palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Dez anos sem Hilda Hilst

Hilda Hilst faleceu há exatos dez anos (!!). Por isso, em sua homenagem, segue abaixo o início de um texto — que publicarei oportunamente com a coletânea O Exorcista na Casa do Sol — sobre algumas de minhas experiências na Casa do Sol, residência da escritora, onde morei de 1998 a 2000.

Yuri Vieira e Hilda Hilst, na Casa do Sol, 1999.
Yuri Vieira e Hilda Hilst na Casa do Sol, 1999.

A melhor das casas possíveis

Era um domingo qualquer de 1999 e, mesmo assim, eu não podia me dar ao luxo de dormir até tarde. Obviamente vontade não faltava; mas uma das minhas obrigações era estar de pé, todos os dias sem exceção, antes das oito da manhã. Não podia faltar às charlas matutinas no escritório da poeta Hilda Hilst – sempre muito divertidas, instrutivas, memoráveis e… tacitamente obrigatórias. Eu não era um hóspede com estadia previamente programada, no entanto, ao contrário de um mordomo ou de um jardineiro, tampouco tinha vínculo profissional. Tinha casa e comida – mas lavava minha própria roupa. Éramos amigos, de início, tanto quanto o são uma professora e seu aluno; mas nossa amizade se estreitaria e se aprofundaria no transcurso dos meses. Sim, no dia a dia, eu fazia as vezes de secretário e webmaster, mas era sempre apresentado pela poeta como seu “amigo Yuri, jovem escritor”. Em suma, estava ali para ajudá-la com o necessário – pagar contas, fazer compras, representá-la nas reuniões de condomínio, atender aos telefonemas, manter a correspondência em dia, controlar a agenda, manter o site atualizado, etc. – e, em troca, estudar e aprender o ofício. E o necessário costuma madrugar, como se sabe. Mas que eu sentia falta de dormir até tarde aos domingos, ah, isso eu sentia. Às vezes, eu até conseguia disfarçar um pouco: acordava às sete da manhã, chamava o ramal do escritório – no qual Hilda já se encontrava desde as seis –, interpretávamos mutuamente nossos sonhos noturnos, e depois… bem, depois, sem que ela soubesse, e ao contrário dos dias comuns, voltava a dormir outra meia hora, como se estivesse a alongar minha ida ao banheiro. Isso, claro, acabava encurtando o prazo real da minha toalete, mas, dependendo da densidade da preguiça, ou da ressaca de sábado, valia a pena.

“Ah, só mais dois minutinhos…”, e tornava a ressonar sob as cobertas.

Felizmente, naquele mês o escritor José Luis Mora Fuentes voltara à Casa do Sol para passar conosco uma curta temporada. Amigo de Hilda desde os anos sessenta, ele sabia como lidar com suas idiossincrasias melhor do que ninguém. Ele não a via como um monstro sagrado das letras ou como uma outsider eivada de misantropia, mas, sim, como uma amiga genial e geniosa. Sentia-se, pois, à vontade para dobrá-la com aquela irreverência que costumamos reservar apenas aos velhos camaradas. Quando ele chegava muito tarde ao escritório e ela, irritada, começava a lhe pregar um sermão, Mora Fuentes suspirava:

“Tá, Hilda, me dá uma suspensão, me manda pra madre superiora…” e, na maior fleuma, acendia um cigarro.

Ao perceber a inutilidade de exigir que um homem de quase cinqüenta anos de idade levantasse cedo num domingo, Hilda sorria, acrescentava alguma pilhéria — “Mas, Zé, eu é que sou a madre superiora deste lupanar… digo, deste lugar!” — e esquecia o assunto. Portanto, a chegada de Mora Fuentes à chácara contribuiu enormemente para me converter de aluno em amigo de fato. Até então — eu estava ali desde Setembro de 1998 — vinha levando minha relação com Hilda de um modo excessivamente tímido, formal. E, do ponto de vista da preguiça domingueira, estava na cara que a nova situação me beneficiaria mais do que a ninguém, afinal, se naquele domingo eu chegasse ao escritório por volta das dez, já estaria de bom tamanho, simplesmente porque estaria acordando antes do Zé Mora Fuentes. Ou seja, por contraste, ele também me ajudaria a evitar outro sermão semelhante ao que recebi, no ano anterior, na primeira vez em que dormi (e acordei tarde) na Casa do Sol. Sermão este cujo remake eu tentava evitar a todo custo, com disciplina militar e madrugadeira. E olha que naquela primeira ocasião, além do fato de ter sido um domingo frio e chuvoso, havia outra boa desculpa para ficar na cama: estava com minha então namorada…

Contudo, naquele domingo de 1999, fui despertado por batidas secas à porta do quarto. Pelo jeito, meu plano de testar a paciência dominical de Hilda não daria certo. Mal passava das oito da manhã e Mora Fuentes já estava de pé. Parecia muito preocupado.

“Desculpa te acordar, Yuri. É que tô achando que fiz uma besteira enorme.”

“Puts, o que aconteceu?”, resmunguei, esfregando os olhos.

Ele sorriu com um ar desanimado: “Ainda não rolou nada, mas vai rolar”.

“Como assim, Zé?”, e tentei encará-lo através da minha miopia sem óculos.

Mora Fuentes entrou no quarto, puxou a pesada cadeira de cedro e se sentou de costas para meu computador.

“Lembra do que te falei, de a gente tentar fazer a Casa do Sol reviver seus melhores dias, de fazer a Hilda voltar a se animar e até a, quem sabe, escrever?”

“Claro.”

“Então. Ontem um cara telefonou pra cá, disse que não vê a Hilda faz quase vinte anos, que tem saudade dela, da Casa e assim por diante. Disse que se chama Candide e eu me lembrei do nome. Sabia que ele realmente tinha nos visitado nos anos setenta, na época em que eu também morava aqui.”

“Hum.”

“Pois é, ontem me lembrei do nome, mas não tinha me lembrado da pessoa. Devo ter ficado com o cérebro entupido pelo personagem do Voltaire. Só agora, num relance, meio acordado meio sonhando, ainda deitado, me lembrei quem é o cara. Quase caí da cama.”

