de O Processo, a administração de O Castelo, são "a transcendência das alegorias kafkianas: o nada" (Lukács). Esse nada transcendente é o fundamento único de todo existente; em conseqüência, mesmo sendo um observador, um narrador de extraordinária vividez no detalhe, na minúcia de cada cena, Kafka não nega com isso a constatação da ausência de sentido deste mundo, a que um transcendente aniquilado e aniquilador retirou para sempre qualquer significação. Tudo neste nosso mundo é, para Kafka, fantasmagórico. A realidade concreta não passa de espectro. Eis a razão porque mesmo a cena mais banal desperta tanta atenção de Kafka – precisamente por seu caráter de pesadelo, de sonho absurdo, de história do outro mundo, em suma: de episódio fantástico. A transcendência, sendo nada, aniquila o sentido deste mundo e dos projetos humanos. A consciência alegórica, que se representa esse universo, é prisioneira e passiva, consciência congelada e melancólica, privada de iniciativa e de liberdade. O surgimento do "mundo invertido" é o sintoma corrente da subtração da finalidade (subtração do projeto humano) a que a transcendência submeteu a terra. A consciência antropomórfica da angústia vê isso como "rebelião dos meios". O estilo fantástico ancora nessa visão, já descrita por Sartre. A literatura do absurdo ultrapassa a consciência do mundo sem sentido em sua forma antropológica, de modo que, em lugar de representar uma rebelião dos utensílios, simplesmente se representa esse universo na própria razão da aparente revolta dos meios, ou seja: na sua absoluta carência de sentido. Mas, a partir da apreensão, pela consciência, do sintoma da rebelião dos utensílios e da metamorfose do homem sem projeto em simples instrumento, tudo aparece como insólito, ainda o mais banal e mais vulgar, porque o universo em que essa "rebelião" se dá, o mundo em que irrompe essa inversão da legalidade natural, é um mundo fechado, completo, homogeneamente fantástico. Porque tudo parece estranho, cada cena e cada singularidade provoca intensamente a atenção do narrador. A vividez narrativa de Kafka – a lucidez minuciosa de seu estilo – não é portanto casual. Em relação à alegoria, base da literatura do fantástico, esse amor pelo detalhe não é uma contingência: também ele faz parte da essência da alegoria, e igualmente encontra razão no próprio núcleo do fantástico.

« A técnica da representação simbólica já pertence a uma outra visão. O símbolo é, goetheanamente, o universal no concreto. Em termos hegelianos e lukacsianos, confunde-se com a manifestação no estilo da categoria estética da particularidade, que é o ponto nodal do processo dialético e da passagem do singular ao universal (e vice-versa). Particular, típico ou simbólico será o personagem (ou a imagem lírica) que, sem deixar de oferecer características concretas e presença material, representa a concentração, num exemplo, das tendências gerais do dinamismo histórico e da temporalidade objetiva. E porque essas tendências raramente estão isentas de contradição, o típico simbólico não sustenta a figuração de um mundo homogêneo, mas sim de um universo heterogêneo, campo de contrários, área mista, terreno onde coexistem diversos pólos opostos em contínuo movimento e variadas posições.

