palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Encontro de escritores brasileiros na Virginia/USA

Nosso homem em Curitiba

Aleksandr Dugin

O agente G. Greene segue o grupo até um bar de Curitiba e senta-se numa mesa próxima. Percebendo que a reunião poderá ocorrer ali mesmo, entra em contato com Langley, a sede da CIA, mediante um excelente software utilizado por todos os espiões do mundo: o WhatsApp.

— Controle, segui Dugin até um bar próximo ao hotel em que ele se hospedou. Ele está bebendo com um grupo de jovens e com outras duas pessoas de meia-idade, um homem e uma mulher.

— ¿Algum deles é ligado ao governo? ¿O agente cubano José Dirceu está com eles?

— Não, Controle. Nenhum dos presentes está em nossa lista.

— Estranho. ¿Mas estão falando sobre uma aproximação entre o Kremlin e Brasília?

— Bom, por enquanto Dugin apenas reclamou de ser o único a pedir uma vodka, enquanto os demais, segundo seu intérprete, “como menininhas, tomam apenas suquinhos de fruta”.

Resposta de Langley: :-))

— Começaram a falar mais baixo, Controle. Devem ter chegado ao assunto principal. Aguarde um momento.

— OK.

Em Langley, o Controle da missão espera por novas informações, enquanto joga Candy Crush Saga. Os minutos passam rapidamente. Por um instante, o Controle pensa que talvez fosse melhor utilizar aquele tempo para ler a pilha de documentos em sua mesa, todos relativos a Dugin, mas está tenso demais para se concentrar na leitura do que quer que seja. Melhor prosseguir com o jogo.

— Controle — chama novamente o agente Greene, ao cabo de uns vinte minutos. — Eles estão falando sobre um certo “Inimigo Número 1 do Eurasianismo”, alguém que divulgou para o resto do mundo os planos secretos de Dugin e de Putin.

— Quem é ele, Greene? Você obviamente já sabe por que isso nos interessa tanto.

— Sim, Controle: “o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo”.

— Exato. E, quando o descobrir, relate apenas a mim, você sabe que também temos inimigos aqui em Langley.

— Claro, senhor. Um momento, ainda estou tentando entender o nome.

O Controle volta ao Candy Crush. A cada cinco minutos de vida desperdiçada, ele xinga mentalmente o criador de tão viciante praga digital.

— Controle, eles o chamam apenas de “O Astrólogo”.

— Astrólogo? Que codinome interessante.

— Não sei se é apenas um codinome. Dugin está a lhes dizer para que insistam nessa alcunha em todas as redes sociais. Por enquanto, segundo ele, seria a melhor maneira de desmoralizar esse inimigo.

— Esquisito, ¿não?

— Controle! Agora Dugin o chamou de Olaf e, em seguida, de Olev. Também o chamou de O Colecionador de Rifles da Virgínia. Deve ser nosso conterrâneo.

— Isso é muito esquisito, Greene. O único Olaf colecionador de rifles daqui da Virgínia, que conheço, é meu próprio pai, um veterano da Guerra da Coréia.

— Sim, eu me lembro do seu pai. Eu o conheci no seu aniversário, ¿lembra-se? Por isso estou espantado.

— Bem… Vou perguntar a ele se está sabendo de algo que não sabemos.

— OK, Controle.

— Mais alguma…

— Eles estão saindo, Langley! Tentarei segui-los.

— OK. Mantenha-me informado.

Por alguma razão, o grupo sai sem pagar a conta. Greene não notou se alguém já havia se encarregado disso. Infelizmente, o dono do bar o encara com uma expressão de maus bofes quando o vê se aproximar da saída, e ele então entra na fila do caixa para pagar sua própria conta. Em Langley, o Controle põe de lado o Candy Crush e volta a organizar a pilha de documentos sobre Dugin. Deixa por baixo de todos um calhamaço contendo um debate entre Dugin e um filósofo brasileiro. ¿O que um filósofo brasileiro poderia acrescentar ao que já sabem? Ele nem sabia que havia filósofos no Brasil. Enquanto isso, em Curitiba, Greene é atendido pela simpática caixa, cuja camiseta traz uma inscrição que lhe passa desapercebida: “Olavo tem razão”.

