palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Meus contos Page 4 of 7

De quatro

de quatro

Quando ele a penetrou por trás, ela perguntou:

— Em quem você vai votar?

Ficou aturdido por alguns segundos, sem saber em qual cintura colocar as mãos: na própria ou na dela?

— Que pergunta é essa? — resmungou, contrariado. — Isso lá é hora de falar sobre as eleições?

— Você vai votar na Marina?

Ele brochou instantaneamente.

— Pelo amor de Deus, Sílvia! Isso é coisa que se faça? Acabou com meu tesão.

— Então você vai votar na Dilma, né.

— Puta merda! Agora vou precisar de uma pinça pra poder mijar.

— Nossa, desculpa.

— Desculpa, vírgula. Você teria me atrapalhado muito menos se tivesse falado da menina do Exorcista e virado a cabeça para trás.

— Ai, Jorge, credo! É que eu não sabia que você vai votar no Aécio.

— Eu não voto em progressista, gata! — soltou, irritado. — A não ser, talvez, no segundo turno, quando for necessário votar no menos daninho de todos. Agora pára com isso e me diz algo que me deixe animado de novo.

Ela ficou em silêncio, absorta. Desconfiado, Jorge espiou por cima do ombro dela.

— Ah, não! Não acredito que você está no Facebook! Desliga o celular, cazzo!

— Calma. Só vou responder essa enquete sobre as eleições e já desligo.

Ele se levantou e começou a vestir a cueca.

— Ok, fica aí. Eu vou dormir porque amanhã preciso acordar mais cedo.

Ele se deitou de lado, dando as costas para a esposa, que a essa altura estava postando uma mensagem no grupo feminino do WhatsApp do qual fazia parte: “Gente, se vocês têm um marido conservador que não lhes dá descanso, descobri um jeito de escapulir dele muito melhor do que a desculpa da dor de cabeça!”.