« A distinção entre uma literatura do fantástico e uma literatura do visionário está potencialmente confirmada pelos modernos estudos a que, sob a influência do processo de revisão do maneirismo como estilo cultural, a crítica moderna submeteu o conceito de literatura (e de arte) do grotesco. Exponencial, entre esses estudos, é o livro de Wolfgang Kayser, Das Groteske, de 1957. Kayser propôs a arte grotesca como revelação de um mundo sem sentido, e da desorientação humana frente a ele. As deformações grotescas indicariam a insignificação do mundo. Por isso mesmo, as distorções que, por mais aberrantes, ainda possuam certa orientação satírica, derivada do desejo de censurar os desvios de conduta e os vícios da ação do homem, não seriam verdadeiramente grotescas. O universo infernal de Bosch, por exemplo – que encontra sentido numa interpretação cristã do ser – não configura o grotesco autêntico, exatamente porque Bosch, por mais que pinte aberrações, é ainda senhor de uma compreensão e de uma inteligência do mundo; ao passo que o universo de Brueghel, já liberado de coordenadas explicativas, denunciaria, não o infernal (que supõe o celestial), mas sim o puro sinistro (que só supõe o absurdo). Em nossos termos, Bosch, pintor do pecado, seria um visionário; quanto a Brueghel, deformador solitário, intérprete sem chave conhecida da existência, seria já um fantástico. Bosch, sobrevivência medieval, ainda detém a segurança da visão cristã; Brueghel, artista problemático do estilo problemático que foi o maneirismo, já não conserva nem mesmo o refúgio de uma tal certeza. Aproveitando o exame de Kayser, é possível distinguir de forma equivalente entre Hoffmann e Kafka, ou seja, entre as alucinações do romantismo e as fantasmagorias da literatura moderna.

« Seria fácil demonstrar que essa fronteira se dá também na arte contemporânea. Depois do cortante estudo de Sartre sobre Wols (em Situations IV, 1964, originalmente prefácio a um volume de desenhos e aquarelas do pintor), seria tranqüilo repetir, entre Wols e Klee, o mesmo jogo diferenciador que se armou entre Brueghel e Bosch. Com efeito: para Paul Klee, para além da aparência sensível dos objetos, o ato de criação artística estabelece um comércio vivo entre pintor e modelo, de modo que um revela o outro, ambos participantes de uma mesma totalidade dinâmica. "Le Voyant est chose vue, la Voyance s’enracine dans la visibilité", diz Sartre: o pintor supera a aparência sensível imediata percebendo uma união de essência entre ele próprio e seu modelo; e, simultaneamente, o mundo exterior lhe fornece essa visão, em que objeto e sujeito devolvem um ao outro o seu reflexo. As formas abstratas são para Klee o resultado de uma contínua observação da natureza; mas a grande revelação do cosmos ao artista é a de que todos os seres podem servir de símbolo de um processo, de signo do movimento do universo, que o pintor descobre em si e prolonga por sua obra. Desse ângulo, o ser se define pela praxis criadora. Parte de um tal todo, sua participação é funcionalmente ativada pelo artista. A arte de Klee, agudamente denominada "realismo operatório", é uma disciplina onde se impõe a consideração da função dinâmica sobre a da forma acabada, onde "se aprende a reconhecer as formas subjacentes, a pré-história do visível" (Jean-Louis Perrier). Para Klee, o mundo é um perpétuo a fazer: visão cristã e fáustica da realidade. A seu lado, Wols é um nirvanista oriental, um fugitivo de toda ação. Seus preceitos são a apologia da passividade: "a cada instante, em cada coisa, existe a Eternidade"; "quando se vê, não é preciso nos encarniçarmos sobre o que se poderia fazer com o que se vê, mas apenas ver o que é". O mundo de Wols não é uma totalidade que o artista contribui para unificar, é uma unidade incriada, "feita" de uma vez por todas. Klee age sobre o ser; Wols padece os objetos. A teoria do conhecimento de Wols, de colorido ético-oriental, é precisamente a atitude epistemológica de Schopenhauer, de quem Cassirer disse genialmente que foi a primeira a substituir a apreensão do real pelo padecimento do mundo. O indivíduo, o homem, a ordem reconhecida das coisas, tudo perde com Wols a sua identidade originária; tudo se dana e se aniquila. O visionário Klee pinta o universo do múltiplo e dinâmico; o fantástico Wols, tornando todo objeto incaracterístico, indefine tudo para a submersão final no Uno estático, imovelmente existindo sobre a nossa abdicação do gesto, do querer e do fazer. A diferença entre ambos sela a sorte do abstracionismo contemporâneo, que passou de fáustico a ascético, do construtivismo à renúncia "lírica".»

_______

MURILO MENDES: ou a poética do visionário, in Razão do poema, de José Guilherme Merquior.