Homem também tem pêlo

Bete Coelho e Daniela Thomas

Em Junho de 1999, quando eu já morava na Casa do Sol havia quase nove meses, a atriz e diretora Bete Coelho e a figurinista e cenógrafa Daniela Thomas foram visitar Hilda Hilst. Ambas participavam do projeto de adaptação para teatro do livro O Caderno Rosa de Lori Lamby, cuja protagonista seria vivida por Iara Jamra. A peça, à qual assisti semanas mais tarde no Teatro N.Ex.T, no centro de São Paulo, ficou excelente, unindo na proporção ideal o humor e o horror deste que é o primeiro volume da Trilogia Erótica hilstiana. O sucesso ulterior da montagem, contudo, não impediu Hilda de indagar pela milésima vez:

— Por que ninguém se interessa em montar minhas peças? Por que só querem adaptar meus livros?

— Ai, Hilda! — suspirava ao telefone o amigo Mora Fuentes. — Quando você disser isso às moças, porque eu sei que você vai dizer, sua teimosa, não faça a reclamona, né. Você não está contente com o interesse delas pela Lori Lamby?

— Claro que sim, Zé. Elas são ótimas. Mas não é isso…

— Hilda — eu então dizia — quando suas peças forem publicadas, os diretores vão começar a montá-las. Muita gente nem sabe que você também é dramaturga.

— Faz trinta anos que as escrevi! Trinta anos!! — repetia, arregalando os olhos.

E foi mais ou menos nesse clima que, num dia frio e ensolarado, recebemos as visitas. Em ocasiões assim, Hilda fazia questão da minha presença, entre outras coisas, para ser sua memória recente auxiliar.

— Yuri, quem é mesmo o autor dessa biografia do James Joyce que estou lendo?

— Richard Ellmann, Hilda.

— É verdade. Só me vinha à cabeça Richard Francis Burton. Mas é óbvio que se tratava de outro Richard.

Ela vivia citando autores e livros e, como eu vinha organizando sua biblioteca, cabia a mim correr atrás dos mesmos, pois ela sempre queria ler um trecho ou outro para seu interlocutor. Vale lembrar também que, como toda figura pública, Hilda Hilst se transformava nesses contatos com leitores e fãs. No dia a dia, eu até me esquecia de que ela estava prestes a completar setenta anos de idade: conversávamos como se ambos tivéssemos dezesseis. Claro, não foi assim desde nosso primeiro contato. Nossa amizade foi evoluindo. Mas essa diferença entre o antes e o depois saltava aos meus olhos quando, em minha presença, outras pessoas a encontravam pela primeira vez: de repente, minha “amiga adolescente que se interessava pelas mesmas coisas que eu”, e que só vestia a carapuça de mestra quando eu dizia uma grande besteira, se transformava em quem realmente era: um colosso literário. Ninguém que a tenha conhecido em sua casa jamais esquecerá de sua presença marcante, de sua sinceridade sem papas na língua e de sua modéstia aristocrática. Quando as visitas iam embora, ela me perguntava:

— Como me saí? — e então sorria. Tinha plena consciência do teatro do mundo e de seu papel nele.

Recebemos o anúncio da portaria do condomínio e nos preparamos para recepcionar Bete Coelho e Daniela Thomas. Hilda decidiu recebê-las à mesa de jantar, diante da lareira, já que o escritório estava inusualmente frio. Chico, o caseiro, abriu o portão e o carro veio estacionar diante do alpendre. Os cães, obviamente, fizeram o escarcéu de sempre, rodeando o carro e aguardando as visitantes com todos os volumes e tons de latido. Eram cerca de quinze cães.

— Olá, tudo bem? — eu disse, recebendo Daniela à porta e lhe estendendo a mão.

— Oi — respondeu, ligeiramente ansiosa, aceitando o cumprimento e me encarando por trás das grossas armações dos óculos. Uns dez cães a rodeavam, os pequenos latiam estridentemente.

— A Bete não vai entrar? — perguntei.

— Ela não quer sair do carro! Morre de medo de cachorros.

Ih, lascou-se!, pensei com meus botões. Hilda jamais sairia de casa para conversar com alguém pela janela de um automóvel. Ela simplesmente não confiava em quem não se dava com animais. Meu lado diplomático começou a se preocupar: e se isso fizesse Hilda não dar sua benção à peça? Não, ela não cancelaria sua autorização, mas aquela situação poderia azedar o trabalho de alguma forma. Talvez até aproveitasse o episódio como desculpa para não ir assistir à montagem. Embora estivesse mantendo um bom diálogo com Iara Jamra, por quem sentia grande simpatia, antipatizar com a diretora, por causa dos cães, não resultaria em nada de bom.

Entramos e Daniela cumprimentou Hilda com efusão. Após os salamaleques, indiquei a cadeira para que se sentasse.

— Cadê a Bete? — perguntou Hilda, que até então exalava pura simpatia. Pronto, pensei, vai começar.

— Ela não quer sair do carro — respondeu Daniela. — Está com medo dos cachorros. Não imaginava que se agitariam tanto.

O semblante de Hilda anuviou-se:

— Ué. Pensei que ela quisesse muito conversar comigo.

— E quer. Mas…

— Eles só ficam agitados no início, Daniela — atalhei. — Olha só como eles já se acalmaram. Bastou você se sentar.

— Eu vou lá falar com ela — respondeu, levantando-se e pressentindo nuvens de tempestade.

Daniela saiu e Hilda me encarou, uma expressão desgostosa nos lábios.

— Era só o que faltava — resmungou.

Infelizmente os cães acompanharam Daniela e retomaram a balbúrdia, o que, claro, só iria contradizer seus argumentos. Bete Coelho certamente não estaria disposta a ser um coelho numa caçada inglesa. Hilda, concentrada e já visivelmente irritada, fumava seu Chanceller. Aguardamos em silêncio. Ao cabo de dois ou três minutos, Daniela retornou: sozinha!

— Desculpa, Hilda — começou, embaraçada. — Não adianta. Ela está mesmo com medo.

Como Hilda nada respondesse, e pelo andar da carruagem talvez já não dissesse mais nada, decidi ir testar meus próprios argumentos.

— Eu falo com ela.

Fui até o carro e dei umas duas batidinhas no vidro. Bete Coelho abriu a janela. Os cabelos curtos e muito negros deixavam sua pele ainda mais pálida.

— Oi, Bete. Meu nome é Yuri. Sou secretário da Hilda.

— Oi, Yuri. Ela está muito chateada comigo?

— Um pouco. Mas você não precisa ficar com medo dos cachorros. Eles latem muito apenas quando vêem a pessoa pela primeira vez. Depois se acostumam e ficam quietos. Nunca morderam ninguém.

— Eu sei. Eu entendo que seja assim. Mas é involuntário! Juro! Estou em conflito aqui. Quero sair, mas não consigo.

Seu olhar comprovava sua angústia. Ela chegara à Casa do Sol e não veria Hilda Hilst? Como era possível?

— Olha — propus — você pode vir comigo. Vem segurando no meu braço. Você vai confirmar que cão que late não morde.

— Obrigada, Yuri — retrucou, desconsolada. — Mas não vai dar. É um problema que tenho. Estou até tratando essa fobia com meu psicanalista.

Nesse momento, trinta milhões de neurônios modificaram suas sinapses em meu cérebro e uma lâmpada, que só eu vi, acendeu sobre minha cabeça. Justamente naquele mês, eu e Hilda estávamos lendo e discutindo o livro “A Negação da Morte”, de Ernest Becker. Nele, através principalmente de Otto Rank e Kierkegaard, Becker busca provar que só há uma maneira de escapar à neurose causada pela verdade de que todos morreremos um dia: voltar à transferência original. Na psicanálise, grosso modo, transferência seria o processo pelo qual confiamos nossa segurança psíquica a algo que nos ultrapassa, que nos transcende, a algo que esteja fora e acima de nós mesmos. Quando o bebê está mamando, sua mãe é a fonte e a mantenedora de toda a sua saúde mental. Ele transfere suas necessidades mais profundas para ela. Ali, em seus braços, não há neurose, não há medo, não há ameaças de destruição. Conforme a criança vai crescendo e se tornando um adulto, sua transferência vai sendo dirigida para outras pessoas ou coisas: para o pai, para um namorado, para um trabalho, para uma crença, para uma ideologia e assim por diante. Quanto mais incerto, mortal ou volúvel for o alvo de sua transferência, mais neurótica se tornará a pessoa e, por isso, de mais mentiras existenciais necessitará para não mergulhar na loucura de se ver apenas como um animal que em breve irá morrer. E não há ninguém que viva sem estar preso a esse processo, por mais inconsciente que seja, por mais que seja oculto o alvo de sua transferência. Daí o estado de verdadeiro “escândalo”, no sentido bíblico, isto é, de abalo da fé, quando tal alvo se desfaz no ar ou cai em desgraça. Nada explica melhor um crime passional, quando o marido, traído pela esposa, mata-a e em seguida dá um tiro na cabeça. Nada explica melhor o suicídio de nazistas que, de repente, descobrem que o Führer está morto. Becker, portanto, desenvolve seu pensamento até nos mostrar que a única transferência perene, indestrutível e legítima é aquela que tem Deus por alvo. Seria essa a transferência original. Enfim, eu olhava para Bete Coelho e me vinham à cabeça todas essas coisas. Mas é claro que eu não iria lhe dizer: “Tenha fé em Deus, Bete, e nada vai lhe acontecer”. Não. Vestida com roupas escuras e pálida como uma freqüentadora do Hell’s Club, que eu também freqüentei — sempre curti música eletrônica —, essa não parecia de modo algum a abordagem correta. O fato é que eu também sabia que, numa psicanálise, a terapia torna-se muito mais efetiva quando, entre paciente e psicanalista, ocorre a transferência, quando o psicanalista se torna a salvaguarda do equilíbrio psíquico do paciente. Portanto, eu me inclinei em sua direção, sorri e lhe disse:

— Bete, tenho certeza de que, se você conseguisse enfrentar essa fobia agora e, apesar de todos esses cachorros, fosse até a sala conversar com a Hilda, seu psicanalista ficaria muito orgulhoso de você… — e, tendo dito isso, dei-lhe as costas e voltei à sala.

— Cadê ela, Yuri? — perguntou Hilda.

— Já está vindo.

— Sério?

— Sério.

E, de fato, em menos de dois minutos, Bete Coelho surgiu à porta por si só, os olhos vidrados, direcionados para frente, evitando olhar para baixo. Os cães, que haviam me acompanhado, cercaram-na latindo muitíssimo, mas ela, rígida, corajosa, permaneceu como uma estátua, os braços colados ao corpo. Com passos curtos e cuidadosos, mais parecia se deslocar sobre rodinhas do que caminhar. Dirigiu-se então até Hilda, que se levantou e a abraçou.

— É um prazer, Hilda. Me desculpa.

— Não entendi esse pânico todo — repreendeu-a Hilda, num tom bem humorado. — Você por acaso também tem medo de homem? Homem também tem pêlo. Sabia?

Todos riram dessa observação e Bete Coelho se sentou na cadeira que lhe indiquei. As conversas prosseguiram de forma amena e, graças à bravura da atriz-diretora, que confirmou Sócrates, segundo o qual corajoso não é quem não sente medo, mas, sim, quem o sente e o enfrenta, semanas mais tarde a própria Hilda foi assistir à montagem de O caderno Rosa de Lori Lamby. Porque, sinceramente, caso a autora tivesse antipatizado com Bete, teria sido muito difícil para Mora Fuentes arrastá-la da Casa do Sol até o teatro. (Ah, vale lembrar que, além de pêlos, alguns homens também têm boas idéias.)

