palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Categoria: Mujeres Page 8 of 13

“Elegíada”, conto de Osman Lins

Esta é a verdade: agora eu estou só. Com mais um pouco, chegará a madrugada. As velas ficarão pálidas, os sinos dobrarão em tua homenagem; e, quando o sol vier, não iluminará teus olhos.

Mais algumas horas e nossos conhecidos te levarão para o Campo. Estarão um pouco tristes, mas não podem imaginar que imensa perda eu sofri. Dirão entre si: “Tinha de ser. Um deles havia que ir primeiro…” E acharão que já sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se extinguiu e que não tardarei a seguir-te. Não lhes ocorrerá talvez, que é justamente por ser velho que tua ida é mais triste. Se fora moço, minha saúde afastaria a dor. Mas eu estou velho. E muito só, abandonado – sou uma criança aflita, querida. Meus filhos acham agora que os superiores são eles; que devem governar-me. Fazem recolher-me cedo, não me permitem comer o que desejo e até ralham comigo. É um modo de mostrar que me amam. Mas eu não sinto grande profundidade nesse afeto. Há uma certa rispidez na maneira como eles procuram preservar-me, como se eu fosse meio tonto.

Também os netos, creio, não me querem como eu desejava. Sempre os imaginei como ingênuas crianças, as quais eu levaria pela mão a maravilhosas viagens e para quem inventaria histórias que ouviriam com prazer. Mas quase nunca eu os levo a passeio; e quando o faço, não consigo unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em língua codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que muitas vezes troçam de mim.) E se tento contar-lhes uma história, não me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os visito, pedem a bênção ao vovô e levam meu chapéu para guardar. Observo, contudo, que não se sentem à vontade quando me beijam a mão e que o júbilo deles se prende muito mais aos brinquedos que lhes levo. E eu os olho sorrindo, com amargura, e penso nos anos que nos distanciam e no afeto que eles mal supõem existir.

Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que não mais os possuo. Uns morreram; outros acharam na velhice um agradável pretexto para se tornarem brigões ou dementes; e o resto me aborrece pela insistência em me fazer acreditar ser bem mais velho que eles.

Só tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo, sem temor de parecer ridículo. Eras tu quem tinha a chave do meu caráter e do dom de encantar-me. (Mesmo a tua zombaria era uma forma de afeição.) E agora um duro silêncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mãos cruzadas, o lençol que te cobre, tuas feições tranqüilas. Sei que logo mais eles te levarão. Talvez, então, eu te beije a fronte. Não ignoro, porém, que me dói tua frieza de morta e é mais provável que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus cabelos — que eu vi, de abundantes e negros, rarearem e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles não mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais límpida, o nariz mais fino, as faces se encovaram, a carne está rígida e as pálpebras não as fechaste com a suavidade de sempre. Teu cabelo, porém, continua intato; quando sopra o vento, ainda esvoaça; está vivo, é o mesmo que penteavas pela manhã e soltavas à noite, antes de dormir. E agora se bem não os houvesses despenteado, tu dormes. E eu me senti pesaroso e grave, como tantas vezes me senti junto a nossos filhos, quando eles estavam doentes e o sono lhes chegava pela madrugada, após uma noite inquieta e eu ficava junto a eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas e punhas a mão em meu ombro e fazias com que me fosse deitar. Agora, eu não conhecerei mais a doçura desse gesto. Talvez, daqui há pouco, venha alguém — um filho ou vizinho — que me induza a afastar-me de ti e deitar-me. Mas, quem quer que seja, virá com palavras. Tu, não: vinhas com o teu silêncio, com tua tranqüilidade, e fazias com que eu dormisse. Mas quando despertava, eras tu quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei.

Também não falarei a ninguém de certas coisas que guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julgariam tonto. Não direi da emoção com que te vi, muitas vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas. Durante anos, quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te via sem nada de especial. Mas vinha um dia em que eu te descobria a intimidade nesse trabalho. Via o cuidado com que afastavas a poeira, a precisão com que punhas os jarros em seus lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; escutava teus passos e me comovia por ver como te entregavas a esses afazeres. E descobria um extremado amor nisso tudo, o que me fazia perceber como eras simples.

Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado muito e te deitaste cedo. Eu fiquei lendo, e, quando o sono veio, fechei as portas. Havia um silêncio tão grande! Os móveis brilhavam, não havia pó no chão; tudo em ordem, limpo, cuidado. Detive-me um instante à sala de jantar, como se pressentisse avizinhar-se um mistério. Contemplei o jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhido pela manhã. Senti tua presença diligente na limpeza, nas flores; o carinho que depositavas em tudo. E percebi que havia algo me envolvendo: cingia-me um princípio de angústia. Na cozinha, olhei para o fogo: apagara-se. Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava morto. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tão ridículo e sutil, tão difícil de expressar, que nunca te contei. Eu chorei, querida. Penso que sofri uma decepção obscura e súbita, uma espécie de dor ante a pouca duração da vida, da nossa vida – não sei; é possível também que houvesse sentido, ante a simplicidade com que vivias, algo semelhante à pena que às vezes nos aflige ante um folguedo de criança. Mas é difícil explicar. Talvez o que eu houvesse sentido fosse o presságio disto: de que virias a morrer, que nosso fogo não mais seria aceso pela tuas mãos e que nunca voltarias a colher flores para o nosso jarro. Seria? Que me dizes?

Oh! Mas eu estou delirando. Fitava-te tão intensamente, com tanta saudade, que já te supunha viva. Se eles soubessem disto, também sorririam de mim. Na minha idade, já não se pode ter pensamentos estranhos nem fazer confissões. Fica-se ridículo, querida. E eu tenho que aproveitar estes últimos momentos em que ainda estamos juntos. É a última oportunidade de falar-te, mesmo sem abrir os lábios, e contar as tolices que não contarei a ninguém. Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma coisa que não compreendo: os fatos culminantes de nossas vidas, aqueles que nunca poderíamos chegar a esquecer, perderam hoje esse privilégio. Nosso casamento não é mais importante que a lembrança conservada, como por milagre, de quando te vi, pouco antes da cerimônia, em teu traje de noiva. Tão bem me lembro como teus olhos brilhavam e como teu riso era alegre! E no momento em que fecharam a porta para teu primeiro parto, que eu não tive coragem de assistir? Antes, isso era um fato importante! Hoje, não: está no mesmo nível de um gesto teu ou de teu sorriso. Hoje ele é tão importante como a tua alegria – esse resto de infância que nunca perdeste – a tua alegria quando eu te presenteava com uma caixa de bombons ou uma fruta. Às vezes, eu te trazia biscoitos. Tu os guardavas e eu te censurava, porque me parecias avara, pois nem os comia de uma vez, nem os repartias com outrem. Mas eu te censurava sem rancor, porque sabia que a tua avareza era um modo de prolongar, ingenuamente, uma lembrança minha. Também não poderei contar isto a ninguém. Dirão que me preocupo com migalhas ou invento qualidades que não tinhas. E agora, querida, com quem repartirei estas memórias? Tu te vais e o peso do passado é muito grande para que eu o suporte sozinho. As palavras – todos sabem – são mortalmente vazias para exprimir certas coisas. Quando nos sentávamos, sós, a recordar nossa vida, não eram elas que restauravam os fatos: éramos nós.

E agora, que já não existes, com quem poderei falar de coisas triviais e amadas, como teu pesar, por teres quebrado involuntariamente um presente que eu te dera e nossa alegria na primeira viagem de trem? Com quem poderia falar disto? Com quem irei comentar teu hábito de, quando eu me esquecia dos óculos, deixares que eu chegasse à esquina para só então me chamar? E eu vinha, ralhava contigo, perguntava quando deixarias de ser criança. Mais tarde lembrava-me do episódio e me ria, disfarçadamente, com medo que me vissem e dissessem: “Olha o velho rindo sem motivo…”

Mas eu não devia estar me lembrando dessas coisas. Talvez alguém tenha visto meu sorriso e julgará que não sinto a tua falta. “Ele não chorou — pensará. E agora, sorri. Está maluco; ou então nem sentiu.” Decerto, minha dor não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada e profunda… E vou ficar tão sozinho, querida…

_____

Conto extraído do livro Os Gestos / Osman Lins. — 4ªed. — São Paulo: Moderna, 2003. Págs.92-97.

Perdoando Deus — Clarice Lispector

“Perdoando Deus”, um conto de Clarice Lispector, do livro Felicidade clandestina, lido por Aracy Balabanian.

Roberto Carlos, o dito cujo carcará romantiquento

Da adolescência até uns, sei lá, vinte e seis anos de idade, eu não podia ouvir Roberto Carlos de jeito nenhum, afinal, achava aquela cantoria toda breguérrima, uma coisa completamente envelhecida e ultrapassada. Sabe, né? Música do pai, da mãe, do tio, da avó, enfim, daquela gente que reclama do seu rock e das suas músicas eletrônicas.