Claude Lévi-Strauss habla de Goiânia y de otras ciudades brasileñas

Claude Lévi-Strauss

« En esas ciudades de síntesis del Brasil meridional, la voluntad secreta y testaruda que se revela en el emplazamiento de las casas, en la especialización de las arterias, en el estilo naciente de los barrios, parecía tanto más significativa cuanto que, contrariándolo, prolongaba el capricho que había dado origen a la empresa. Londrina, Nova-Dantzig, Rolandia y Arapongas — nacidas de la decisión de un equipo de ingenieros y financieros — volvían suavemente a la concreta diversidad de un orden verdadero, como un siglo antes lo había hecho Curitiba, y como quizás hoy lo hace Goiánia.

« Curitiba, capital del Estado de Paraná, apareció en el mapa el día en que el gobierno decidió hacer una ciudad: la tierra que se adquirió a un propietario fue cedida en lotes lo suficientemente baratos como para crear una afluencia de población. El mismo sistema se aplicó más tarde para dotar de una capital — Belo Horizonte — al Estado de Minas. Con Goiánia se arriesgaron aún más, pues el primer objetivo había sido el de fabricar la capital federal del Brasil a partir de la nada.

« Aproximadamente a un tercio de la distancia que separa, a vuelo de pájaro, la costa meridional del curso del Amazonas, se extienden vastas mesetas olvidadas por el hombre desde hace dos siglos. En la época de las caravanas y de la navegación fluvial podían atravesarse en unas semanas para remontarse desde las minas hacia el norte; así se llegaba a la ribera del Araguaia, y por él se bajaba en barca hasta Belém. Único testigo de esta antigua vida provinciana, la pequeña capital del Estado de Goiás, que le dio su nombre, dormía a 1000 kilómetros del litoral, del que se encontraba prácticamente incomunicada. En un paraje rozagante, dominado por la silueta caprichosa de los morros empenachados de palmas, calles de casas bajas descendían por las cuchillas, entre los jardines y las plazas donde los caballos transitaban ante las iglesias de ventanas adornadas, mitad hórreos, mitad casas con campanarios. Columnatas, estucos, frontones recién castigados por la brocha con un baño espumoso como clara de huevo y teñido de crema, de ocre, de azul o de rosa, evocaban el estilo barroco de las pastorales ibéricas. Un río se deslizaba entre malecones musgosos, a veces hundidos bajo el peso de las lianas, de los bananeros y de las palmeras que habían invadido las residencias abandonadas; éstas no parecían marcadas con el signo de la decrepitud; esa vegetación suntuosa agregaba una dignidad callada a sus fachadas deterioradas.

« No sé si hay que deplorar o regocijarse con lo absurdo: la administración había decidido olvidar Goiás, su campiña, sus cuestas y su gracia pasada de moda. Todo ello era demasiado pequeño, demasiado viejo. Se necesitaba una tabla rasa para fundar la gigantesca empresa con la que soñaban. Se la encontró a 100 kilómetros hacia el este, en la forma de una meseta abierta sólo por pasto duro y zarzales espinosos, como azotada por una plaga que hubiera destruido toda fauna y toda vegetación. Ningún ferrocarril, ninguna carretera conducía a ella, sino tan sólo caminos adecuados para los carros. Se trazó en el mapa un cuadrado simbólico de 100 kilómetros de lado, correspondiente a ese territorio, sede del distrito federal, en cuyo centro se levantaría la futura capital. Como no había allí ningún accidente natural que importunara a los arquitectos, éstos pudieron trabajar en el lugar como si lo hubieran hecho sobre planos. El trazado de la ciudad se dibujó en el suelo; se delimitó el contorno y dentro de él se marcaron las diferentes zonas: residencial, administrativa, comercial, industrial y la reservada a las distracciones; éstas son siempre importantes en una ciudad pionera: hacia 1925, Marilia, que nació de una empresa semejante, sobre 600 casas construidas contaba con casi 100 prostíbulos, en su mayoría consagrados a esas francesinhas que con las monjas constituían los dos flancos combatientes de nuestra influencia en el extranjero; el Quay d’Orsay lo sabía muy bien y todavía en 1939 dedicaba una fracción sustancial de sus fondos secretos a la difusión de las revistas “ligeras”. Algunos de mis colegas no me desmentirán si hago recordar que la fundación de la Universidad de Rio Grande do Sul, el Estado más meridional del Brasil, y la preeminencia que allí se dio a los maestros franceses, tuvieron por origen el gusto por nuestra literatura y nuestra libertad que una señorita de virtud ligera inculcó a un futuro dictador, en París, durante su juventud.