Um site obsceno

laptop

Quando a mulher repentinamente entrou na sala, o marido, num acesso de pânico, bateu a tampa do laptop com tanta força que o frágil fecho de plástico chegou a quebrar-se e cair ao chão.
— O que você tava vendo aí? — perguntou, desconfiada.
— Nada não, meu bem. É que me lembrei que está na hora do jornal — e então esticou-se para pegar o controle da TV.
— Muito estranho isso. Faz tempo que você não se interessa pelas notícias.
Ele deu um sorriso amarelo: — Eu me interesso, sim. Eu não gosto é da abordagem desses telejornais, essa coisa chapa branca.
— Sei…
O marido ligou a TV e começou a zapear entre diversos canais de notícias. Na ânsia de mostrar-se impassível, quase assoviou. Atento, conteve-se a tempo.
— Posso acessar meu email no seu laptop? — tornou a esposa.
Ele fingiu desinteresse: — Ué, e seu celular?
— Está descarregado — a mulher respondeu, sentando-se ao lado dele e tentando pegar o laptop que ele ainda tinha no colo.
Ele esquivou-se: — Não, péra, eu tô logado na minha conta. Preciso terminar de salvar umas coisas na nuvem…
Indignada, pôs-se de pé, as mãos à cintura: — Você tava vendo site pornô, não tava?
O marido arregalou os olhos e, numa fração de segundos, pensou em todos os prós e contras da resposta que lhe veio à mente. Encarou a mulher e viu que ela poderia explodir a qualquer momento. Então teve certeza: aquela era a melhor resposta.
— Sim, meu bem, eu estava assistindo a vários vídeos pornôs.
Frustrada por ouvir o contrário do que esperava — tinha certeza de que ele negaria e então o safado iria ver só uma coisa — sentiu o sangue baixar de temperatura. Mas ainda estava acima do normal.
— Você não tem vergonha?
— Desculpa, meu bem, era só um vídeo básico, um ménage entre um cara, uma garota e um travesti.
Agora foi ela quem arregalou os olhos: — O quê?! Você ficou louco? Um ménage entre quem?
— Um threesome, meu amor.
— Eu sei o que é um ménage! Não foi o que perguntei!
Ele deu o sorriso mais sem graça do mundo: — Tá, meu bem. Era um ménage entre um casal e um travesti.
— Que coisa nojenta! — quase gritou ela, tomando o controle remoto da mão dele e atirando-o em seu rosto.
— Calma, amor.
— Calma, vírgula: meu marido é um pervertido!!
— Vem cá, senta aqui — e ele a abraçou. — Nada disso significa nada na minha vida concreta. A verdade é que venho assistindo a vídeos pornôs há um bom tempo. E é como uma droga, nossa tolerância vai aumentando e então a gente precisa aumentar a dose, ver coisas diferentes.
Ela começou a chorar.
— Calma, meu bem. Nunca fiz nada disso na vida real, nem quero fazer. É só uma droga, já te disse. Agora que você sabe, eu vou dar um jeito de melhorar.
Ela conteve os soluços e, esfregando os olhos, disse com voz quase infantil: — Jura?
— Juro.
Querendo testá-lo, ela disse: — Talvez eu esteja muito distante de você. Ando muito cansada, chego tarde em casa. Você sabe que trabalho demais…
— Tá tudo bem, tá tudo bem…
— Não, não tá tudo bem. A gente podia ir pro quarto agora e brincar um pouco.
Ele sorriu cheio de contentamento: — Claro, vamo lá.
Foram e ela ficou muito feliz, pois ele demonstrou claramente que não tinha nada de gay. Aquele travesti do vídeo devia ser apenas uma espécie de dose a mais de heroína ou cocaína pornográfica, algo que o cérebro dele exigia para liberar mais hormônios prazerosos. Sim, sim, ele realmente falava a verdade. Dizem que o martelar dos mesmos estímulos, no decorrer do tempo, deixa de surtir efeito. Até a pornografia, quando cai na rotina, perde a razão de ser. A mesma tolerância ocasionada pelo uso de drogas… Sim, era isso. E, claro, ela o convenceria a procurar ajuda, talvez um psicólogo ou um AAA para viciados em pornografia. E no final das contas, a coisa toda ao menos provava que ele não tinha nada de transfóbico. Menos mal. Quanto ao marido, bem, ele estava aliviadíssimo. Escapara por pouco. Não fosse essa desculpa extraordinária, a mulher o teria pego no flagra lendo os textos antifeministas do blog Marxismo Cultural. Imagine o inferno que seria!! Ela, as três irmãs, a mãe, as amigas, todas olhando-o com censura, chamando-o de preconceituoso, machista, porco chauvinista, fascista e por aí abaixo. Não, nem pensar.
“Maldito feminismo!”, pensava ele, um sorriso nos lábios, enquanto a esposa, pela primeira vez em meses, finalmente o tratava como um sultão.

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O Pecado Favorito

O advogado do diabo

— Você já assistiu ao filme “O Advogado do Diabo”?

— Aquele com o Al Pacino?

— Esse mesmo.

— Já vi. Por quê?

— Lembra qual a declaração final do Diabo?

— Claro: “A vaidade é definitivamente o meu pecado favorito”.

— Pois é, acho que o pecado favorito do demônio que me atormenta é a luxúria.

— Ah, é bem mais fácil de lidar com esse. Sabe como se faz?

— Não.

— É só dar um chute no saco do demônio.

— Ah, tá certo, me ajudou muito.

— Sério. Posso fazer isso agora mesmo se você quiser.

— Beleza, manda.

E o amigo lhe dá um forte chute no saco, fazendo-o desabar ao chão. Enquanto rola de tanta dor, as mãos segurando os testículos, murmura entre gemidos:

— Seu filho da puta, que brincadeira idiota!

— Mas não foi brincadeira: qual saco você acha que o demônio da luxúria usa?

— Run, Forrest, run!

O amigo sai correndo pela coxia enquanto o outro, gemelhicando, rasteja vagarosamente em seu encalço para fora do palco. Cai o pano. Ninguém ri, ninguém aplaude, afinal, para o público de hoje já não existem demônios, pecados e, sobretudo, colhões — não houve a mais mínima identificação, não entenderam nada.

Fim.

Dez anos sem Hilda Hilst

Hilda Hilst faleceu há exatos dez anos (!!). Por isso, em sua homenagem, segue abaixo o início de um texto — que publicarei oportunamente com a coletânea O Exorcista na Casa do Sol — sobre algumas de minhas experiências na Casa do Sol, residência da escritora, onde morei de 1998 a 2000.

Yuri Vieira e Hilda Hilst, na Casa do Sol, 1999.
Yuri Vieira e Hilda Hilst na Casa do Sol, 1999.

A melhor das casas possíveis

Era um domingo qualquer de 1999 e, mesmo assim, eu não podia me dar ao luxo de dormir até tarde. Obviamente vontade não faltava; mas uma das minhas obrigações era estar de pé, todos os dias sem exceção, antes das oito da manhã. Não podia faltar às charlas matutinas no escritório da poeta Hilda Hilst – sempre muito divertidas, instrutivas, memoráveis e… tacitamente obrigatórias. Eu não era um hóspede com estadia previamente programada, no entanto, ao contrário de um mordomo ou de um jardineiro, tampouco tinha vínculo profissional. Tinha casa e comida – mas lavava minha própria roupa. Éramos amigos, de início, tanto quanto o são uma professora e seu aluno; mas nossa amizade se estreitaria e se aprofundaria no transcurso dos meses. Sim, no dia a dia, eu fazia as vezes de secretário e webmaster, mas era sempre apresentado pela poeta como seu “amigo Yuri, jovem escritor”. Em suma, estava ali para ajudá-la com o necessário – pagar contas, fazer compras, representá-la nas reuniões de condomínio, atender aos telefonemas, manter a correspondência em dia, controlar a agenda, manter o site atualizado, etc. – e, em troca, estudar e aprender o ofício. E o necessário costuma madrugar, como se sabe. Mas que eu sentia falta de dormir até tarde aos domingos, ah, isso eu sentia. Às vezes, eu até conseguia disfarçar um pouco: acordava às sete da manhã, chamava o ramal do escritório – no qual Hilda já se encontrava desde as seis –, interpretávamos mutuamente nossos sonhos noturnos, e depois… bem, depois, sem que ela soubesse, e ao contrário dos dias comuns, voltava a dormir outra meia hora, como se estivesse a alongar minha ida ao banheiro. Isso, claro, acabava encurtando o prazo real da minha toalete, mas, dependendo da densidade da preguiça, ou da ressaca de sábado, valia a pena.

“Ah, só mais dois minutinhos…”, e tornava a ressonar sob as cobertas.

Felizmente, naquele mês o escritor José Luis Mora Fuentes voltara à Casa do Sol para passar conosco uma curta temporada. Amigo de Hilda desde os anos sessenta, ele sabia como lidar com suas idiossincrasias melhor do que ninguém. Ele não a via como um monstro sagrado das letras ou como uma outsider eivada de misantropia, mas, sim, como uma amiga genial e geniosa. Sentia-se, pois, à vontade para dobrá-la com aquela irreverência que costumamos reservar apenas aos velhos camaradas. Quando ele chegava muito tarde ao escritório e ela, irritada, começava a lhe pregar um sermão, Mora Fuentes suspirava:

“Tá, Hilda, me dá uma suspensão, me manda pra madre superiora…” e, na maior fleuma, acendia um cigarro.

Ao perceber a inutilidade de exigir que um homem de quase cinqüenta anos de idade levantasse cedo num domingo, Hilda sorria, acrescentava alguma pilhéria — “Mas, Zé, eu é que sou a madre superiora deste lupanar… digo, deste lugar!” — e esquecia o assunto. Portanto, a chegada de Mora Fuentes à chácara contribuiu enormemente para me converter de aluno em amigo de fato. Até então — eu estava ali desde Setembro de 1998 — vinha levando minha relação com Hilda de um modo excessivamente tímido, formal. E, do ponto de vista da preguiça domingueira, estava na cara que a nova situação me beneficiaria mais do que a ninguém, afinal, se naquele domingo eu chegasse ao escritório por volta das dez, já estaria de bom tamanho, simplesmente porque estaria acordando antes do Zé Mora Fuentes. Ou seja, por contraste, ele também me ajudaria a evitar outro sermão semelhante ao que recebi, no ano anterior, na primeira vez em que dormi (e acordei tarde) na Casa do Sol. Sermão este cujo remake eu tentava evitar a todo custo, com disciplina militar e madrugadeira. E olha que naquela primeira ocasião, além do fato de ter sido um domingo frio e chuvoso, havia outra boa desculpa para ficar na cama: estava com minha então namorada…

Contudo, naquele domingo de 1999, fui despertado por batidas secas à porta do quarto. Pelo jeito, meu plano de testar a paciência dominical de Hilda não daria certo. Mal passava das oito da manhã e Mora Fuentes já estava de pé. Parecia muito preocupado.

“Desculpa te acordar, Yuri. É que tô achando que fiz uma besteira enorme.”

“Puts, o que aconteceu?”, resmunguei, esfregando os olhos.

Ele sorriu com um ar desanimado: “Ainda não rolou nada, mas vai rolar”.

“Como assim, Zé?”, e tentei encará-lo através da minha miopia sem óculos.

Mora Fuentes entrou no quarto, puxou a pesada cadeira de cedro e se sentou de costas para meu computador.

“Lembra do que te falei, de a gente tentar fazer a Casa do Sol reviver seus melhores dias, de fazer a Hilda voltar a se animar e até a, quem sabe, escrever?”

“Claro.”

“Então. Ontem um cara telefonou pra cá, disse que não vê a Hilda faz quase vinte anos, que tem saudade dela, da Casa e assim por diante. Disse que se chama Candide e eu me lembrei do nome. Sabia que ele realmente tinha nos visitado nos anos setenta, na época em que eu também morava aqui.”

“Hum.”

“Pois é, ontem me lembrei do nome, mas não tinha me lembrado da pessoa. Devo ter ficado com o cérebro entupido pelo personagem do Voltaire. Só agora, num relance, meio acordado meio sonhando, ainda deitado, me lembrei quem é o cara. Quase caí da cama.”

Eu ri: “Não vai me dizer que é um assassino psicopata…”

“Acho que falta bem pouco pra isso”, respondeu Mora Fuentes, em meio a um sorriso nervoso. “A questão é que, na última vez em que esse Candide esteve aqui, a Hilda o expulsou. O cara é completamente doido, pirado mesmo, Yuri. Ele conseguiu quebrar toda a harmonia da casa, deixava todo mundo irritado, tenso. Queria dar palpite em tudo, se intrometia em tudo e — o pior — achava que estava ajudando… Quando ele chegou, todo mundo estava ótimo; quando ele saiu, havia conflito sobre conflito, treta em cima de treta, todos os nervos em frangalhos… O Dante, que era o fortão da Casa, chegou a pegá-lo pelos fundos da calça e pela gola da camisa, e o atirou lá no meio do jardim. Entende? Do mesmo jeito que fazem esses leões-de-chácara nos night clubs hollywoodianos…”

“Caramba.”

“Agora não sei o que fazer.”

“Uê, Zé; é só não atender mais aos telefonemas dele.”

Mora Fuentes coçou a cabeça, suspirou: “O problema é que, com essa idéia de reviver os bons anos da Casa, pensei que ele realmente fosse um amigo antigo da Hilda e o convidei a vir aqui hoje. Ele ficou de fazer o almoço, Yuri”.

“Liga pra ele e cancela.”

“Já liguei e a pessoa que atendeu disse que ele já tinha saído, que está vindo de bicicleta.”

“Ai-ai-ai…”, resmunguei, já sentindo o dia que teríamos de enfrentar. “E a Hilda? O que ela disse?”

“Vou falar com ela agora. Quis te avisar antes pra você já se levantar e ficar esperto. Ele mora perto da UNICAMP, já deve estar chegando. Conforme for, teremos de unir nossas magrezas e jogá-lo juntos lá no meio do jardim”, e riu.

“Beleza, Zé. Vou reunir a tropa.”

Mora Fuentes saiu pelo átrio em direção ao escritório de Hilda. Quanto a mim, depois de me espreguiçar mortalmente por um ou dois minutos, fui ao banheiro. Nunca estou plenamente desperto antes dum banho. E ali, sob o chuveiro quente, fiquei me lembrando das inúmeras histórias de malucos atraídos pela lendária Casa do Sol. Hilda me contara vários casos, assim como seu ex-marido, Dante Casarini, o próprio Mora Fuentes e também J. Toledo, outro grande amigo dela. Todos tinham mil anedotas bizarras para narrar — personagens malucos a dar com o pau. E isso incluía não apenas visitantes ocasionais já conhecidos, como certos ex-namorados, mas até mesmo pseudo-gurus, leitores fanáticos, artistas surtados, caseiros birutas, cozinheiras hipocondríacas, faxineiras cleptomaníacas… um leque sem fim de gente desprovida de parafuso. Se Hilda tivesse vivido além de 2004, seu hipotético perfil no Orkut certamente teria participado da comunidade “Eu atraio loucos!”.

Houve, por exemplo, um caseiro muito mal encarado que respondia a tudo com monossílabos cavernosos e grunhidos gulturais. Quando ele cometia algum erro no trabalho, e alguém lhe chamava a atenção, seus monossílabos tornavam-se díssilabos, mas emitidos num tom ainda mais sinistro e imperscrutável, provavelmente envolvendo ameaças e imprecações. Ninguém nunca o entendia direito. O corolário disso é que ele acabava fazendo o que lhe dava na telha, já que as cabeças dos patrões, desorientadas e constrangidas por seus resmungos, costumavam se mover afirmativamente diante de suas propostas ininteligíveis, o que ele acabava interpretando como anuências voluntárias. Mas isso não durou muito. A certa altura, durante sua estada na Casa do Sol, cães começaram a desaparecer misteriosamente. E, é claro, todos sabiam que mexer com os cães da Hilda era o mesmo que mexer com ela. Assim, num final de semana em que esse caseiro fora visitar alguém em Campinas — aparentemente num puteiro —, Hilda instigou Dante e Mora Fuentes a entrar na casinha dele. Como tinham uma cópia da chave, foram revistá-la. Encontraram uma impressionante coleção de armas brancas: navalhas, punhais, adagas, facas de combate à la Rambo, espadas, espadins e por aí vai. E o pior: algumas tinham manchas de sangue! Ficaram chocados com a descoberta e Hilda, claro, apavorada. Colocaram tudo no lugar conforme haviam encontrado e, quando ele retornou, inventaram alguma desculpa mais ou menos esfarrapada para demiti-lo: falência geral, dívidas, doenças contagiosas, etc. E o sujeito, sempre grunhindo e resmungando, partiu dali a quatro ou cinco dias, sem causar qualquer problema, frustrando a paranóia geral.

“Anos depois, quando vi aquele filme com o Freddy Krueger, fiquei besta: o caseiro tinha uma camiseta listrada idêntica!”, comentou Mora Fuentes ao me narrar o causo.

No rol dos ex-namorados, marcou presença o próprio primo de Hilda: Wilson Hilst. Esse primo, segundo ela me confessou, havia sido seu último namorado e amante; e isso quando ela já alcançara os cinqüenta anos de idade. Contou-me inclusive que Ehud, personagem de seu livro A Obscena Senhora D, fora inspirado nele. Wilson, um homem dominador e de temperamento difícil, era piloto de avião e costumava visitá-la em sua Harley-Davidson Fat Boy. Cansada de suas paranóias e de seu ciúme doentio, Hilda decidiu findar o relacionamento, o que deu enorme trabalho a Mora Fuentes e a Dante (a essa altura ex-marido, mas ainda morador da Casa): ambos tiveram de negociar com o mancebo até a chegada da polícia, uma vez que, nessa ocasião, o amante manteve Hilda, ali mesmo na Casa do Sol, sob a mira de um revólver toda uma longa noite, ameaçando matá-la e suicidar-se em seguida.

“Você nem imagina o trabalho que essa mulher já nos deu…”, disse-me Dante, diante do olhar maroto de Hilda.

Anos após esse qüiproquó, Hilda acordou sobressaltada ao ouvir, adentrando sua chácara, o motor da Harley. Levantou-se, foi ao encontro do primo que tanto a amara, mas não encontrou ninguém. Ainda era madrugada, a casa estava vazia e a Lua iluminava o jardim fronteiro. Um tanto confusa, retornou a seu quarto e voltou a dormir. No dia seguinte, recebeu por telefone a notícia de que Wilson fora encontrado morto em seu monomotor — provavelmente assassinado por passageiros narcotraficantes.

Hilda atribuía essa “força de atração insana” não ao mistério que a cercava, mas à sua velha figueira, que supostamente teria poderes mágicos, e ao nome da chácara, afinal, o Sol costuma não apenas manter um grande número de planetas, planetóides e asteróides à sua órbita, mas também está sempre a atrair ocasionais cometas. Até mesmo o gaúcho Caio Fernando Abreu, então em sua fase de buscas, entrou para a lista de satélites desvairados. Esteve ali na Casa do Sol durante o ano de 1969, dando muito trabalho ao triângulo Hilda-Dante-Mora Fuentes, que se viu obrigado a fazer revistas periódicas ao quarto do então jovem escritor, o qual vivia deprimido e ameaçando suicidar-se. Qualquer objeto pontiagudo ou cortante, qualquer fio ou cordão que pudesse converter-se numa forca improvisada, comprimidos misteriosos, tudo era sistematicamente suprimido para evitar que Caio fizesse algum mal a si mesmo. Hilda me contou que Caio viu-se perseguido durante muitos anos por essa sombra temível, a morte — memento moris —, e que somente após descobrir-se um soropositivo entregou-se à Luz, passando finalmente a escrever-lhe cartas cheias de vida. Sim, de médico e louco…

“Yuri, gosto de você porque você é tão doido quanto eu”, confessou-me ela certa feita, sugerindo que, se eu fora parar ali, também devia retirar meu cavalinho da chuva da normalidade.

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[Seguem mais 80 páginas, descrevendo um dos dias mais bizarros que vivi na Casa do Sol…]

Cotas, cocotas e sem cotas

Catastrophical failure

— O senhor é negro; é anão…

— Sim.

— É cadeirante.

— Isso.

— É gay?

— Sim. E mulher.

— Como?

— Mudança de sexo.

— Ah, ok. Interessante isso.

— Pois é.

— Bom, pelo acúmulo de cotas… já é juiz federal! Nem precisa prestar o concurso.

— Que ótimo! Obrigado. Digo, obrigada.

— É só assinar aqui.

— Ih.

— O que foi?

— Também sou analfabeta. Não sei nem ler, nem escrever.

— Ah, que sorte!

— Por quê?

— Nem precisa fazer carreira. Há uma nova lei de cotas para isso: você já vai direto para o STF. E olha que um ministro acaba de se aposentar.

— Ai, que felicidade! É tão bom viver num país que nos dá condições de melhorar de vida!

Neste momento, as paredes são derrubadas e uma horda de estranhos seres invade o recinto e come todos os presentes. O sistema estava tão lento e tão cheio de falhas que alguém resolveu formatar o disco. Ninguém sobreviveu.

Cai o pano. Fim.

(Ninguém aplaude.)

O chilique do cabeleireiro diante da modelo (uma crônica)

(Creio que já contei esta história, mas vou contá-la de novo porque eu a acho muito interessante.)

No início dos anos 90, em São Paulo, no agora extinto Estúdio Abril — então o maior estúdio fotográfico da América Latina, comandado à mão de ferro por Pedro Martinelli —, um fotógrafo aguardava a modelo para realizar uma sessão de fotos para o editorial de uma das revistas da empresa. A garota, uma adolescente que ainda não conhecia muito bem os ossos do ofício, permanecia sentada no camarim, muda, de olhos arregalados, enquanto tentava entender os chiliques daquele cabeleireiro que não queria preparar seu penteado.

— Não faço — dizia ele, à meia voz. — Não faço de jeito nenhum! Nem a custo de reza.

— Meu, pára com isso! Pelo amor de Deus, o job tá atrasado — suplicava a estressada produtora.

O maquiador, sentado a um canto, aguardava sua vez de entrar em ação. Não podia começar seu trabalho antes que o cabelo estivesse pronto. Também estava impaciente, mas, tendo ouvido exclusiva e previamente os motivos do cabeleireiro, preferiu não interferir na questão. A verdade é que ele estava mais curioso para ver a reação da produtora e do fotógrafo ao fato do que desejoso de botar mãos à obra.

Um vulto surgiu à porta.

— Ela já tá pronta? — perguntou com afobação o assistente do fotógrafo.

Aquela afobação, é claro, era reflexo da pressão do chefe.

— Não — tornou a produtora, pálida. — Ele não quer fazer o cabelo dela.

— Como assim, meu?! Que viagem é essa?

A modelo, constrangida, ainda não entendia o que estava acontecendo. Na verdade, não acreditava que tivesse realmente algo a ver com a situação. Ela, ao contrário do maquiador — e devemos ao cabeleireiro ao menos essa gentileza —, vinha sendo poupada das razões daquele atraso. Percebendo isso, e diante daquela estranha atitude do cabeleireiro, a produtora achou melhor levar a discussão para fora do camarim, deixando a menina sozinha lá dentro. O assistente, o cabeleireiro e o maquiador a seguiram.

Ela baixou a voz:

— Vai, meu, fala. O que é que tá rolando?

— Não sei o que dá na cabeça dessas agências. Ficam trazendo essas meninas do interior, lá do fim do mundo, aqui pra São Paulo. Aí metem a gente numa coisa dessas.

— Mas que coisa? Fala logo, porra!

— Piolho! Ela tá cheia de piolhos! Não mexo nesse cabelo de jeito nenhum! — E acrescentou num esgar: — Ai, que nojo!!!

O assistente e a produtora arregalaram os olhos e não souberam o que dizer. O maquiador olhou para o lado e sorriu discretamente, gordo de satisfação. Os dois primeiros trocaram um olhar significativo. Essa era uma questão a ser resolvida com o fotógrafo, o qual, sem parar de olhar o relógio, retorcendo os lábios, continuava à espera da modelo. Foram até ele e a produtora soltou a bomba.

— Ela está com piolho.

— E daí? — retrucou o fotógrafo, lacônico, sem mover um músculo sequer.

A produtora alargou um sorriso cheio de surpresa, quase indignado.

— Como “e daí”? E daí que o cabeleireiro não vai preparar o cabelo dela.

— Então arranja outro.

— Com a garota cheia de piolhos?

O fotógrafo voltou a sentar-se com uma cara de cowboy que sabe das coisas e que já viu de tudo no deserto dos bastidores da fotografia de moda. Com ar absorto, acendeu um cigarro e, por instantes, admirou a fumaça. De repente, olhou para cima, na direção da produtora.

— Você ainda está aí? Arranja outro cara. Rápido!

— Mas qual cabeleireiro vai…

— Meu! Não interessa! — cortou-a o fotógrafo, sem se levantar. — A menina é linda, o sorriso dela é lindo, o corpo dela é maravilhoso, ela se sente livre, leve e solta na frente da câmera. Ela vai ficar mesmo que esteja contaminada com radiação.

— Mas nosso tempo…

— Não tem “mas”! — interrompeu-a, com energia. — Você já viu algum trabalho dela? Viu pelo menos o composite? — e ele então abriu os braços, sorrindo: — Meu, ela nasceu pra isso! Se esse cara aí não nasceu para engolir os sapos da função dele, eu é que não vou engoli-los por ele. Ele não sabe que o nome do sapo dele é piolho? Aliás, você viu se é verdade?

— Eu…

— E mesmo que seja, a menina não tem culpa, caramba! Você acha que ela é que teria ido atrás dos bichos? Claro que não! Você nunca teve piolhos por acaso? Eu já tive, todo mundo já teve. É como a piada da mulher que peida no ônibus, fica envergonhada e um bêbado diz: “Não se preocupe, minha senhora! Eu peido, tu peidas, ele peida, nós peidamos, vós peidais, eles peidam!” Entende? E daí? Sem falar que, assim como o pessoal da revista, eu também acho que essa garota tem tudo a ver com o editorial. Esse cara aí tá é precisando entender qual o lugar dele. Piolho? Piolho não aparece na foto! Porra, cada piolho que eu tenho de aturar… Por que ele não pode aturar os dele?

E a produtora, com um ar de “não está mais aqui quem falou”, foi até o cabeleireiro para dispensá-lo do job. O assistente a seguiu porque, agora, ele é que estava curioso para ver a reação do sujeito.

— O quê? Dispensado?! Ce tá brincando, né?

— É sério. Ou isso, ou você faz o cabelo dela.

— Não faço porra nenhuma! — disse ele, enfurecido, tencionando ir buscar a maleta no camarim. — Me tiram de casa logo hoje, nesse dia horroroso de frio, para trabalhar com uma piolhenta! Que uó!

O assistente assistia à cena contendo a custo um sorriso de puro regozijo. Já conhecia a “peça” que, a essa altura, recolhia suas coisas. A produtora, com o telefone à mão, pedia pelo ramal outro cabeleireiro.