O primeiro passo para mudar essa visão ocorreu em São Paulo, em 1998, quando a filha de uma namorada — namorada esta doze anos mais velha do que eu — chegou felicíssima da praça Benedito Calixto com vários discos — vinis, véio, vinis — todos do dito cujo carcará romantiquento. Como era possível? A filha adolescente da minha namorada ouvindo as músicas dos “coroas”? Seriam os hormônios? Muito esquisito. Devia haver algo de muito estranho no reino da menarca.

Porém, o tempo passou e, hoje, não posso ouvir Roberto Carlos de jeito nenhum simplesmente porque me identifico tanto TAnto TANto TANTO com certas letras que, se insistir em ouvi-lo, serei capaz ou de dar um tiro na cabeça de tanta melancolia e dor de cotovelo, ou de sair gritando “Jesus Cristo, eu estou aqui” pela rua, ou de sair por aí mandando brasa, mora? O que seria péssimo, afinal, segundo noto pela atual onda politicamente correta, mandar brasa já não é algo aceitável socialmente.

Sim, sim. Todo esse preâmbulo para dizer que eu aprendi a gostar do Roberto Carlos. E, para piorar (tá! tá! para melhorar), ainda incluí suas músicas no meu repertório de chuveiro.

_____
Publicado no Digestivo Cultural.

Vinicius de Moraes — A brusca poesia da mulher amada (III)

A brusca poesia da mulher amada (III)

A Nelita

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido
herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a
bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco
quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as
confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos
ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves.
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas… Ei-la que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo… Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!

Rio de Janeiro, 1950.

Alice Herz-Sommer, pianista e sobrevivente do Holocausto

Alice Herz-Sommer, pianista, professora de música e a mais antiga sobrevivente do Holocausto: “Beethoven… ele é um milagre”.

(Via @dennisd.)

Walter Hugo Khouri e a beleza

Walter Hugo Khouri é nosso grande diretor-autor. Teve uma longa e produtiva carreira, sempre fiel a si mesmo e às suas obsessões. Ninguém melhor do que ele para narrar a trajetória daquele que, contaminado pelo mais nefando niilismo, entrega-se ao vórtice hedonista do sexo até atingir as profundidades do abismo. (E dizer isso me lembra o olhar demoníaco de Tarcísio Meira ao final do filme Eu, de 1987.)

Há alguns anos, num festival de cinema qualquer, eu e Cássia Queiroz tivemos uma conversa interessante com o crítico Rubens Ewald Filho. Havíamos acabado de assistir a um desses filmes supostamente mais brasileiros que todos os outros, supostamente mais realista, mais artístico e assim por diante. Claro, o filme era um porre, tinha aquele discurso político que faria Hugo Chávez bater palmas e estava coalhado de gente feia – feia em todos os sentidos. Até os atores bonitos foram enfeiados para parecerem mais “reais”. (Porque, você sabe, para esse tipo de “artista” o ser humano é um vírus que ataca a Terra, é feio por natureza.) Rubens Ewald nos disse mais ou menos assim: “Não sei por que esse diretor gosta tanto do feio. O cinema sempre teve uma grande preocupação com a beleza da imagem, sempre preferiu os protagonistas bonitos, e isso porque as pessoas gostam de sair do comum, gostam de apreciar o belo. Mesmo os atores feios, quando protagonistas, ou quando expressavam um valor maior, tornavam-se belos nos filmes clássicos. Mas aqui há esses cineastas que gostam de fazer o contrário, dizendo que assim retratam mais fielmente a ‘realidade’. Mas um filme não é a ‘realidade’. É um filme, uma obra de arte. Os espectadores querem a beleza, mesmo que ela esteja perdida em meio ao sórdido”.

Quem assiste aos filmes de Walter Hugo Khouri sabe que ele mostrou alguns dos mais feios e obscuros segredos da personalidade humana mediante belas imagens. E com belíssimas mulheres.

Abertura do filme Eros, o deus do amor (1981), na qual vemos as mais belas atrizes da época e uma das melhores descrições da cidade de São Paulo:

Cena do filme Palácio dos anjos (1970), um filme sobre prostituição mil vezes mais impactante que um Bruna Surfistinha (moral do filme Bruna Surfistinha: “Seja puta, porque é ótimo, mas não ponha tudo a perder cheirando cocaína!”):

E até Rita Lee, junto aos Mutantes, iluminou um de seus filmes: As Amorosas (1968):

Walter Hugo Khouri (1929-2003): o melhor diretor-autor brasileiro de todos os tempos.

Hilda Hilst na TV Cultura: “Este livro é uma banana”

O Caderno Rosa de Lori Lamby não é um livro, é uma banana que estou dando para os editores, para o mercado editorial.” — Hilda Hilst.

Entrevista concedida em 1990.

Page 8 of 13

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén