palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Filosofia Page 6 of 9

Roger Scruton diz por que a beleza importa

Um documentário imperdível do filósofo Roger Scruton, que trata da perda do sentido do belo em nossa época. (Para ativar as legendas, clique no ícone “cc”.)

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O Outsider: o drama moderno da alienação e da criação – Colin Wilson

Colin Wilson

« A obra de T. E. Lawrence introduziu novas implicações em nosso estudo dos “problemas do Outsider”, que ficarão mais claros ao revermos o caminho percorrido até agora. Lawrence tem características em comum com todos os Outsiders que comentamos, e nele podemos ver o ponto para onde alguns deles tendiam.

« Com Barbusse, pudemos ver que o problema do Outsider é o problema da negação da auto-expressão. Isso nos leva a perguntar se o Outsider é, conseqüentemente, um problema meramente sociológico. A introdução, no folheto de H. G. Wells, de um aspecto claramente não-sociológico nos levou, naturalmente, a Roquentin, onde constatamos que o problema é, de fato, metafísico.

« Camus e Hemingway ressaltaram a sua natureza prática. É o problema de viver; o problema de esquema ou finalidade da vida. O Outsider é aquele que não pode aceitar a vida tal como ela é, que não pode considerar sua existência, ou a de qualquer outro, como necessária. Ele vê “muito fundo, e demais”. É ainda uma questão de auto-expressão.

« Em The Secret Life vemos o Outsider separado das outras pessoas por uma inteligência que impiedosamente destrói os valores delas e o impede de se expressar pela incapacidade de recolocar novos valores. Seu problema é de “Vanitatum vanitas” do Eclesiastes; nada vale a pena ser feito.

« O Outsider romântico ampliou a abordagem ao mostrar que o problema não é necessariamente de homens desiludidos. Em um nível diferente, o romântico vive o problema em seu esforço por dar corpo ao ideal romântico. A conclusão de Hesse foi: mais auto-análise, “para atravessar de novo o inferno do ser interior”. O Outsider precisa se conhecer mais. Isso implica o caminho de Roquentin e o caminho de Mersault; o caminho da análise metafísica e o caminho da aceitação da vida física. Mas o fracasso final, tanto de Goldmund como do Magister Ludi, os caminhos da carne e do espírito, nos deixam diante da afirmação de Strowde: Nada vale a pena ser feito, nenhum caminho é melhor do que outro.

« É T. E. Lawrence quem finalmente indica o caminho da saída para o impasse. Os outros aceitaram como um problema de uma única variável, por assim dizer. Um “caminho” precisa ser procurado. A questão “um caminho para quem?” seria respondida por Roquentin ou Strowde: “Um caminho para mim, obviamente”. Lawrence deu um grande passo à frente: “Você não é o que pensa ser”. Em vez de dizer: Nada vale a pena ser feito, dever-se-ia dizer: “Eu não sou digno de fazer qualquer coisa”. A pergunta de Oliver Gauntlett: “Onde está o inimigo?” foi respondida por Lawrence: “Você pensa que é você”. A verdadeira guerra de Oliver é a guerra contra si mesmo. Lawrence estabeleceu a distinção vital em uma sentença: “De fato, não gostava daquele eu mesmo que eu podia ver e ouvir”. “Ele não é ele mesmo”, dissera o professor de Kennington. Lawrence não se divide em duas partes como Haller para depois dizer: “O homem odeia o lobo”. Lawrence odiava o complexo todo de corpo, mente, emoções, e suas idéias a respeito de si mesmo que constituíam uma proteção constante, sufocante, em torno de seus impulsos vitais.

« Esta é uma situação que de forma alguma é desconhecida dos santos e dos místicos; a infelicidade de Lawrence é não ter encontrado, até agora, um biógrafo qualificado para tratar de seus conflitos espirituais. As noções correntes de um “enigma de Lawrence” culminaram com a tentativa feita por Aldington de explicar Lawrence em termos da inadequada psicologia de Freud. Mas o “enigma de Lawrence” foi esclarecido por ele mesmo em The Seven Pillars. O homem não é uma unidade; é muitas. Entretanto, para que qualquer coisa valha a pena ser feita, é preciso que ele se torne uma unidade. O reino dividido precisa ser unificado. A enganosa visão de personalidade que nossa civilização ocidental promove e glorifica aumenta a divisão interior; Lawrence reconheceu isto como sendo o inimigo. Portanto, a guerra contra esta descoberta é, inevitavelmente, uma revolta contra a civilização ocidental.

« O feito de Lawrence nos leva mais adiante ainda. A guerra não deve ser travada pela mera razão. A razão deixa a personalidade à vontade em seu próprio campo. O poder da vontade é imenso quando apoiado pela intenção moral. O único papel da razão é o de estabelecer a intenção moral pela auto-análise. Uma vez definido o inimigo, a vontade pode operar e o limite de seu poder sobre o corpo é só o limite da intenção moral que o apóia.

« Se o nosso raciocínio estiver correto, o problema do Outsider não é novo; Lawrence mostra que a história dos profetas de todos os tempos segue um esquema: nascidos numa civilização, eles rejeitam os seus padrões de bem-estar material e se retiram para o deserto. Quando voltam, é para pregar a rejeição do mundo: a intensidade do espírito contra a intensidade da segurança material. As angústias do Outsider são as dores de dente do profeta. Ele se refugia em seu quarto, como uma aranha num canto escuro; vive sozinho, quer evitar as pessoas. “Para os pensadores do deserto, o impulso para Nitria sempre foi irresistível.” Ele pensa, analisa, “desce dentro de si mesmo”: “Não porque provavelmente encontrassem Deus habitando lá, mas porque na solidão eles ouviam melhor a palavra viva que traziam consigo”. Aos poucos a mensagem emerge. Não necessariamente uma mensagem positiva; e por que haveria de ser, se o impulso que impele para ela é negativo — o desgosto?

« O profeta é um homem de integridade espiritual maior que a de seus semelhantes; a tibieza deles o revolta e ele se sente impelido a dizer-lhes isso. Em seu estágio embrionário como Outsider ele não se conhece suficientemente bem para compreender a força propulsora que está por trás de seus sentimentos. Por esta razão, sua maior ocupação está me pensar e não em fazer. Nos Outsiders de que vamos tratar no resto desde livro, observaremos a emergência do elemento distintamente profético que habita o Outsider.»

* * *

(…)

« Hulme considerava o seu Speculations como um prolegômeno à leitura de Pascal. A minha aspiração, ao escrever este estudo sobre o Outsider, era a de fornecer uma introdução a um campo ainda mais vasto, a um campo limitado por Shaw e Gurdjieff, de um lado, e por um protestante ortodoxo como Kierkegaard, ou um católico ortodoxo como Newman, de outro. Com tal objetivo, de fato cobri boa parte do assunto já brilhantemente tratado no livro de Reinhold Niebuhr, Natureza e Destino do Homem e em várias obras de Berdyaev; devo reconhecer minha dívida para com eles bem como para com os impressionantes ensaios de Eliot sobre o humanismo e a atitude religiosa (dívida, aliás, que tenho em comum com muitos outros da minha geração). Revendo o passado, acho que provavelmente nenhum livro de cem mil palavras poderia atingir este objetivo. Se este livro puder servir de estímulo a uma releitura de Shaw, terá cumprido plenamente sua finalidade. Na época em que este livro foi escrito, Shaw sofria um processo de desvalorização sem paralelos desde o esquecimento de Shakespeare no século XVII. Tal desvalorização de um grande mestre religioso seria o pior sintoma possível de nossa época, não fosse o crescente interesse pelos pensadores existencialistas como Berdyaev, Kierkegaard, Camus. Para que a “nova idade religiosa” de Hulme surja antes que nossa civilização se destrua a si mesma, seria necessário um esforço intelectual de gestação que envolvesse todo o mundo civilizado.»

« Restam ainda muitas dificuldades que não podem ser abordadas aqui. O problema que se coloca para a “civilização” é o da adoção de uma atitude religiosa que possa ser assimilada tão objetivamente quanto as manchetes dos jornais de domingo passado. Para o indivíduo, porém, o problema é exatamente o inverso: o esforço consciente de não limitar a quantidade de experiência vista e tocada; o intolerável esforço de expor as áreas sensíveis do ser ao que talvez possa feri-las; a tentativa de ver como um todo, embora o instinto de autopreservação se debata contra a dor da expansão interior, e todos os impulsos de preguiça espiritual se ergam em vagas de sono a cada nova tentativa. O indivíduo inicia esta longa tentativa como um Outsider; e pode terminá-la como um santo.»
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Trecho de O Outsider: o drama moderno da alienação e da criação, de Colin Wilson.