Voltando do camarim, já com a maleta, o sujeito prosseguiu com sua ladainha venenosa:

— Uma menina bobinha, do interior, que não vai dar em nada. Ela não tem força! Estou há anos na função, eu sei do que estou falando. — E então, enquanto saía pelo corredor, ainda encontrou o momento certo para voltar-se e profetizar em tom dramático: — Ninguém vai se lembrar dela! — E partiu.

— Tem alguma coisa errada? — perguntou a modelo, assomando à porta do camarim com seu sorriso belo e inocente.

— Não — tornou o assistente, encarando-a, hipnotizado. — É que o cabeleireiro está doente. Vamos trazer outro já já.

— Ah, tá certo — disse ela, com simpatia e despreocupação. E, dando-lhe as costas, voltou ao camarim.

Até hoje nenhuma das pessoas que conheço sabe me dizer qual era o nome do cabeleireiro. Já Gisele Bündchen… ah, quem não a conhece?

Hilda Hilst, o IPTU e a Chave da Cidade

Chave da Cidade

Quando Hilda Hilst faleceu, em 4 de Fevereiro de 2004, devia cerca de 800 mil reais de IPTU. Dois anos antes, a dívida era de 500 mil reais. Quando morei com ela, a dívida já era altíssima, salvo engano, aí pelos 300 mil reais. Mas, pouco antes de conhecê-la, quando a dívida já a assustava — ela caíra na armadilha de transformar uma área rural em loteamento, o que alterou o imposto de rural para urbano —, a Câmara de Vereadores de Campinas (SP) quis homenageá-la e, após votação, decidiu entregar-lhe a Chave da Cidade. Hilda foi então convidada para ir até a Câmara, mas deu de ombros: “Homenagem? Não quero homenagem, quero que revejam esse valor absurdo do meu IPTU”. Ela ganhava apenas 2000 reais por mês…

Os vereadores a esperaram em vão. No entanto, como a coisa já estava feita, decidiram enviar um representante à Casa do Sol, residência da autora, onde ele, um vereador (se não me falha a memória, o presidente da câmara), chegou todo sorridente com aquela Chave enorme nas mãos. O porteiro do condomínio anunciou a visita do sujeito, deixando Hilda irritada.

“Que petulância!”

Ela então, como costumava fazer em momentos assim, preparou sua performance: foi até o quarto e se “disfarçou” de velhinha. Sim, à época Hilda já tinha quase 70 anos de idade, mas seu espírito jamais faria alguém confundi-la com uma “velhinha”. Por isso, pegou duma bengala, jogou um xale sobre os ombros, encurvou-se e saiu caminhando como velhinha caquética até a entrada da casa, onde o vereador a esperava.

“Dona Hilda!”, começou ele, efusivo. “Vim lhe entregar a Chave da…”

“E o meu IPTU?”, cortou ela, seca.

Ele, pego de surpresa, gaguejou: “Mas, dona Hilda, nós… eu não tenho poder para isso… Vim apenas porque a Câmara resolveu lhe prestar uma homena…”

“O senhor por acaso já leu meus livros?”

Agora sim ele ficou branco. Engoliu em seco: “Não, senhora, nunca li nenhum dos seus livros”.

“Então, ponha-se daqui para fora. Meus leitores já me homenageiam quando lêem meus livros.”

O vereador ofendeu-se:

“Vim até aqui de boa vontade lhe prestar uma homenagem, lhe fazer um favor, e a senhora…”

“Favor o senhor faria se me chupasse a cona”, berrou ela, brandindo a bengala.

O vereador ficou roxo, não sabia onde enfiar a cara.

“Por favor, retire-se da minha casa”, tornou ela, com dignidade. “Vocês querem que eu pague uma fortuna para morar na minha própria casa e ainda acham que vão me comprar com uma chave idiota que não abre porta alguma? Pois diga a seus pares que os mandei enfiar, um de cada vez, a chave em seus respectivos cus. O senhor faça o mesmo.”

E então, desfazendo a corcunda, deu as costas ao homem e, pisando firme, imponente, caminhou para dentro de casa.

Até hoje ninguém sabe em qual excelentíssimo fiofó foi parar a chave.

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