O náufrago e a náufraga

Cansado dos constantes atritos com a esposa, Júlio decidiu convidá-la a fazer um cruzeiro pelas ilhas do Pacífico: uma viagem daquele tipo, acreditava, poderia devolvê-los a um estado pós-Lua de Mel. Marilda ouviu a proposta, meditou por alguns momentos e a aceitou: talvez ele tivesse razão e novos ares iriam restaurar um relacionamento já tão gasto. Sim, no fundo, o problema que vinham enfrentando era o mais banal, o mais corriqueiro de todos: enquanto a esposa queixava-se da desatenção e do egoísmo do marido, ele, que era um argentino radicado no Brasil, ya estaba podrido com tantas reclamações: “Ela não me deja en paz! Vive pegando no meu pé!”.

— Comprei o pacote! Serán dos semanas en un navio! — anunciou Júlio, pouco antes do início das férias.

E, de fato, três semanas mais tarde, partiram. Os primeiros dois dias de viagem foram excelentes: assistiram ao pôr-do-sol do convés, jantaram à luz de velas, ouviram música ao vivo, dançaram e, no segundo dia, até mesmo transaram. Duas vezes! De manhã e à noite. Sim, parecia promissor.

— Foi a melhor idéia que você já teve, Júlio!

Mas, no terceiro dia, logo após Marilda reclamar da toalha molhada sobre a cama, as coisas começaram a desandar. Júlio já não conseguia ficar mais do que quinze minutos no camarote. Depois da toalha, ouviu sobre os chinelos, a “bagunça da mala”, a temperatura do ar-condicionado, sobre seu inútil “inglês de Tarzan”, como se o dela fosse melhor, e assim por diante. Sabia que, em seguida, seria o cigarro, a sunga, a roupa suja, a escova de dentes, o carregador do celular e quaisquer outros pretextos descobertos ao momento. Por mais que tentasse vigiar a si mesmo, ele sempre se surpreendia com os novos defeitos que a esposa encontrava nele. Marilda era extremamente detalhista: nada lhe escapava! Por isso, Júlio decidiu passar a maior parte do tempo ou no bar, ou à beira da piscina. E o pior: notou que a escolha entre esses dois lugares estava condicionada à presença da mulher mais linda que já vira na vida: uma loira totalmente Barbie, de olhos grandes, lábios fartos, nariz delicado e arrebitado, cabelos compridos, pernas longas, seio hipnótico, corpo longilíneo, uma verdadeira deusa. Se ela estava no bar, era ali que ele ficava. Se ela estava tomando sol, ele escolhia a piscina. Ficava admirando-a horas a fio por trás dos óculos escuros. No quinto dia, porém, ele percebeu que ela também o notara. E o mais incrível: quando o via, ela lhe sorria! Infelizmente, Júlio, que era mais baixo que a esposa, não tinha uma autoestima das melhores e, por isso, sentia-se incapaz de qualquer aproximação. É óbvio que aquela mulher, mais alta ainda que Marilda, devia ser uma modelo européia e jamais se interessaria por ele.

— Você está me evitando!! — berrou Marilda, na tarde do sétimo dia.

— Yo? Claro que não, cariño!

— Tá sim! E aposto que já está de olho em alguma sirigaita.

Como ele nada respondesse a essa acusação, a mulher, subindo nos tamancos, se enfureceu:

— Seu desgramado! Eu sabia!

E começou a lhe atirar todo objeto que estivesse ao alcance. O camarote se encheu de cacos e de coisas quebradas. Até o iPhone dele foi trincar-se de encontro à parede. Ao ver isso, Júlio, embora já fosse demasiado tarde, decidiu se defender:

— Marilda! Pelo amor de Dios! Você realmente acha que eu iria atrás de outra mulher logo neste cruzeiro? Eu vim aqui por sua causa! Por nossa causa!

— Eu te conheço muito bem! — esbravejou ela. — Se não foi atrás de ninguém, é só porque você morre de vergonha de ser baixinho!!

Ah, por essa ele não esperava. Desde que se conheceram, nove anos antes, ela jamais fizera qualquer alusão à diferença de altura entre eles. Por alguma razão inexplicável, talvez a intuição feminina, ela jamais se referira àquele fato, pois sentia que, se o fizesse, desencadearia um Armagedom. E foi justamente o que ocorreu:

— Cala essa boca! — berrou Júlio. — Cállate ahora!! Com quem você pensa que está falando?! El hombre aquí soy yo!

— Grande homem! — debochou a esposa, sorrindo sarcasticamente. Para quê… Júlio a tomou dos pulsos à força, puxou-a para si e, sob protestos e pedidos de socorro, deitou-a no colo e levantou-lhe a saia. Quando lhe deu a primeira e fortíssima palmada, chocados, de olhos arregalados, ouviram juntos o som de uma forte explosão. Ficaram paralisados, perdidos num limbo da realidade. Num primeiro momento, parecia que ele havia explodido a bunda dela com a palmada. Mas então veio o som de uma sirene e as luzes vermelhas. O navio adernou acentuadamente para a direita, derrubando-os da cama. Alguém gritou no corredor e, em seguida, pelos alto-falantes:

— Todos para o convés! O navio está afundando!

Apavorados e silenciosos, fugiram de mãos dadas pelo corredor, quase correndo pelas paredes. Os passageiros atropelavam-se, tomados pelo mesmo pânico. Por sorte, Júlio e Marilda estavam apenas um andar abaixo do convés, o qual alcançaram com relativa rapidez. Mas não foi o suficiente. Ninguém sabia o que estava ocorrendo, mas o céu azul, sem nuvens, a completa ausência de recifes ou corais, indicava que o acidente fora causado por algum vazamento de gás ou, quem sabe, até mesmo por uma bomba. O sol começava a esconder-se no horizonte. Sem sucesso, os marinheiros tentavam liberar os botes salva-vidas. Mas já era tarde, o rombo no casco certamente era enorme e, quando o casal deu por si, já estava dentro d’água. O navio desapareceu em menos de três minutos.

— Júlio!! — gritou Marilda, que nadava muito mal.

— Aqui! — tornou ele, que tentava subir sobre um grande baú de fibra de vidro.

Os passageiros e a tripulação se espalhavam pela superfície das águas, quase todos aos berros. Júlio não conseguiu afastar da mente a lembrança do filme Titanic: “Então foi assim”, pensava. Já sobre o baú, meteu os braços na água para levá-lo na direção dos gritos de Marilda.

— Marilda!!

— Aqui, Júlio! Aqui!!

Ele remou mais para a direita e a encontrou. Ao mesmo tempo, sentiu que alguém forçava o baú para o outro lado, tentando escalá-lo. Olhou naquela direção: era a belíssima loira.

— Help me, please! — disse ela, o olhar cheio de medo.

— Wait a second — respondeu e, já segurando as mãos de Marilda, tentava puxá-la para cima daquele salva-vidas improvisado. Contudo, por mais que se esforçasse, apenas fazia tombar o objeto.

— Vai logo, Júlio! — gritou então a esposa. — Será que nem pra isso você tem força?! Que droga de homem, viu.
Aquelas palavras converteram Júlio num iceberg. O iceberg que afundou Marilda. Sem esboçar qualquer sentimento, soltou-lhe as mãos e observou-a afundar no mar escuro:

— Adiós, Leonardo DiCaprio — disse o argentino à meia voz. E, voltando-se para o outro lado, deu as mãos para aquela beldade. Embora fosse mais alta, a mulher tinha corpo de modelo, era bem mais magra que sua esposa e, por isso, não houve maior dificuldade em puxá-la para cima do baú sem desestabilizá-lo. Juntos, remaram para longe do desastre, temendo que outras pessoas pudessem virá-los. Horas mais tarde, adormeceram um nos braços do outro, passando toda a noite assim. Na manhã seguinte, despertaram encalhados numa minúscula ilha deserta, dotada não mais que de cinco coqueiros.

Sete anos mais tarde, o novo veleiro da família Schürmann passava por ali. Heloísa, de pé no convés, apreciava o horizonte com um binóculo.