William James e A Vontade de Crer

William James

“(…) uma defesa de nosso direito de adotar uma atitude crente em assuntos religiosos, a despeito do fato de que nosso intelecto lógico meramente possa não ter sido coagido.”

(…)

“[Hipótese viva] é a que se mostra como uma possibilidade real a quem é proposta.”

(…)

[Se uma hipótese é viva, há uma] “tendência a agir por ela”.

(…)

“Nossa natureza passional não somente pode mas deve legalmente decidir quanto a optar entre proposições, sempre quando é uma opção genuína que não pode, por sua natureza, ser decidida em bases intelectuais.”

(…)

“Os absolutistas (…) dizem que nós não somente podemos atingir o conhecimento da verdade, mas que podemos saber quando atingimos o seu conhecimento; ao passo que o empírico pensa que, embora possamos atingi-la, não podemos infalivelmente saber quando. Saber é uma coisa, e saber ao certo o que conhecemos é outra.”

(…)

“A evidência objetiva e a certeza são, sem dúvida, categorias muito elevadas para o trato, mas onde porém, nesse planeta iluminado pela Lua e visitado pelo sonho, podemos encontrá-las?”

(…)

[Há um conflito entre duas leis distintas:] “Devemos conhecer a verdade” e “Devemos evitar o erro”.

(…)

“Quando nos apegamos à idéia de que há uma verdade (seja de que espécie for), fazemo-lo com toda a nossa natureza e resolvemos ficar de pé ou cair por seus resultados. O cético, com toda a sua natureza, adota a atitude duvidosa; qual de nós, porém, é o mais sábio, só Deus o sabe.”

(…)

“Há, então, casos onde um fato não pode vir de todo, a não ser que exista uma fé preliminar em sua vinda. E onde a fé em um fato pudesse ajudar a criar o fato, seria um lógico insano quem dissesse que a fé correndo adiante da evidência científica é a ‘mais baixa espécie de imoralidade’ na qual um ser pensante pode cair.”

(…)

“Nas verdades dependentes de nossa ação pessoal, então, a fé baseada no desejo é certamente uma coisa legal e possivelmente indispensável.”

(…)

“É melhor arriscar a perda da verdade do que a possibilidade de erro: essa é a posição exata de quem veta a fé.”

(…)

“Pregar ceticismo como um dever até que seja encontrada uma ‘evidência suficiente’ para a religião, é equivalente, portanto, a dizer-nos, quando em presença da hipótese religiosa, que ceder ao medo de ser um erro é mais sábio e melhor do que ceder à esperança de que possa ser verdadeira.”

(…)

“Que prova há de que a tapeação através da esperança é muito pior do que aquela através do medo?”

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A Vontade de Crer”, de William James.

Johann Wolfgang von Goethe: trechos do Diário de Otília

Goethe

“O melhor consolo para o medíocre é pensar que o homem de gênio também é mortal.”

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“Na vida toma-se a pessoa pela aparência, mas é preciso que aparente alguma coisa. São mais bem suportados os importunos que os insignificantes.”

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“Pode-se impor tudo à sociedade, menos o que tiver conseqüência.”

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“Não conhecemos os homens, quando vêm ao nosso encontro; é preciso ir ao encontro deles para sabermos o que eles verdadeiramente são.”

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“A convivência com senhoras é a base dos bons costumes.”

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“Não há nenhum sinal exterior de cortesia, que não contenha sólida base de moral. A verdadeira educação seria a que prendesse a causa ao gesto.”

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“A conduta é um espelho no qual cada um reflete sua imagem.”

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“Há uma cortesia do coração, que é parenta do amor. Dela emana a mais natural urbanidade da conduta exterior.”

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“Uma dependência voluntária é o mais belo estado; e como seria isso possível sem amor?”

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“Nunca nos afastamos tanto dos nossos desejos, como quando julgamos possuir o objeto desejado.”

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“Ninguém mais escravo que aquele que se julga livre sem sê-lo.”

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“Basta que nos declaremos livres para que, no mesmo instante, nos sintamos escravizados. Se ousamos declarar-nos dependentes, sentimo-nos livres.”

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“Contra grandes superioridades de segunda, o único meio de salvação é o amor.”

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“Situação insuportável para um homem superior: ver tolos vangloriarem-se diante dele.”

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“Ninguém é herói para seu camareiro, costuma-se dizer. Mas isso é porque o herói só é reconhecido por outro herói. É muito provável que o camareiro saiba apreciar outro camareiro.”

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“Os maiores homens estão sempre ligados ao seu século por alguma fraqueza.”

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“Geralmente julgamos os homens mais perigosos do que realmente são.”

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“Os nécios e os sensatos são igualmente inofensivos. Somente os semiloucos e os semiprudentes são perigosos.”

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“A arte é o recurso mais seguro de o homem evitar o mundo e nela está o meio mais eficaz de se ligar a ele.”

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“Até no auge da ventura e da maior desgraça sentimos necessidade do artista.”

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“A arte se ocupa do que é difícil e do que é bom.”

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“Quando vemos o difícil ser facilmente executado, temos a impressão do impossível.”

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“As dificuldades aumentam quanto mais nos aproximamos da meta.”

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“Semear não é tão difícil quanto colher.”

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Afinidades Eletivas, de Johann Wolfgang von Goethe.

A amizade e o entusiasmo pela vida

urantia

"O isolamento tende a exaurir a carga de energia da alma. A associação com os semelhantes é essencial para a renovação do gosto pela vida e é indispensável à manutenção da coragem para lutar nas batalhas conseqüentes da ascensão aos níveis mais elevados da vida humana. A amizade intensifica as alegrias e glorifica os triunfos na vida. As ligações humanas de amor e intimidade tendem a aliviar o sofrimento das penas da vida e a dificuldade de muitas amarguras. A presença de um amigo acentua toda a beleza e exalta toda a bondade. Por meio de símbolos inteligentes, o homem torna-se capaz de vivificar e aumentar as capacidades de apreciação dos seus amigos. Uma das glórias que coroam as amizades humanas é esse poder e possibilidade de estímulo mútuo da imaginação. Um grande poder espiritual é inerente à consciência da devoção, de todo o coração, a uma causa comum, à lealdade mútua a uma Deidade cósmica."

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The Urantia BookDocumento 160: Rodam de Alexandria

Quatro contribuições brasileiras ao pensamento universal

Olavo de Carvalho

« Mas, como dizia Reinhold Niebuhr, a consciência do homem está sempre um pouco acima da sociedade em que vive. O melhor do que o Brasil guardou para o futuro está nas criações do gênio individual. Ao contrário do que se passa com a língua e com a religião nacionais, elas sobrevivem às perguntas: Qual o valor da contribuição brasileira para a inteligência humana em sua caminhada sobre a Terra? Demos à humanidade algo de que ela realmente necessite, ou limitamo-nos a solicitar sua atenção para as nossas necessidades?

« Na esfera do pensamento — e excluindo portanto as manifestações artísticas, que escapam ao tema do presente capítulo —, o Brasil deu pelo menos quatro contribuições maiores, que sobreviverão à passagem dos séculos. Absolutamente incomparáveis, a sociologia de Gilberto Freyre, o pensamento jurídico e político de Miguel Reale, a obra crítica e historiográfica de Otto Maria Carpeaux e a filosofia de Mário Ferreira dos Santos são os pontos mais altos alcançados pelo pensamento brasileiro no seu esforço de cinco séculos para erguer-se à escala do universalmente humano. Se o povo brasileiro fosse varrido da existência na data de hoje, seria a eles que caberia comparecer em nosso nome ante o trono do Altíssimo para responder à cobrança temível: — Que fizeste dos talentos que te dei?

« As razões que sustentam essa avaliação podem ser resumidas em quatro palavras, que definem as esferas de realização abrangidas por cada uma dessas obras ciclópicas: cada uma delas é, mais que qualquer outra produzida neste país, abrangente, consistente, única e universal. Estes quatro adjetivos não têm apenas uma função enfática e laudatória, mas traduzem critérios precisos:

« 1° Cada uma delas abrange numa visão sintética a totalidade temática e problemática de um determinado campo do conhecimento até o ponto a que este havia chegado, em sua evolução histórica, no momento em que essa obra atingia seu ponto culminante.

« 2° Cada uma delas possui uma unidade orgânica que coere em torno de princípios fundamentais simples a vastidão do campo abrangido.

« 3° Cada uma delas é sem similares que as possam substituir em qualquer outra língua ou cultura.

« 4° Cada uma delas fala aos homens de todos os quadrantes, levando-lhes, desde o Brasil, um conhecimento essencial, a respeito não apenas do Brasil, mas a respeito deles mesmos e do mundo em que vivem. Dito de outro modo: nessas obras e somente através delas entramos plenamente no diálogo universal dos homens, superando o complexo egocêntrico de uma cultura voltada para si mesma.

« Todas elas e somente elas atendem a esses requisitos.

« Se alguém quiser por em dúvida a validade dos quatro critérios, movido por escrúpulos que lhe pareçam muito científicos no que diz respeito à possibilidade de fixar objetivamente o “mais alto” e o “menos alto”, direi que toma suas inibições pessoais como rigores de método.»

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O Futuro do Pensamento Brasileiro – Estudos sobre nosso lugar no mundo, de Olavo de Carvalho.

Mário Ferreira dos Santos: a diferença entre Ética e Moral

Mário Ferreira dos Santos

§ 56 Ao ser humano cabe a frustrabilidade de certos atos, que pode ele fazer ou não. Os animais dizem sempre sim à natureza. O homem, porém, pode dizer não. Nesse “não” está o índice de sua grandeza, a abertura de sua elevação, mas também o primeiro passo para os seus erros. O homem pode frustrar o dever-ser. O dever-ser dos animais é fatal porque eles obedecem aos instintos. Mas o do homem é frustrável, porque ele é inteligente e dispõe da vontade.

§ 57 E por que se dão tais coisas? As razões são simples: o homem não é um ente imutável e eterno. É um ente mutável e temporal. Sua vida é um longo itinerário, um longo drama, porque ele atua e sofre sucessivamente uma longa realização dramática, porque ele age e faz. E como age e faz, ele prefere e pretere. Por isso, ao longo do drama humano, ao longo da sua práxis, da sua prática, o homem avalia valores.

§ 58 Em toda vida prática do homem há a presença dos valores que são julgados, preferidos e preteridos. Onde há ação humana, há a presença do valor, e o que o homem faz ou sofre é conveniente mais ou menos ou não à sua natureza estática, dinâmica e cinematicamente considerada. Em tudo, portanto, há valores, maiores ou menores. E, ademais, o homem dá suprimento de valor ao que lhe convém, como também lhes retira. Supervaloriza ou desvaloriza. Todas estas características do homem são precisamente o que lhe dá o caráter da sua peculiaridade.

§ 59 Mas esses valores são valores do homem, por isso são valores humanos (em grego, valor é axiós e o homem é antropos, daí chamarem-se esses valores de axioantropológicos). Toda vida ativa e factiva do homem (a vida técnica) está cheia da presença dos valores e dos desvalores do homem. Por essa razão, cada ato humano é mais ou menos digno, segundo tenha mais ou menos valor. A dignidade dos atos continuados marca o seu valor.

§ 60 Os atos continuados constituem o costume (o que os gregos chamavam ethos e os latinos mos, moris, de onde vêm Ética e Moral). Os atos éticos ou morais são atos que têm valor, são atos, portanto, que têm dignidade. É eticamente valioso o dever-ser que corresponde à justiça como antes expusemos: é eticamente vituperável, indigno, o ato que ofende a justiça, ou seja, o direito, o que é devido à conveniência da natureza humana, na multiplicidade em que ela pode ser considerada.

§ 61 Assim, toda vida prática do homem gira em torno da Ética. Realmente a vida prática do homem é a vida ativa e a vida factiva, e naturalmente essa vida gira em torno do que é conveniente ou desconveniente. Na ação e na realização da vontade, há apreciações de valores do que convém e do que não convém, conseqüentemente, do dever-ser frustrado e, por isso, giram todas em torno da Ética, que tem de estar presente em todos os atos da vida prática. E prossegue o texto: como disciplina filosófica, esta tem por objeto formal a atividade humana em relação ao que é conveniente ou não à sua natureza. Os atos podem ser assim éticos ou antiéticos, ou então anéticos. Éticos, os que devem ser realizados; antiéticos, os que não deveriam ser realizados; e anéticos, os que nos parecem indiferentes.

§ 62 Portanto, toda vida ativa e factiva (técnica, artística) do homem se dá dentro da esfera ética. Razão tinham, pois, os filósofos antigos que punham o Direito, a Economia, a Sociologia, a Técnica e a Arte como inclusas e subordinadas à Ética, porque os atos humanos estão sempre marcados de eticidade. Esta a razão por que se deve distinguir Ética de Moral. Esta distinção não é arbitrária. Ora, os antigos, ao distinguirem essas disciplinas e as colocarem subordinadas à Ética, não subordinavam totalmente e absolutamente, porque há uma parte de cada uma dessas disciplinas, que é tipicamente própria das disciplinas, que é a sua parte específica. A Ética, então, funcionava em relação a essas disciplinas na mesma relação de gênero para espécie.

§ 63 A Ética estuda o dever-ser humano, a Moral descreve e prescreve como se deve agir para realizar este dever-ser. A Moral é variante, mas a Ética é invariante. Podem os homens, mas assistidos pela intelectualidade, errarem quanto à eticidade de um ato e estabelecer um costume (moral) que nem sempre é conveniente ou é exagerado. Podem errar, porque o homem pode errar, mas se der ele o melhor de sua atenção à Ética, ele não errará e poderia evitar os erros na Moral. É essa a razão por que muitas vezes encontramos diferenças entre a moral e a ética. E muitas vezes vimos que certos costumes de certos povos ofendem a princípios de justiça, porque nem sempre o homem escolhe como modo de proceder (seria o modo moral) aquele que melhor corresponde à realização do dever-ser ético, e às vezes é movido por certas circunstâncias históricas, ambientais, que determinam agir desse modo e não doutro, porque, apesar de não ser benéfico como seria de desejar, é menos maléfico do que de outros modos de proceder. Assim pode-se compreender que certas tribos, em determinadas circunstâncias, se vissem forçadas a liquidar os elementos inválidos que a constituíam, para que sobrassem alimentos suficientes para manutenção dos que tinham maior capacidade de sobrevivência. Este ato eticamente considerado é falho, mas moralmente considerado ele tem uma desculpa, dada as circunstâncias ambientais e históricas daquela tribo. Por isso, muitas vezes a moral pode chocar-se com a ética, e nem sempre a moral conheceria a melhor resposta ou a melhor solução ao dever ético. Nós hoje estamos numa crise, não de ética, estamos numa crise de moral, e esta crise na moral está por uma má visualização da diferença entre moral e ética. Como a moral decai, como a moral não consegue manter as suas normas, porque ela já não corresponde à realidade da vida atual, então quem sofre as conseqüências é a ética, parecendo aos olhos daqueles que não estão preparados, que fazem confusão entre ética e moral, que a ética também se derrui, como se está derruindo a moral, e não é verdade: a ética permanece em pé, a ética é indestrutível, a ética é eterna; a moral é humana, factível, caduca, e por isso ela pode errar. Se a mente humana for bem assistida, ela poderá evitar os erros da moral pela criação de costumes que correspondem melhor ao dever-ser ético.

§ 64 Aqueles que dizem que a Ética é vária porque a Moral é vária, confundiram a Moral com a Ética. Essas confusões provocaram inúmeros mal-entendidos e promoveram muita agitação entre os que desejavam atacar a Ética. Há costumes convenientes e inconvenientes apenas a uma parte da humanidade, mas o que é ético é universal e deve ser aplicado a todos. A Ética deve ser consagrada ao universal. Temos assim a explanação dos diversos aspectos importantes que já salientamos, mas o texto continua e nos vai esclarecendo a pouco e pouco este aspecto genuinamente cristão.

§ 65 Assim, da moral, que surge na vida prática do homem, a mente especulando sobre ela chega à Ética, que é mais especulativa do que prática, porque nela há princípios eternos, enquanto naquela há regras de valores históricos, portanto, mutáveis. Dar a cada um o que é de seu direito é uma norma ética, mas o modo como se proceda, segundo a conveniência humana obediente a esta norma, será uma regra moral. Porque erram os homens na Moral, não se deve negar à Ética o seu valor, porque esta seria uma violentação da inteligência.

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Cristianismo: A Religião do Homem, de Mário Ferreira dos Santos.

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