« De la noche a la mañana los diarios se llenaron de carteles que ocupaban páginas enteras. Se anunciaba la fundación de la ciudad de Goiánia; en torno de un plano detallado, tal como si la ciudad hubiera sido centenaria, se enumeraban las ventajas que se prometían a los habitantes: vialidad, ferrocarril, derivación de aguas, cloacas y cinematógrafos. Si no me equivoco, al principio, en 1935-1936 hasta hubo un período en que la tierra era ofrecida en primer lugar a los adquisidores que pagaban las costas. Pues los abogados y los especuladores eran los primeros ocupantes.

« Visité Goiánia en 1937. Una llanura sin fin con algo de terreno baldío y de campo de batalla, erizada de postes eléctricos y de estacas de agrimensura, que dejaba ver unas cien casas nuevas dispersas en todas direcciones. La más importante era el hotel, paralelepípedo de cemento que, en medio de semejante llanura, parecía un aeropuerto o un fortín. De buen grado se le hubiera podido aplicar la expresión «baluarte de la civilización» en un sentido no figurado sino directo, que así empleado tomaba un valor singularmente irónico, pues nada podía ser tan bárbaro, tan inhumano, como esa empresa en el desierto. Esa construcción sin gracia era lo contrario de Goiás; ninguna historia, ninguna duración, ninguna costumbre había saturado su vacío o suavizado su dureza; uno se sentía allí como en una estación o en un hospital, siempre pasajero, jamás residente. Sólo el temor a un cataclismo podía justificar esta casamata. En efecto, se había producido uno y su amenaza se veía prolongada en el silencio y la inmovilidad que reinaba. Cadmo, el civilizador, había sembrado los dientes del dragón. Sobre una tierra desollada y quemada por el aliento del monstruo se esperaba que los hombres avanzaran.»

________

Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss.

(Traduzido do francês ao espanhol por Noelia Bastard.)

Johann Wolfgang von Goethe: trechos do Diário de Otília

Goethe

“O melhor consolo para o medíocre é pensar que o homem de gênio também é mortal.”

* * *

“Na vida toma-se a pessoa pela aparência, mas é preciso que aparente alguma coisa. São mais bem suportados os importunos que os insignificantes.”

* * *

“Pode-se impor tudo à sociedade, menos o que tiver conseqüência.”

* * *

“Não conhecemos os homens, quando vêm ao nosso encontro; é preciso ir ao encontro deles para sabermos o que eles verdadeiramente são.”

* * *

“A convivência com senhoras é a base dos bons costumes.”

* * *

“Não há nenhum sinal exterior de cortesia, que não contenha sólida base de moral. A verdadeira educação seria a que prendesse a causa ao gesto.”

* * *

“A conduta é um espelho no qual cada um reflete sua imagem.”

* * *

“Há uma cortesia do coração, que é parenta do amor. Dela emana a mais natural urbanidade da conduta exterior.”

* * *

“Uma dependência voluntária é o mais belo estado; e como seria isso possível sem amor?”

* * *

“Nunca nos afastamos tanto dos nossos desejos, como quando julgamos possuir o objeto desejado.”

* * *

“Ninguém mais escravo que aquele que se julga livre sem sê-lo.”

* * *

“Basta que nos declaremos livres para que, no mesmo instante, nos sintamos escravizados. Se ousamos declarar-nos dependentes, sentimo-nos livres.”

* * *

“Contra grandes superioridades de segunda, o único meio de salvação é o amor.”

* * *

“Situação insuportável para um homem superior: ver tolos vangloriarem-se diante dele.”