Eu ri: “Não vai me dizer que é um assassino psicopata…”

“Acho que falta bem pouco pra isso”, respondeu Mora Fuentes, em meio a um sorriso nervoso. “A questão é que, na última vez em que esse Candide esteve aqui, a Hilda o expulsou. O cara é completamente doido, pirado mesmo, Yuri. Ele conseguiu quebrar toda a harmonia da casa, deixava todo mundo irritado, tenso. Queria dar palpite em tudo, se intrometia em tudo e — o pior — achava que estava ajudando… Quando ele chegou, todo mundo estava ótimo; quando ele saiu, havia conflito sobre conflito, treta em cima de treta, todos os nervos em frangalhos… O Dante, que era o fortão da Casa, chegou a pegá-lo pelos fundos da calça e pela gola da camisa, e o atirou lá no meio do jardim. Entende? Do mesmo jeito que fazem esses leões-de-chácara nos night clubs hollywoodianos…”

“Caramba.”

“Agora não sei o que fazer.”

“Uê, Zé; é só não atender mais aos telefonemas dele.”

Mora Fuentes coçou a cabeça, suspirou: “O problema é que, com essa idéia de reviver os bons anos da Casa, pensei que ele realmente fosse um amigo antigo da Hilda e o convidei a vir aqui hoje. Ele ficou de fazer o almoço, Yuri”.

“Liga pra ele e cancela.”

“Já liguei e a pessoa que atendeu disse que ele já tinha saído, que está vindo de bicicleta.”

“Ai-ai-ai…”, resmunguei, já sentindo o dia que teríamos de enfrentar. “E a Hilda? O que ela disse?”

“Vou falar com ela agora. Quis te avisar antes pra você já se levantar e ficar esperto. Ele mora perto da UNICAMP, já deve estar chegando. Conforme for, teremos de unir nossas magrezas e jogá-lo juntos lá no meio do jardim”, e riu.

“Beleza, Zé. Vou reunir a tropa.”

Mora Fuentes saiu pelo átrio em direção ao escritório de Hilda. Quanto a mim, depois de me espreguiçar mortalmente por um ou dois minutos, fui ao banheiro. Nunca estou plenamente desperto antes dum banho. E ali, sob o chuveiro quente, fiquei me lembrando das inúmeras histórias de malucos atraídos pela lendária Casa do Sol. Hilda me contara vários casos, assim como seu ex-marido, Dante Casarini, o próprio Mora Fuentes e também J. Toledo, outro grande amigo dela. Todos tinham mil anedotas bizarras para narrar — personagens malucos a dar com o pau. E isso incluía não apenas visitantes ocasionais já conhecidos, como certos ex-namorados, mas até mesmo pseudo-gurus, leitores fanáticos, artistas surtados, caseiros birutas, cozinheiras hipocondríacas, faxineiras cleptomaníacas… um leque sem fim de gente desprovida de parafuso. Se Hilda tivesse vivido além de 2004, seu hipotético perfil no Orkut certamente teria participado da comunidade “Eu atraio loucos!”.

Houve, por exemplo, um caseiro muito mal encarado que respondia a tudo com monossílabos cavernosos e grunhidos gulturais. Quando ele cometia algum erro no trabalho, e alguém lhe chamava a atenção, seus monossílabos tornavam-se díssilabos, mas emitidos num tom ainda mais sinistro e imperscrutável, provavelmente envolvendo ameaças e imprecações. Ninguém nunca o entendia direito. O corolário disso é que ele acabava fazendo o que lhe dava na telha, já que as cabeças dos patrões, desorientadas e constrangidas por seus resmungos, costumavam se mover afirmativamente diante de suas propostas ininteligíveis, o que ele acabava interpretando como anuências voluntárias. Mas isso não durou muito. A certa altura, durante sua estada na Casa do Sol, cães começaram a desaparecer misteriosamente. E, é claro, todos sabiam que mexer com os cães da Hilda era o mesmo que mexer com ela. Assim, num final de semana em que esse caseiro fora visitar alguém em Campinas — aparentemente num puteiro —, Hilda instigou Dante e Mora Fuentes a entrar na casinha dele. Como tinham uma cópia da chave, foram revistá-la. Encontraram uma impressionante coleção de armas brancas: navalhas, punhais, adagas, facas de combate à la Rambo, espadas, espadins e por aí vai. E o pior: algumas tinham manchas de sangue! Ficaram chocados com a descoberta e Hilda, claro, apavorada. Colocaram tudo no lugar conforme haviam encontrado e, quando ele retornou, inventaram alguma desculpa mais ou menos esfarrapada para demiti-lo: falência geral, dívidas, doenças contagiosas, etc. E o sujeito, sempre grunhindo e resmungando, partiu dali a quatro ou cinco dias, sem causar qualquer problema, frustrando a paranóia geral.

“Anos depois, quando vi aquele filme com o Freddy Krueger, fiquei besta: o caseiro tinha uma camiseta listrada idêntica!”, comentou Mora Fuentes ao me narrar o causo.

No rol dos ex-namorados, marcou presença o próprio primo de Hilda: Wilson Hilst. Esse primo, segundo ela me confessou, havia sido seu último namorado e amante; e isso quando ela já alcançara os cinqüenta anos de idade. Contou-me inclusive que Ehud, personagem de seu livro A Obscena Senhora D, fora inspirado nele. Wilson, um homem dominador e de temperamento difícil, era piloto de avião e costumava visitá-la em sua Harley-Davidson Fat Boy. Cansada de suas paranóias e de seu ciúme doentio, Hilda decidiu findar o relacionamento, o que deu enorme trabalho a Mora Fuentes e a Dante (a essa altura ex-marido, mas ainda morador da Casa): ambos tiveram de negociar com o mancebo até a chegada da polícia, uma vez que, nessa ocasião, o amante manteve Hilda, ali mesmo na Casa do Sol, sob a mira de um revólver toda uma longa noite, ameaçando matá-la e suicidar-se em seguida.

“Você nem imagina o trabalho que essa mulher já nos deu…”, disse-me Dante, diante do olhar maroto de Hilda.

Anos após esse qüiproquó, Hilda acordou sobressaltada ao ouvir, adentrando sua chácara, o motor da Harley. Levantou-se, foi ao encontro do primo que tanto a amara, mas não encontrou ninguém. Ainda era madrugada, a casa estava vazia e a Lua iluminava o jardim fronteiro. Um tanto confusa, retornou a seu quarto e voltou a dormir. No dia seguinte, recebeu por telefone a notícia de que Wilson fora encontrado morto em seu monomotor — provavelmente assassinado por passageiros narcotraficantes.

Hilda atribuía essa “força de atração insana” não ao mistério que a cercava, mas à sua velha figueira, que supostamente teria poderes mágicos, e ao nome da chácara, afinal, o Sol costuma não apenas manter um grande número de planetas, planetóides e asteróides à sua órbita, mas também está sempre a atrair ocasionais cometas. Até mesmo o gaúcho Caio Fernando Abreu, então em sua fase de buscas, entrou para a lista de satélites desvairados. Esteve ali na Casa do Sol durante o ano de 1969, dando muito trabalho ao triângulo Hilda-Dante-Mora Fuentes, que se viu obrigado a fazer revistas periódicas ao quarto do então jovem escritor, o qual vivia deprimido e ameaçando suicidar-se. Qualquer objeto pontiagudo ou cortante, qualquer fio ou cordão que pudesse converter-se numa forca improvisada, comprimidos misteriosos, tudo era sistematicamente suprimido para evitar que Caio fizesse algum mal a si mesmo. Hilda me contou que Caio viu-se perseguido durante muitos anos por essa sombra temível, a morte — memento moris —, e que somente após descobrir-se um soropositivo entregou-se à Luz, passando finalmente a escrever-lhe cartas cheias de vida. Sim, de médico e louco…

“Yuri, gosto de você porque você é tão doido quanto eu”, confessou-me ela certa feita, sugerindo que, se eu fora parar ali, também devia retirar meu cavalinho da chuva da normalidade.

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[Seguem mais 80 páginas, descrevendo um dos dias mais bizarros que vivi na Casa do Sol…]

A Ária da Rainha da Noite

Preciso postar esta ária – Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen (A vingança do inferno arde em meu coração), também conhecida como Ária da Rainha da Noite, da ópera A Flauta Mágica, de Mozart – apenas porque a ouvi umas dez vezes no último final de semana. A soprano Diana Damrau conjuga voz e interpretação impressionantes. (Vi outras sopranos que talvez cantem melhor do que ela, mas não com a mesma carga dramática, ajudada, é certo, por excelentes figurino, cenário e direção.)

Você vai querer o DVD depois desse vídeo…

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The perfect bitch. :^)

O chilique do cabeleireiro diante da modelo (uma crônica)

(Creio que já contei esta história, mas vou contá-la de novo porque eu a acho muito interessante.)

No início dos anos 90, em São Paulo, no agora extinto Estúdio Abril — então o maior estúdio fotográfico da América Latina, comandado à mão de ferro por Pedro Martinelli —, um fotógrafo aguardava a modelo para realizar uma sessão de fotos para o editorial de uma das revistas da empresa. A garota, uma adolescente que ainda não conhecia muito bem os ossos do ofício, permanecia sentada no camarim, muda, de olhos arregalados, enquanto tentava entender os chiliques daquele cabeleireiro que não queria preparar seu penteado.

— Não faço — dizia ele, à meia voz. — Não faço de jeito nenhum! Nem a custo de reza.

— Meu, pára com isso! Pelo amor de Deus, o job tá atrasado — suplicava a estressada produtora.

O maquiador, sentado a um canto, aguardava sua vez de entrar em ação. Não podia começar seu trabalho antes que o cabelo estivesse pronto. Também estava impaciente, mas, tendo ouvido exclusiva e previamente os motivos do cabeleireiro, preferiu não interferir na questão. A verdade é que ele estava mais curioso para ver a reação da produtora e do fotógrafo ao fato do que desejoso de botar mãos à obra.

Um vulto surgiu à porta.

— Ela já tá pronta? — perguntou com afobação o assistente do fotógrafo.

Aquela afobação, é claro, era reflexo da pressão do chefe.

— Não — tornou a produtora, pálida. — Ele não quer fazer o cabelo dela.

— Como assim, meu?! Que viagem é essa?

A modelo, constrangida, ainda não entendia o que estava acontecendo. Na verdade, não acreditava que tivesse realmente algo a ver com a situação. Ela, ao contrário do maquiador — e devemos ao cabeleireiro ao menos essa gentileza —, vinha sendo poupada das razões daquele atraso. Percebendo isso, e diante daquela estranha atitude do cabeleireiro, a produtora achou melhor levar a discussão para fora do camarim, deixando a menina sozinha lá dentro. O assistente, o cabeleireiro e o maquiador a seguiram.

Ela baixou a voz:

— Vai, meu, fala. O que é que tá rolando?

— Não sei o que dá na cabeça dessas agências. Ficam trazendo essas meninas do interior, lá do fim do mundo, aqui pra São Paulo. Aí metem a gente numa coisa dessas.

— Mas que coisa? Fala logo, porra!

— Piolho! Ela tá cheia de piolhos! Não mexo nesse cabelo de jeito nenhum! — E acrescentou num esgar: — Ai, que nojo!!!

O assistente e a produtora arregalaram os olhos e não souberam o que dizer. O maquiador olhou para o lado e sorriu discretamente, gordo de satisfação. Os dois primeiros trocaram um olhar significativo. Essa era uma questão a ser resolvida com o fotógrafo, o qual, sem parar de olhar o relógio, retorcendo os lábios, continuava à espera da modelo. Foram até ele e a produtora soltou a bomba.

— Ela está com piolho.

— E daí? — retrucou o fotógrafo, lacônico, sem mover um músculo sequer.

A produtora alargou um sorriso cheio de surpresa, quase indignado.

— Como “e daí”? E daí que o cabeleireiro não vai preparar o cabelo dela.