— Vilfredo! — gritou ela. — Acho que tem alguém pulando e gritando numa ilhota nesta direção.

— Deve estar pedindo ajuda. Pode ser um náufrago. Vamos lá.

O casal corrigiu a rota e rumou para o salvamento. Meia hora depois, ancoravam a uns cem metros da pequena praia. Na areia, distinguiram dois homens com longas barbas: um alto e loiro, e outro baixinho de cabelos castanhos. Apenas o mais alto pulava, gritando e agitando os braços, cheio de felicidade.

Vilfredo preparou o bote inflável e foi resgatá-los:

— O que aconteceu com vocês, meus amigos? — perguntou em inglês, assim que se encontraram.

— Nosso navio afundou anos atrás. Foi muito triste. Se não fosse pelo Júlio aqui, eu teria morrido.

Quando Vilfredo olhou para Júlio, notou que ele tinha a expressão mais triste deste mundo.

Fim.

Moral da história 1: Esposa, não encha tanto o saco do seu marido: num momento de crise, isso poderá até mesmo custar a sua vida.

Moral da história 2: Marido, por mais que ela o atormente, não seja desleal à sua esposa: do contrário, você poderá levar no rabo durante sete anos.

Moral da história 3: Travesti, nunca se esqueça de, numa viagem longa, levar um grande suprimento de hormônios femininos. Do contrário, caso você curta ser passivo, terá de se contentar em ser ativo: contra a vontade do outro parceiro…

A Importância da Literatura

Aula do Professor Luiz Gonzaga de Carvalho Neto.

Outro “causo” do Bruno Tolentino

tolentino

Às vezes me vêm à lembrança algumas conversas marcantes que tive com o poeta Bruno Tolentino. Ele tinha o costume de pilheriar no tom mais sério e, caso o interlocutor não percebesse o humor clandestino, seguia em frente, como se nada tivesse acontecido. Sempre com a ironia mais fina, inglesa. E era assim com qualquer um, uma espécie de teste instantâneo de QI para conversações: se a pessoa risse, ele aprofundava a conversa; se não risse, ele ficava no raso. Contudo, quando tinha maior confiança no interlocutor, quando já havia amizade, Bruno levava seu ferrão escorpiano direto ao alvo. E eu, escorpiano mirim, dava gargalhadas com suas tiradas. Sim, em geral porque revelavam a mim mesmo meus próprios pensamentos não verbalizados — como quando, certa feita, na Casa do Sol, conversamos sobre um escritor que conhecíamos pessoalmente, o qual o havia presenteado com seu livro de contos.
— E então, Bruno? — indaguei, curioso. — Você gostou do livro? Ele escreve bem?
— Você já viu a cara da mulher dele? — replicou de pronto, causando-me um sorriso prévio de quem tenta adivinhar o que vem em seguida.
— Claro que já. Por quê?
— O ar de bruxa doida… Os olhos vazios… Sempre descabelada… Aqueles gritinhos à guisa de risos… O jeito de se sentar com as pernas abertas, o tronco encurvado… Reparou?
Eu ria: — Aham.
— E você já conversou com ela, Yuri?
— Já. Por quê?
— É uma tortura! Uma mesmice sem fim, um monte de chavões e besteiras. A mulher é a frivolidade em pessoa. Os olhos dela só brilham quando alguém fala em dinheiro.
— A Hilda me disse a mesma coisa — e ri novamente.
— Pois é — e calou-se. Ficou lá, concentrado, retirando os livros duma caixa de papelão. Eu ainda aguardava a resposta à minha pergunta inicial e… e nada. Ele havia se esquecido dela.
— Bruno — observei, ao fim de um longo minuto — você acabou não me dizendo se ele escreve bem ou não.
Ele então me encarou e sorriu escorpianamente:
— E você acha, Yuri, que alguém que escolhe se casar com uma mulher dessas saberia escolher as palavras certas para formar sequer uma boa frase?
(Estou rindo de novo.)

Minha palestra no ConaLit [completa]

Minha palestra no Congresso Nacional de Literatura e História Pessoal.

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