* * *

“Ninguém é herói para seu camareiro, costuma-se dizer. Mas isso é porque o herói só é reconhecido por outro herói. É muito provável que o camareiro saiba apreciar outro camareiro.”

* * *

“Os maiores homens estão sempre ligados ao seu século por alguma fraqueza.”

* * *

“Geralmente julgamos os homens mais perigosos do que realmente são.”

* * *

“Os nécios e os sensatos são igualmente inofensivos. Somente os semiloucos e os semiprudentes são perigosos.”

* * *

“A arte é o recurso mais seguro de o homem evitar o mundo e nela está o meio mais eficaz de se ligar a ele.”

* * *

“Até no auge da ventura e da maior desgraça sentimos necessidade do artista.”

* * *

“A arte se ocupa do que é difícil e do que é bom.”

* * *

“Quando vemos o difícil ser facilmente executado, temos a impressão do impossível.”

* * *

“As dificuldades aumentam quanto mais nos aproximamos da meta.”

* * *

“Semear não é tão difícil quanto colher.”

_______

Afinidades Eletivas, de Johann Wolfgang von Goethe.

“A visita do casal”, uma crônica de Rubem Braga

Rubem Braga

Um casal de amigos vem me visitar. Vejo que sobem lentamente a rua. Certamente ainda não me viram, pois a luz do meu quarto está apagada.

É uma quarta-feira de abril. Com certeza acabaram de jantar, ficaram à toa, e depois disseram: vamos passar pela casa do Rubem? É, podemos dar uma passadinha lá. Talvez venham apenas fazer hora para a última sessão de cinema. De qualquer modo, vieram. E me agrada que tenham vindo. Da-me prazer vê-los assim subindo a rua vazia e saber que vêm me visitar.

Penso um instante nos dois; refaço a imagem um pouco distraída que faço de cada um. Sei há quantos anos são casados, e como vivem. A gente sempre sabe, de um casal de amigos, um pouco mais do que cada um dos membros do casal imagina. Como toda gente, já fui amigo de casais que se separaram. É tão triste. É penoso e incômodo, porque então a gente tem de passar a considerar cada um em separado – e cada um fica sem uma parte de sua própria realidade. A realidade, para nós, eram dois, não apenas no que os unia, como ainda no que os separava quando juntos. Havia um casal; quando deixa de haver, passamos a considerar cada um, secretamente, como se estivesse com uma espécie de luto. Preferimos que vivam mal, porém juntos; é mais cômodo para nós. Que briguem e não se compreendam, e não mais se amem e se traiam; mas não deixem de ser um casal, pois é assim que eles existem para nós. Ficam ligeiramente absurdos sendo duas pessoas.

Como quase todo casal, esse que vem me visitar já andou querendo se separar. Pois ali estão os dois juntos. Ele com seu passo largo e um pouco melancólico, a pensar suas coisas; ela com aquele vestido branco, o conhecido que “me engorda um pouco, chi, meu Deus, estou vendo a hora que preciso comprar esse livro Coma e Emagreça, meu marido vive me chamando de bola de sebo, você acha, Rubem?".

Eu gosto do vestido. Quanto a ela própria, eu já a conheço tanto, nesta longa amizade, em seus encantos e em seus defeitos, que não me lembro de considerar se em conjunto é bonita ou não, e tenho uma leve surpresa sempre que ouço alguma opinião de uma pessoa estranha; não uso imaginar qual seria minha impressão se a visse agora pela primeira vez. “Ele diz que eu tenho corpo de mulata, você acha, Rubem? Diz que quando engordo minha gordura vem toda parar aqui" – e passa as mãos nas ancas, rindo. “Nesse negócio de corpo de mulata você deve mesmo consultar o Rubem, mulher.” Um gosta de mexer com o outro falando comigo. “Você já reparou nessa camisa dele? Fale francamente, você tinha coragem de sair na rua com uma camisa assim?"