— Então arranja outro.

— Com a garota cheia de piolhos?

O fotógrafo voltou a sentar-se com uma cara de cowboy que sabe das coisas e que já viu de tudo no deserto dos bastidores da fotografia de moda. Com ar absorto, acendeu um cigarro e, por instantes, admirou a fumaça. De repente, olhou para cima, na direção da produtora.

— Você ainda está aí? Arranja outro cara. Rápido!

— Mas qual cabeleireiro vai…

— Meu! Não interessa! — cortou-a o fotógrafo, sem se levantar. — A menina é linda, o sorriso dela é lindo, o corpo dela é maravilhoso, ela se sente livre, leve e solta na frente da câmera. Ela vai ficar mesmo que esteja contaminada com radiação.

— Mas nosso tempo…

— Não tem “mas”! — interrompeu-a, com energia. — Você já viu algum trabalho dela? Viu pelo menos o composite? — e ele então abriu os braços, sorrindo: — Meu, ela nasceu pra isso! Se esse cara aí não nasceu para engolir os sapos da função dele, eu é que não vou engoli-los por ele. Ele não sabe que o nome do sapo dele é piolho? Aliás, você viu se é verdade?

— Eu…

— E mesmo que seja, a menina não tem culpa, caramba! Você acha que ela é que teria ido atrás dos bichos? Claro que não! Você nunca teve piolhos por acaso? Eu já tive, todo mundo já teve. É como a piada da mulher que peida no ônibus, fica envergonhada e um bêbado diz: “Não se preocupe, minha senhora! Eu peido, tu peidas, ele peida, nós peidamos, vós peidais, eles peidam!” Entende? E daí? Sem falar que, assim como o pessoal da revista, eu também acho que essa garota tem tudo a ver com o editorial. Esse cara aí tá é precisando entender qual o lugar dele. Piolho? Piolho não aparece na foto! Porra, cada piolho que eu tenho de aturar… Por que ele não pode aturar os dele?

E a produtora, com um ar de “não está mais aqui quem falou”, foi até o cabeleireiro para dispensá-lo do job. O assistente a seguiu porque, agora, ele é que estava curioso para ver a reação do sujeito.

— O quê? Dispensado?! Ce tá brincando, né?

— É sério. Ou isso, ou você faz o cabelo dela.

— Não faço porra nenhuma! — disse ele, enfurecido, tencionando ir buscar a maleta no camarim. — Me tiram de casa logo hoje, nesse dia horroroso de frio, para trabalhar com uma piolhenta! Que uó!

O assistente assistia à cena contendo a custo um sorriso de puro regozijo. Já conhecia a “peça” que, a essa altura, recolhia suas coisas. A produtora, com o telefone à mão, pedia pelo ramal outro cabeleireiro.

Voltando do camarim, já com a maleta, o sujeito prosseguiu com sua ladainha venenosa:

— Uma menina bobinha, do interior, que não vai dar em nada. Ela não tem força! Estou há anos na função, eu sei do que estou falando. — E então, enquanto saía pelo corredor, ainda encontrou o momento certo para voltar-se e profetizar em tom dramático: — Ninguém vai se lembrar dela! — E partiu.

— Tem alguma coisa errada? — perguntou a modelo, assomando à porta do camarim com seu sorriso belo e inocente.

— Não — tornou o assistente, encarando-a, hipnotizado. — É que o cabeleireiro está doente. Vamos trazer outro já já.

— Ah, tá certo — disse ela, com simpatia e despreocupação. E, dando-lhe as costas, voltou ao camarim.

Até hoje nenhuma das pessoas que conheço sabe me dizer qual era o nome do cabeleireiro. Já Gisele Bündchen… ah, quem não a conhece?

Elizabeth Gilbert e Elif Shafak: duas escritoras, duas palestras

Elizabeth Gilbert: alimentando a criatividade

(Devo dizer que nunca li Elizabeth Gilbert, mas gostei muito de sua palestra no TED.)

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Elif Shafak: A política da ficção

(idem)

 

Hilda Hilst, o IPTU e a Chave da Cidade

Chave da Cidade

Quando Hilda Hilst faleceu, em 4 de Fevereiro de 2004, devia cerca de 800 mil reais de IPTU. Dois anos antes, a dívida era de 500 mil reais. Quando morei com ela, a dívida já era altíssima, salvo engano, aí pelos 300 mil reais. Mas, pouco antes de conhecê-la, quando a dívida já a assustava — ela caíra na armadilha de transformar uma área rural em loteamento, o que alterou o imposto de rural para urbano —, a Câmara de Vereadores de Campinas (SP) quis homenageá-la e, após votação, decidiu entregar-lhe a Chave da Cidade. Hilda foi então convidada para ir até a Câmara, mas deu de ombros: “Homenagem? Não quero homenagem, quero que revejam esse valor absurdo do meu IPTU”. Ela ganhava apenas 2000 reais por mês…

Os vereadores a esperaram em vão. No entanto, como a coisa já estava feita, decidiram enviar um representante à Casa do Sol, residência da autora, onde ele, um vereador (se não me falha a memória, o presidente da câmara), chegou todo sorridente com aquela Chave enorme nas mãos. O porteiro do condomínio anunciou a visita do sujeito, deixando Hilda irritada.

“Que petulância!”

Ela então, como costumava fazer em momentos assim, preparou sua performance: foi até o quarto e se “disfarçou” de velhinha. Sim, à época Hilda já tinha quase 70 anos de idade, mas seu espírito jamais faria alguém confundi-la com uma “velhinha”. Por isso, pegou duma bengala, jogou um xale sobre os ombros, encurvou-se e saiu caminhando como velhinha caquética até a entrada da casa, onde o vereador a esperava.

“Dona Hilda!”, começou ele, efusivo. “Vim lhe entregar a Chave da…”

“E o meu IPTU?”, cortou ela, seca.

Ele, pego de surpresa, gaguejou: “Mas, dona Hilda, nós… eu não tenho poder para isso… Vim apenas porque a Câmara resolveu lhe prestar uma homena…”

“O senhor por acaso já leu meus livros?”

Agora sim ele ficou branco. Engoliu em seco: “Não, senhora, nunca li nenhum dos seus livros”.

“Então, ponha-se daqui para fora. Meus leitores já me homenageiam quando lêem meus livros.”

O vereador ofendeu-se:

“Vim até aqui de boa vontade lhe prestar uma homenagem, lhe fazer um favor, e a senhora…”

“Favor o senhor faria se me chupasse a cona”, berrou ela, brandindo a bengala.

O vereador ficou roxo, não sabia onde enfiar a cara.

“Por favor, retire-se da minha casa”, tornou ela, com dignidade. “Vocês querem que eu pague uma fortuna para morar na minha própria casa e ainda acham que vão me comprar com uma chave idiota que não abre porta alguma? Pois diga a seus pares que os mandei enfiar, um de cada vez, a chave em seus respectivos cus. O senhor faça o mesmo.”

E então, desfazendo a corcunda, deu as costas ao homem e, pisando firme, imponente, caminhou para dentro de casa.

Até hoje ninguém sabe em qual excelentíssimo fiofó foi parar a chave.

Ngozi Okonjo-Iweala: “Quer ajudar a África? Faça negócios aqui”.

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Trecho: « (…) As pessoas na Africa não estão mais dispostas a tolerar líderes corruptos. (…) Iniciamos um programa que retirava o estado das empresas nas quais não tinham função alguma — que não eram de sua competência. O estado não deve se envolver com os negócios de produção de bens e serviços porque é ineficiente e incompetente. Assim decidimos privatizar várias de nossas empresas. (…) Os africanos, depois — estão cansados, estamos cansados de ser objeto de caridade e ajuda de todo mundo. Somos gratos, mas sabemos que podemos tomar conta de nosso próprio destino se tivermos a determinação de reformar. O que está acontecendo em muitos países africanos é que entendem que ninguém pode fazer nada por nós. Somos nós que temos que agir. Podemos convidar sócios que nos apoiem, mas nós temos que começar. (…) A melhor maneira de ajudar os africanos nos dias de hoje é os ajudar a se tornarem independentes. E a melhor maneira de fazer isso é ajudar a criar empregos. Não vejo problema em querer combater a malária e doar dinheiro para salvar vidas de crianças. Não é isso que estou dizendo. Isso é bom. Mas imaginem o impacto em uma família, se os pais puderem trabalhar e assegurar que seus filhos irão para a escola, que eles mesmos podem comprar remédios para combater as doenças. Se pudermos investir em lugares onde pode-se ganhar dinheiro enquanto criamos empregos e ajudamos as pessoas a serem independentes, não é isso uma oportunidade maravilhosa? Não é essa a trilha a percorrer? E gostaria de dizer que algumas das melhores pessoas para se investir no continente são as mulheres. (…) Porém, muitos deles estão sem capital para expandir, porque ninguém tem fé em outros países que podemos fazer o que for preciso. Ninguém pensa em termos de mercado. Ninguém pensa que as oportunidades existem. Mas aqui estou eu, alertando a todos, se perderem a barca agora, perderão para sempre.(…)»
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Ngozi Okonjo-Iweala é uma economista nigeriana que serviu como Ministra de Finanças da Nigéria por dois mandatos.

Outro post no mesmo espírito: James Shikwati: “Pelo amor de Deus, parem de ajudar a África!”.

J.R.R. Tolkien fala sobre o casamento e as relações entre os sexos

J.R.R. Tolkien

De uma carta para seu filho Michael Tolkien

6-8 de março de 1941

Os relacionamentos de um homem com as mulheres podem ser puramente físicos (na verdade eles não podem, é claro, mas quero dizer que ele pode recusar-se a levar outras coisas em consideração, para o grande dano de sua alma (e corpo) e das delas); ou “amigáveis”; ou ele pode ser um “amante” (empenhando e combinando todos os seus afetos e poderes de mente e corpo em uma emoção complexa poderosamente colorida e energizada pelo “sexo”). Este é um mundo decaído. A desarticulação do instinto sexual é um dos principais sintomas da Queda. O mundo tem “ido de mal a pior” ao longo das eras. As várias formas sociais mudam, e cada novo modo tem seus perigos especiais: mas o “duro espírito da concupiscência” vem caminhando por todas as ruas, e se instalou em todas as casas, desde que Adão caiu. Deixaremos de lado os resultados “imorais”. Para esses você não deseja ser arrastado. À renúncia você não tem nenhum chamado. “Amizade”, então? Neste mundo decaído, a “amizade” que deveria ser possível entre todos os seres humanos é praticamente impossível entre um homem e uma mulher. O diabo é incessantemente engenhoso, e o sexo é seu assunto favorito. Ele é da mesma forma bom tanto em cativá-lo através de generosos motivos românticos, ou ternos, quanto através daqueles mais vis ou mais animais. Essa “amizade” tem sido tentada com freqüência: um dos dois lados quase sempre falha. Mais tarde na vida, quando o sexo esfria, tal amizade pode ser possível. Ela pode ocorrer entre santos. Para as pessoas comuns ela só pode ocorrer raramente: duas almas que realmente possuam uma afinidade essencialmente espiritual e mental podem acidentalmente residir em um corpo masculino e em um feminino e ainda assim podem desejar e alcançar uma “amizade” totalmente independente de sexo. Porém, ninguém pode contar com isso. O outro parceiro(a) irá desapontá-la(-lo), é quase certo, ao se “apaixonar”. Mas um rapaz realmente não quer (via de regra) “amizade”, mesmo que ele diga que queira. Existem muitos rapazes (via de regra). Ele quer amor inocente, e talvez ainda irresponsável. Ail Ail que sempre o amor foi pecado!, como diz Chaucer. Então, se ele for cristão e estiver ciente de que há tal coisa como o pecado, ele desejará saber o que fazer a respeito disso.

Há, na nossa cultura ocidental, a romântica tradição cavalheiresca ainda forte, apesar de que, como um produto da cristandade (porém de modo algum o mesmo que a ética cristã), os tempos são hostis a ela. Tal tradição idealiza o “amor” — e, ademais, ele pode ser muito bom, uma vez que ele abrange muito mais do que prazer físico e desfruta, se não de pureza, pelo menos de fidelidade, e abnegação, “serviço”, cortesia, honra e coragem. Sua fraqueza, sem dúvida, é que ele começou como um jogo artificial de cortejo, uma maneira de desfrutar o amor por si só sem referência (e, de fato, contrário) ao matrimônio. Seu centro não era Deus, mas Divindades imaginárias, o Amor e a Dama. Ele tende ainda a tornar a Dama uma espécie de divindade ou estrela guia — do antiquado “sua divindade” = a mulher que ele ama — o objeto ou a razão de uma conduta nobre. Isso é falso, é claro, e na melhor das hipóteses fictício. A mulher é outro ser humano decaído com uma alma em perigo. Mas, combinado e harmonizado com a religião (como o era há muito tempo, quando produziu boa parte daquela bela devoção à Nossa Senhora, que foi o modo de Deus de refinar em muito nossas grosseiras naturezas e emoções masculinas, e também de aquecer e colorir nossa dura e amarga religião), tal amor pode ser muito nobre. Ele produz então o que suponho que ainda seja sentido, entre aqueles que mantêm ainda que um vestígio de cristianismo, como o ideal mais alto de amor entre um homem e uma mulher. Porém, eu ainda acho que ele possui perigos. Ele não é completamente verdadeiro e não é perfeitamente “teocêntrico”. Leva (ou, de qualquer maneira, levou no passado) o rapaz a não ver as mulheres como elas realmente são, como companheiras em um naufrágio, e não como estrelas guias. (Um resultado observado é que na verdade ele faz com que o rapaz torne-se cínico.) Leva-o a esquecer os desejos, necessidades e tentações delas. Impõe noções exageradas de “amor verdadeiro”, como um fogo vindo de fora, uma exaltação permanente, não-relacionado à idade, à gestação e à vida simples, e não-relacionado à vontade e ao propósito. (Um resultado disso é fazer com que os jovens — homens e mulheres — procurem por um “amor” que os manterá sempre bem e aquecidos em um mundo frio, sem qualquer esforço da parte deles; e o romântico incurável continua procurando até mesmo na sordidez das cortes de divórcio).

As mulheres realmente não têm parte em tudo isso, embora possam usar a linguagem do amor romântico, visto que ela está tão entrelaçada em todas as nossas expressões idiomáticas. O impulso sexual torna as mulheres (naturalmente, quando não-mimadas, mais altruístas) muito solidárias e compreensivas, ou especialmente desejosas de assim o serem (ou de assim parecerem), e muito predispostas a ingressarem em todos os interesses, na medida do possível, de gravatas à religião, do jovem pelo qual estejam atraídas. Nenhuma intenção necessariamente de ludibriar — puro instinto: o instinto serviente de esposa, generosamente aquecido pelo desejo e um sangue jovem. Sob esse impulso, elas de fato podem alcançar com freqüência um discernimento e compreensão extraordinários, até mesmo de coisas que em outras circunstâncias estariam fora de seu âmbito natural: pois é o dom delas serem receptivas, estimuladas, fertilizadas (em muitos outros aspectos que não o físico) pelo homem. Todo professor sabe disso. O quão rápido uma mulher inteligente pode ser ensinada, captar as idéias dele, ver seu motivo — e como (com raras exceções) elas não conseguem ir além quando deixam a tutela dele, ou quando param de ter um interesse pessoal nele. Mas esse é o caminho natural delas para o amor. Antes que a jovem perceba onde está (e enquanto o jovem romântico, quando ele existe, ainda está suspirando), ela pode de fato “se apaixonar”, o que para ela, uma jovem ainda pura, significa querer se tornar a mãe dos filhos do jovem, mesmo que esse desejo não esteja de modo algum claro ou explícito a ela. E então acontecerão coisas, e elas podem ser muito dolorosas e prejudiciais caso dêem errado, especialmente se o jovem quisesse apenas uma estrela guia ou divindade temporária (até que fosse atrás de uma mais brilhante), e estivesse simplesmente desfrutando da lisonja da simpatia belamente temperada com um estímulo do sexo — tudo bastante inocente, é claro, e muito distante da “sedução”.

Você pode encontrar na vida (como na literatura*) mulheres que são volúveis, ou mesmo puramente libertinas — não me refiro a um simples flerte, o treino para o combate real, mas às mulheres que são tolas demais até mesmo para levar o amor a sério, ou que são de fato tão depravadas ao ponto de desfrutar as “conquistas”, ou mesmo que apreciem causar dor — mas essas são anormalidades, embora falsos ensinamentos, uma má criação e costumes deturpados possam encorajá-las. Muito embora as condições modernas tenham modificado as circunstâncias femininas, e o detalhe do que é considerado decoro, elas não modificaram o instinto natural. Um homem tem um trabalho de toda uma vida, uma carreira (e amigos homens), todos os quais podem (e o fazem, quando ele possui alguma coragem) sobreviver ao naufrágio do “amor”. Uma mulher jovem, mesmo uma “economicamente independente”, como dizem agora (o que na verdade geralmente significa subserviência econômica a empregadores masculinos ao invés de subserviência a um pai ou a uma família), começa a pensar no “enxoval” e a sonhar com um lar quase que imediatamente. Se ela realmente se apaixonar, o navio naufragado pode de fato acabar nas rochas. De qualquer maneira, as mulheres são em geral muito menos românticas e mais práticas. Não se iluda com o fato de que elas são mais “sentimentais” no uso das palavras — mais espontâneas com “querido” e coisas do gênero. Elas não querem uma estrela guia. Elas podem idealizar um simples jovem como um herói, mas elas não precisam realmente de tal deslumbramento tanto para se apaixonar como para permanecerem assim. Se elas possuem alguma ilusão, é a de que podem “remodelar” os homens. Elas aceitarão conscientemente um canalha e, mesmo quando a ilusão de reformá-lo mostrar-se vã, continuarão a amá-lo.

Elas são, é claro, muito mais realistas sobre a relação sexual. A não ser que sejam corrompidas por péssimos costumes contemporâneos, elas via de regra não falam de modo “obsceno”; não porque sejam mais puras do que os homens (elas não são), mas porque não acham isso engraçado. Conheci aquelas que aparentavam achar isso engraçado, mas é fingimento. Tais coisas podem lhes ser intrigantes, interessantes, atraentes (em boa parte atraentes demais): mas é um interesse natural honesto, sério e óbvio; onde está a graça?

* A literatura tem sido (até o romance moderno) um negócio principalmente masculino, e nela há muito sobre o “belo e falso”. Isso, em geral, é uma calúnia. As mulheres são humanas e, portanto, capazes de perfídia. Mas dentro da família humana, comparadas com os homens, elas geral ou naturalmente não são as mais pérfidas. Muito pelo contrário. Exceto pelo fato de que as mulheres são capazes de sucumbir se lhes for pedido para “esperarem” por um homem por tempo demais e enquanto a juventude (tão preciosa e necessária para uma futura mãe) passa rapidamente. Na verdade, não deveria se pedir que esperassem.

Elas precisam, é claro, ser ainda mais cuidadosas nas relações sexuais, no que diz respeito a todos os contraceptivos. Erros lhes causam danos física e socialmente (e matrimonialmente). Mas elas são instintivamente monogâmicas, quando não-corrompidas. Os homens não são… Não há por que fingir. Os homens simplesmente não o são, não por sua natureza animal. A monogamia (ainda que há muito venha sendo fundamental às nossas idéias herdadas) é para nós, homens, uma porção de ética “revelada”, em concordância com a fé e não com a carne. Cada um de nós poderia gerar de forma saudável, por volta dos nossos 30 anos, algumas centenas de filhos e apreciar o processo. Brigham Young (acredito) era um homem feliz e saudável. Este é um mundo decaído, e não há consonância entre nossos corpos, mentes e almas.

Entretanto, a essência de um mundo decaído é que o melhor não pode ser alcançado através do divertimento livre, ou pelo o que é chamado “auto-realização” (em geral um belo nome para auto-indulgência, completamente hostil à realização de outros aspectos da personalidade), mas pela negação, pelo sofrimento. A fidelidade no casamento cristão acarreta nisto: grande mortificação. Para um homem cristão não há saída. O casamento pode ajudar a santificar e direcionar os desejos sexuais dele ao seu objeto apropriado; a graça de tal casamento pode ajudá-lo na luta, mas a luta permanece. A graça não irá satisfazê-lo — tal como a fome pode ser mantida à distância com refeições regulares. Ela oferecerá tantas dificuldades à pureza própria desse estado quanto fornece facilidades. Homem algum, por mais que amasse verdadeiramente sua noiva quando jovem, viveu fiel a ela como uma esposa em mente e corpo sem um exercício consciente e deliberado da vontade, sem abnegação. Isso é dito a poucos — mesmo àqueles educados “na Igreja”. Aqueles de fora parecem que raramente ouviram tal coisa. Quando o deslumbramento desaparece, ou simplesmente diminui, eles acham que cometeram um erro, e que a verdadeira alma gêmea ainda está para ser encontrada. A verdadeira alma gêmea com muita freqüência mostra-se como sendo a próxima pessoa sexualmente atrativa que aparecer. Alguém com quem poderiam de fato ter casado de uma maneira muito proveitosa se ao menos —. Por isso o divórcio, para fornecer o “se ao menos”. E, é claro, via de regra eles estão bastante certos: eles cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio no fim de sua vida poderia fazer um julgamento seguro a respeito de com quem, entre todas as oportunidades possíveis, ele deveria ter casado da maneira mais proveitosa! Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são erros: no sentido de que quase certamente (em um mundo mais perfeito, ou mesmo com um pouco mais de cuidado neste mundo muito imperfeito) ambos os parceiros poderiam ter encontrado companheiros mais adequados. Mas a “verdadeira alma gêmea” é aquela com a qual você realmente está casado. Na verdade, você faz muito pouco ao escolher: a vida e as circunstâncias encarregam-se da maior parte (apesar de que, se há um Deus, esses devem ser Seus instrumentos ou Suas aparências). É notório que, na realidade, os casamentos felizes são mais comuns quando a “escolha” feita pelos jovens é ainda mais limitada, pela autoridade dos pais ou da família, contanto que haja uma ética social de pura responsabilidade não-romântica e de fidelidade conjugal. Mas mesmo em países onde a tradição romântica até agora afetou os arranjos sociais a ponto de fazer as pessoas acreditarem que a escolha de um parceiro diz respeito unicamente aos jovens, apenas a mais rara das sortes junta o homem e a mulher que, de certo modo, são realmente “destinados” um ao outro e capazes de um enorme e esplêndido amor. A idéia ainda nos fascina, agarra-nos pelo pescoço: um grande número de poemas e histórias foi escrito sobre o tema, mais, provavelmente, do que o total de tais amores na vida real (mesmo assim, a maior dessas histórias não fala do casamento feliz de tais grandes amantes, mas de sua trágica separação, como se mesmo nessa esfera o verdadeiramente grande e esplêndido neste mundo decaído esteja mais propício a ser alcançado pelo “fracasso” e pelo sofrimento). Em tal inevitável grande amor, freqüentemente um amor à primeira vista, temos uma visão, suponho, do casamento como este deveria ser em um mundo não-decaído. Neste mundo decaído, temos como nossos únicos guias a prudência, a sabedoria (rara na juventude, tardia com a idade), um coração puro e fidelidade de vontade

Minha própria história é tão excepcional, tão errada e imprudente em quase todos os aspectos que fica difícil aconselhar prudência. Ainda assim, casos difíceis dão maus exemplos; e casos excepcionais nem sempre são bons guias para outros. Pois o que é válido aqui é um pouco de autobiografia — nesta ocasião direcionada principalmente às questões da idade e das finanças. Apaixonei-me por sua mãe por volta dos 18 anos. De maneira muito genuína, como se mostrou — embora, é claro, falhas de caráter e temperamento tenham feito com que eu com freqüência caísse abaixo do ideal com o qual eu havia começado. Sua mãe era mais velha do que eu e não era uma católica. Completamente lamentável, conforme vislumbrado por um guardião1. E isso foi de certa forma muito lamentável; e de certo modo muito ruim para mim. Essas coisas são cativantes e nervosamente exaustivas. Eu era um garoto inteligente lutando contra as dificuldades de se conseguir uma bolsa de estudos (muito necessária) em Oxford. As tensões combinadas quase causaram um colapso nervoso. Fracassei nos meus exames e (como anos mais tarde meu professor me contou) embora eu devesse ter conseguido uma boa bolsa, acabei apenas com uma bolsa parcial de £60 em Exeter: apenas o suficiente para começar (ajudado por meu querido e velho guardião), junto com uma bolsa de saída do colégio da mesma quantia. E claro, havia um lado de crédito, não visto tão facilmente pelo guardião. Eu era inteligente, mas não diligente ou concentrado em apenas uma única coisa; grande parte do meu fracasso foi devido simplesmente ao fato de não me esforçar (pelo menos não em literatura clássica) não porque eu estava apaixonado, mas porque eu estava estudando outra coisa: gótico e não sei mais o quê2. Por ter uma criação romântica, fiz de um caso de menino-e-menina algo sério, e o tornei a fonte do empenho. Fisicamente covarde por natureza, passei de um coelhinho desprezado do segundo time da casa para capitão do time principal em duas temporadas. Todo esse tipo de coisa. Porém, surgiram problemas: tive de escolher entre desobedecer e magoar (ou enganar) um guardião que havia sido um pai para mim, mais do que a maioria dos pais verdadeiros, mas sem qualquer obrigação, e “desistir” do caso de amor até que eu completasse 21. Não me arrependo de minha decisão, embora ela tenha sido muito difícil para minha amada. Mas não foi minha culpa. Ela estava perfeitamente livre e sob nenhum voto a mim, e eu não teria reclamação justa alguma (exceto de acordo com o código romântico irreal) se ela tivesse se casado com outra pessoa. Por quase três anos eu não vi ou escrevi à minha amada. Foi extremamente difícil, doloroso e amargo, especialmente no início. Os efeitos não foram completamente bons: voltei à leviandade e à negligência, e desperdicei boa parte do meu primeiro ano na Faculdade. Mas não acredito que qualquer outra coisa teria justificado um casamento com base em um romance de garoto; e provavelmente nada mais teria fortalecido suficientemente a vontade de conferir permanência a tal romance (por mais genuíno que fosse um caso de amor verdadeiro). Na noite do meu aniversário de 21 anos, escrevi novamente à sua mãe — 3 de janeiro de 1913. Em 8 de janeiro voltei para ela, e nos tornamos noivos, informando o fato a uma atônita família. Esforcei-me e estudei mais (tarde demais para salvar o Bach3, do desastre) — e então a guerra eclodiu no ano seguinte, enquanto eu ainda tinha um ano para cursar na faculdade. Naqueles dias os garotos se alistavam ou eram desprezados publicamente. Era um buraco desagradável para se estar, especialmente para um jovem com imaginação demais e pouca coragem física. Sem diploma; sem dinheiro; noiva. Suportei o opróbrio e as insinuações cada vez mais diretas dos parentes, fiquei acordado até mais tarde e consegui uma Primeira Classe no Exame Final em 1915. Atrelado ao exército: julho de 1915. Considerei a situação intolerável e me casei em 22 de março. Podia ser encontrado atravessando o Canal (eu ainda tenho os versos que escrevi na ocasião!)4 para a carnificina do Somme.

Pense na sua mãe! No entanto, não creio agora por um momento sequer que ela estivesse fazendo algo mais do que lhe deveria ser pedido para fazer — não que isso diminua o valor do que foi feito. Eu era um rapaz jovem, com um bacharelado regular e capaz de escrever poesia, algumas libras minguadas por ano (£20 — 40)5 e sem perspectivas, um Segundo Ten. seis dias por semana na infantaria, onde as chances de sobrevivência estavam severamente contra você (como um subalterno). Ela se casou comigo em 1916 e John nasceu em 1917 (concebido e carregado durante o ano da fome de 1917 e da grande campanha U-boat) por volta da batalha de Cambrai, quando o fim da guerra parecia tão distante quanto agora. Vendi, e gastei para pagar a clínica de repouso, a última de minhas poucas ações sul-africanas, “meu patrimônio”.

Da escuridão da minha vida, tão frustrada, coloco diante de você a única grande coisa para se amar sobre a terra: o Sagrado Sacramento… Nele você encontra romance, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os seus amores sobre a terra; e, mais do que isso, a Morte: pelo paradoxo divino, que encerra a vida e exige a renúncia de tudo, e ainda assim pelo gosto (ou antegosto) somente do qual o que você procura em seus relacionamentos terrestres (amor, fidelidade, alegria) pode ser mantido, ou aceitar aquele aspecto.

Notas:
1. Guardião de Tolkien. O Padre Francis Morgan desaprovava seu caso de amor clandestino com Edith Bratt.
2. Tolkien ficou empolgado nos dias de colégio ao descobrir a existência do idioma gótico; vide a carta n° 272.
3. Bacharelado em Letras Clássicas, no qual Tolkien recebeu uma Segunda Classe.
4. A verdadeira data da travessia do Canal feita por Tolkien com seu batalhão foi 6 de junho de 1916. O poema a que ele se refere, datado “Étaples, Pas de Calais, junho de 1916”, é intitulado “A Ilha Solitária”, e possui o subtítulo “Para a Inglaterra”, embora ele também esteja relacionado à mitologia de O Silmarillion. O poema foi publicado no Leeds University Verse 1914-1924 [“Versos da Universidade de Leeds 1914-1924”] (Leeds, na Swan Press, 1924), p.
5. Tolkien herdou uma pequena renda de seus pais, proveniente de ações em minas sul-africanas

Fonte: As Cartas de J.R.R. Tolkien, livro editado por Humphrey Carpenter. (Tradução: Gabriel Oliva Brum.)

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