Penso essas bobagens em um segundo, enquanto eles se aproximam da minha casa. Na tarde que vai anoitecendo tem alguma coisa tocante esse casal que anda em silêncio na rua vazia; e eu sou grato a ambos por me visitar. Estou meio comovido.

A campainha bate. Acendo a luz e vou lhes abrir a porta e também discretamente, o coração. “Quase que não batemos, vimos a luz apagada. O que é que você faz aí no escuro?"

Digo que nada, às vezes gosto de ficar no escuro. “Eu não disse que ele era um morcegão?"

Sou um morcegão cordial; trago um conhaque para ele e um vinho do Porto para ela.

Maio,1949.

_______

“A visita do casal” (in 200 Crônicas Escolhidas), de Rubem Braga.

Monteiro Lobato fala sobre os Amigos do Brasil

Monteiro Lobato

Amigos do Brasil! Pois há disso? Há. Houve e há estrangeiros que se apaixonam das nossas coisas, vêm estudá-las e de volta às suas terras dão-se ao sentimentalismo de querer bem ao país onde a primavera e o estado de sítio são eternos.

O saudoso e recém falecido J. C. Branner, reitor da Universidade de Stanford, estudou na mocidade a nossa geologia e de regresso, até o fim da vida, conservou-se um amigo do Brasil. Quando publiquei meu primeiro livro recebi dele uma carta que conservo como prêmio. Discutia a “geringonça”, ou gíria como dizemos hoje, e falava disso com a segurança do homem de ciência para o qual tudo quanto representa criação tem valor.

Na Alemanha tivemos sempre inúmeros amigos, a partir do grande Martius. Hoje também os temos e um deles é o Dr. Frederico Sommer, que se empenha em verter e lá publicar os livros mais característicos da nossa literatura.

Até na França, tão de si própria, temos amigos. Mr. Le Gentil dedica-se a estudos brasileiros e em companhia de M. Gahisto, Martinenche e outros mantém na Revue de l’Amerique Latine uma seção dedicada amorosamente ao Brasil. Não contentes, criaram na Sorbonne um centro de estudos brasileiros e cuidam agora de constituir uma biblioteca de livros brasileiros. Tudo isto sem subvenções, à custa de enormes esforços e ao arrepio da nossa muçulmana indiferença. (Aviso aos autores de livros: essa biblioteca da Sorbonne aceita com grande prazer e pede a remessa de obras nacionais para lá, sobretudo as científicas. Endereço: Mr. Le Gentil, Centro de estudos portugueses, Sorbonne, Paris).

Outro, de nome menos conhecido entre nós, é Mr. Jean Turiau (Boulevard Murat, 29, XVIme). Já residiu no Brasil, conhece as nossas coisas e as rememora com saudades. O Brasil é uma coisa deliciosa vista assim de longe. Um meu amigo, grande patriota, dizia sempre: — Meu ideal é a diplomacia. Viver do Brasil mas longe dele, de modo a sentir sempre doces saudades da pátria, que delícia!

Mas Turiau quer bem a isto aqui e gostos não se discutem. Trabalha em traduções e vai tornando conhecida em França a nossa esfarrapada literatura. Na última carta que me escreveu lamenta-se da sua situação de funcionário público, como toda gente em França, situação que lhe não permite adquirir obras sobre o Brasil. E chora por uma Rondônia, por uma História do Brasil, de Rocha Pombo, trop chère… (Aviso aos srs. Roquette Pinto e a Rocha Pombo: não percam a oportunidade de um tal leitor. Nada há mais raro e que mais honre a um escritor do que um bom leitor).

A interpenetração literária é o que há de mais profícuo na aproximação dos povos. Só ela suprime as muralhas que a estupidez dos governos ergue. Só ela demonstra que somos todos irmãos no mundo, com as mesmas vísceras, os mesmos defeitos, os mesmos ideais. Se a França tornou-se amada entre nós a ponto de bombardear Damasco e esmagar Abd-el-Krim sem que isso nos arrepie as fibras da indignação, deve-o aos senhores Perrault, Lafontaine, Hugo, Maupassant, Taine, Anatole e quantos mais nos trouxeram para aqui esta sensação da irmandade do homem. Se a Alemanha não se gozou de idênticas simpatias é que víamos os atos de violência dos seus homens de governo e não havia dentro de nós, para atenuar-lhes a repercussão, o coxim de veludo da literatura alemã bem absorvida como temos a francesa.

Grande serviço, pois, prestam aos povos esses homens beneméritos que trabalham na difusão da literatura alheia em seus próprios países. Estão a preparar os preciosos coxins de veludo, amortecedores dos choques. Criam a compreensão e a tolerância. Demonstram, com a exibição de documentos humanos, que somos iguais, todos filhos do mesmo macaco que rachou a cabeça ao cair do pau.

Mas o nosso descaso é imenso. Nenhuma livraria do Rio, por exemplo, tem à venda essa revista da América Latina. Por que? Não há procura. Estupidificados pelo estado de sítio crônico, parece que um desalento nos ganhou a todos, um desânimo de tudo, indiferença de chim.

Se alguma coisa valesse alguma coisa nesta terra: eis a frase com que um jornalista traduz tal estado d’alma. Frase horrível, reflexo do desespero do desânimo, e, no entanto, lógica, sempre que um povo perde a sua liberdade e tomba no boçalismo da escravidão. Mas tudo passa. Depois da noite vem o dia. Depois da Idade Média vêm os 89. Tolice é desesperar. Esperemos, e enquanto esperamos não contaminemos com o nosso desalento de escravos os abnegados pioneiros das nossas letras em França. É noite? Não importa. Também de noite se trabalha e não há trabalho mais abençoado do que o que se faz dentro da noite para apressar a vinda do dia claro. E é trabalhar para um dia melhor meter mãos à obra da difusão literária.

Os morcegos passam e os livros ficam.

_______

Na Antevéspera, de Monteiro Lobato.

“O assassino” — um conto de Arthur Schnitzler

Arthur Schnitzler - 1878

Um jovem, doutor em direito canônico e romano, sem exercer sua profissão, órfão de pai e mãe, vivendo em circunstâncias confortáveis, benquisto por sua agradável companhia, estabelecera havia mais de um ano uma relação com uma moça de origem humilde, que, sem parentes como ele, não tinha necessidade de levar em consideração a opinião alheia. Logo no início do relacionamento, menos por bondade ou paixão do que pela necessidade de gozar sua felicidade da forma mais tranqüila possível, Alfred levara a amante a deixar seu emprego como balconista numa respeitada loja vienense. Mas, depois que, durante longo tempo, embalado pela grata ternura da amante e pelo mais confortável gozo da liberdade comum, se sentira melhor do que durante qualquer relacionamento amoroso anterior, começou a sentir paulatinamente aquela inquietude promissora, sua velha conhecida, que, em outros casos, lhe prenunciava o fim iminente da relação amorosa, um fim que, neste caso, parecia não ser ainda previsível. Já estava se vendo, em sua mente, como companheiro de sina de um amigo de juventude que, envolto fazia anos num relacionamento similar, era obrigado a levar agora uma vida retirada e limitada, como enfadado pai de família; e algumas horas, que sem intuições dessa espécie lhe teriam oferecido o mais puro dos prazeres, ao lado de um ser tão gracioso e suave como Elise o era, começaram a lhe causar enfado e sofrimento. Embora tivesse a capacidade e, fato ao qual gostava de atribuir maior valor ainda, a deferência de não deixar Elise nada notar desses estados de alma, eles possuíam, todavia, o poder de fazê-lo procurar novamente com maior freqüência os círculos da alta burguesia, dos quais havia se afastado quase que por completo no decorrer do último ano. E quando, por ocasião de uma festa dançante, uma dama muito cortejada, filha de um próspero industrial, veio a seu encontro com surpreendente amabilidade, fazendo-o ver muito subitamente uma possibilidade fácil de estabelecer uma relação que fosse mais adequada à sua posição social e à sua fortuna, começou a sentir aquela outra, que havia começado como uma aventura alegre e desembaraçada, como um incômodo grilhão de que um jovem de seus méritos poderia se desvencilhar sem escrúpulos. Contudo, a sorridente calma com que Elise sempre tornava a recebê-lo, sua entrega sempre igual nas horas em que estavam juntos e que agora iam se tornando mais escassas, a ingênua segurança com que ela o deixava partir de seus braços para um mundo que lhe era desconhecido, tudo isso não apenas afastava de seus lábios, todas as vezes, as palavras de despedida, antes sempre prestes a serem proferidas, mas também o enchia de uma espécie de torturante compaixão, cujas manifestações quase inconscientes só poderiam parecer, a uma mulher tão crédula como Elise, novos e mais densos sinais de sua inclinação. E assim a coisa chegou a um ponto em que Elise acreditava ser adorada por ele, de forma mais cálida do que nunca, justamente nas ocasiões em que ele voltava de um encontro com Adele; quando ele, agitado pela lembrança de olhares doces e interrogativos, apertos de mão cheios de promessas e, finalmente, em meio à embriaguez dos primeiros beijos escondidos, voltava para aquela casa dedicada só a ele e a seu amor; e em lugar de despedir-se com um adeus, como se dispusera a fazer ainda no limiar da porta, Alfred deixava a amante todas as manhãs com novas juras de eterna fidelidade.

Assim passaram-se os dias entre as duas aventuras; finalmente só restou a decisão sobre qual anoitecer seria mais apropriado para a inevitável explicação a Elise; a saber, se seria a noite anterior ao noivado com Adele, ou a seguinte; e na primeira dessas duas noites, como ainda ficara um prazo pela frente, Alfred compareceu à casa da amante num estado de espírito quase tranqüilizado pelo hábito desse seu jogo duplo.

Encontrou-a pálida, como nunca a vira antes, recostada num canto do divã; ela também não se ergueu como de costume quando de sua entrada, para oferecer-lhe testa e os lábios aos beijos de boas-vindas, mas mostrou um sorriso cansado, um pouco forçado, de tal forma que, simultaneamente com uma sensação de alívio, cresceu em Alfred a conjetura de que a notícia de seu iminente noivado tivesse chegado até ela, não obstante todas as precauções, seguindo o caminho enigmático de todos os boatos. Mas, apesar de todas as precipitadas perguntas, nada ficou sabendo a não ser que Elise, de tempos em tempos, sofria de espasmos no coração, fato que ela ocultara até então, e que desses espasmos em geral ela rapidamente se restabelecia; só que, dessa vez, seus efeitos ameaçavam ser mais duradouros do que nunca. Alfred, consciente de suas intenções culposas, ficou tão tocado com estas revelações que exagerou em suas manifestações de compaixão e bondade; e, antes da meia-noite, sem compreender como poderia ter chegado tão longe, havia desenvolvido com Elise o plano de uma viagem em comum, durante a qual ela encontraria com certeza a cura para aqueles desagradáveis ataques.

A amizade e o entusiasmo pela vida

urantia

"O isolamento tende a exaurir a carga de energia da alma. A associação com os semelhantes é essencial para a renovação do gosto pela vida e é indispensável à manutenção da coragem para lutar nas batalhas conseqüentes da ascensão aos níveis mais elevados da vida humana. A amizade intensifica as alegrias e glorifica os triunfos na vida. As ligações humanas de amor e intimidade tendem a aliviar o sofrimento das penas da vida e a dificuldade de muitas amarguras. A presença de um amigo acentua toda a beleza e exalta toda a bondade. Por meio de símbolos inteligentes, o homem torna-se capaz de vivificar e aumentar as capacidades de apreciação dos seus amigos. Uma das glórias que coroam as amizades humanas é esse poder e possibilidade de estímulo mútuo da imaginação. Um grande poder espiritual é inerente à consciência da devoção, de todo o coração, a uma causa comum, à lealdade mútua a uma Deidade cósmica."

_________

The Urantia BookDocumento 160: Rodam de Alexandria

Page 53 of 82

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén