Trecho da minha palestra gravada para o Congresso Nacional de Literatura e História Pessoal, o ConaLit.
J.R.R. Tolkien tem razão: neste mundo decaído, um homem e uma mulher devem amar-se, não como se fossem a “estrela guia” um do outro — porque afinal são ambos humanos, demasiado humanos —, mas, sim, como se fossem dois náufragos agarrados à mesma tábua numa noite escura.
Deus é que é a “estrela guia”. E sobreviver espiritualmente a esse naufrágio terrestre há de ser muito romântico… (Isso talvez explique o sucesso sem fronteiras do filme “Titanic”…)
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Imagem: O casal de náufragos, de Bohuslav Barlow.
Quando tomaram toda aquela terra, eu calei-me, porque, afinal, eu não possuía terras. Quando eles descuraram a segurança, eu calei-me, porque, afinal, nenhum dos meus familiares sofreu latrocínio. Quando eles transformaram a educação superior em catequese progressista, eu não me importei, porque, afinal, eu já havia me formado e a universidade já não significava nada para mim. Quando eles desapropriaram imóveis nas cidades, eu não protestei, porque, afinal, eu não possuía imóveis. Quando contrataram médicos cubanos especialistas em doutrinação socialista, eu não protestei, porque, afinal, eu não era médico e o socialismo já era coisa do passado. Quando fizeram uma lista negra com jornalistas de oposição, todos conservadores, eu não reclamei, porque, afinal, eu não era jornalista e muito menos conservador. Quando roubaram dinheiro da Petrobrás, não me incomodei, porque, afinal, eu não possuía ações da Petrobrás. Quando indicaram juízes para o STF escolhidos por razões ideológicas, e não por mérito, calei-me, porque, afinal, nunca tive problemas com a justiça. Quando liberaram o uso de drogas apenas para financiar as atividades das FARC, eu não me escandalizei, porque, afinal, não uso drogas e a Colômbia fica longe daqui. Quando demitiram meus colegas cuja visão política era de direita, eu não me comovi, porque, afinal, eu não era de direita. Quando proibiram as orações em ambiente de trabalho, e os crucifixos nas paredes dos escritórios, eu não me chateei, porque, afinal, nunca fui religioso. Quando aumentaram os impostos para 60% do PIB, não me indignei, porque, afinal, não trabalho no setor privado — muito pelo contrário: sou funcionário público, ganho bem, tenho estabilidade, e uma maior arrecadação poderia significar mais aumentos no meu salário. Quando o país finalmente quebrou e eles resolveram colocar todos os idiotas na rua, além de mandar os idiotas que reclamaram para trás das grades, eu me fodi, porque, afinal, quem não era idiota já havia deixado o país e não sobrara mais ninguém para protestar…
Yuri Vieira
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« Em grego, idios quer dizer “o mesmo”. Idiotes, de onde veio o nosso termo “idiota”, é o sujeito que nada enxerga além dele mesmo, que julga tudo pela sua própria pequenez.»
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« Macabéa [A hora da estrela], que, a exemplo de Clarice [Lispector], medita sobre o nada e “banha-se no não”, é uma espécie de santa: “Na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou”. Macabéa “reduzira-se a si. Também eu”, escreve Clarice, “de fracasso em fracasso, me reduzi a mim mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus”.
“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?”
« A pergunta torturante persiste. “Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia”, Clarice escreveu sobre Macabéa. Mas finalmente ela própria sabia quem Ele era. Quando o livro saiu, em outubro de 1977, ela mandou um exemplar a Alceu Amoroso Lima, o mesmo escritor católico que, com o pseudônimo Tristão de Athayde, fizera um ensaio introdutório para a primeira edição de ‘O lustre’. Naquele livro, ele escrevera, 31 anos antes, “há a mais completa ausência de Deus”. Agora ele recebia um exemplar de ‘A hora da estrela’ com uma inscrição na caligrafia trêmula de Clarice: “Eu sei que Deus existe”. [Clarice morreu dois meses depois]»
Trecho da biografia Clarice, escrita por Benjamin Moser.
Quando ele a penetrou por trás, ela perguntou:
— Em quem você vai votar?
Ficou aturdido por alguns segundos, sem saber em qual cintura colocar as mãos: na própria ou na dela?
— Que pergunta é essa? — resmungou, contrariado. — Isso lá é hora de falar sobre as eleições?
— Você vai votar na Marina?
Ele brochou instantaneamente.
— Pelo amor de Deus, Sílvia! Isso é coisa que se faça? Acabou com meu tesão.
— Então você vai votar na Dilma, né.
— Puta merda! Agora vou precisar de uma pinça pra poder mijar.
— Nossa, desculpa.
— Desculpa, vírgula. Você teria me atrapalhado muito menos se tivesse falado da menina do Exorcista e virado a cabeça para trás.
— Ai, Jorge, credo! É que eu não sabia que você vai votar no Aécio.
— Eu não voto em progressista, gata! — soltou, irritado. — A não ser, talvez, no segundo turno, quando for necessário votar no menos daninho de todos. Agora pára com isso e me diz algo que me deixe animado de novo.
Ela ficou em silêncio, absorta. Desconfiado, Jorge espiou por cima do ombro dela.
— Ah, não! Não acredito que você está no Facebook! Desliga o celular, cazzo!
— Calma. Só vou responder essa enquete sobre as eleições e já desligo.
Ele se levantou e começou a vestir a cueca.
— Ok, fica aí. Eu vou dormir porque amanhã preciso acordar mais cedo.
Ele se deitou de lado, dando as costas para a esposa, que a essa altura estava postando uma mensagem no grupo feminino do WhatsApp do qual fazia parte: “Gente, se vocês têm um marido conservador que não lhes dá descanso, descobri um jeito de escapulir dele muito melhor do que a desculpa da dor de cabeça!”.
Quando a mulher repentinamente entrou na sala, o marido, num acesso de pânico, bateu a tampa do laptop com tanta força que o frágil fecho de plástico chegou a quebrar-se e cair ao chão.
— O que você tava vendo aí? — perguntou, desconfiada.
— Nada não, meu bem. É que me lembrei que está na hora do jornal — e então esticou-se para pegar o controle da TV.
— Muito estranho isso. Faz tempo que você não se interessa pelas notícias.
Ele deu um sorriso amarelo: — Eu me interesso, sim. Eu não gosto é da abordagem desses telejornais, essa coisa chapa branca.
— Sei…
O marido ligou a TV e começou a zapear entre diversos canais de notícias. Na ânsia de mostrar-se impassível, quase assoviou. Atento, conteve-se a tempo.
— Posso acessar meu email no seu laptop? — tornou a esposa.
Ele fingiu desinteresse: — Ué, e seu celular?
— Está descarregado — a mulher respondeu, sentando-se ao lado dele e tentando pegar o laptop que ele ainda tinha no colo.
Ele esquivou-se: — Não, péra, eu tô logado na minha conta. Preciso terminar de salvar umas coisas na nuvem…
Indignada, pôs-se de pé, as mãos à cintura: — Você tava vendo site pornô, não tava?
O marido arregalou os olhos e, numa fração de segundos, pensou em todos os prós e contras da resposta que lhe veio à mente. Encarou a mulher e viu que ela poderia explodir a qualquer momento. Então teve certeza: aquela era a melhor resposta.
— Sim, meu bem, eu estava assistindo a vários vídeos pornôs.
Frustrada por ouvir o contrário do que esperava — tinha certeza de que ele negaria e então o safado iria ver só uma coisa — sentiu o sangue baixar de temperatura. Mas ainda estava acima do normal.
— Você não tem vergonha?
— Desculpa, meu bem, era só um vídeo básico, um ménage entre um cara, uma garota e um travesti.
Agora foi ela quem arregalou os olhos: — O quê?! Você ficou louco? Um ménage entre quem?
— Um threesome, meu amor.
— Eu sei o que é um ménage! Não foi o que perguntei!
Ele deu o sorriso mais sem graça do mundo: — Tá, meu bem. Era um ménage entre um casal e um travesti.
— Que coisa nojenta! — quase gritou ela, tomando o controle remoto da mão dele e atirando-o em seu rosto.
— Calma, amor.
— Calma, vírgula: meu marido é um pervertido!!
— Vem cá, senta aqui — e ele a abraçou. — Nada disso significa nada na minha vida concreta. A verdade é que venho assistindo a vídeos pornôs há um bom tempo. E é como uma droga, nossa tolerância vai aumentando e então a gente precisa aumentar a dose, ver coisas diferentes.
Ela começou a chorar.
— Calma, meu bem. Nunca fiz nada disso na vida real, nem quero fazer. É só uma droga, já te disse. Agora que você sabe, eu vou dar um jeito de melhorar.
Ela conteve os soluços e, esfregando os olhos, disse com voz quase infantil: — Jura?
— Juro.
Querendo testá-lo, ela disse: — Talvez eu esteja muito distante de você. Ando muito cansada, chego tarde em casa. Você sabe que trabalho demais…
— Tá tudo bem, tá tudo bem…
— Não, não tá tudo bem. A gente podia ir pro quarto agora e brincar um pouco.
Ele sorriu cheio de contentamento: — Claro, vamo lá.
Foram e ela ficou muito feliz, pois ele demonstrou claramente que não tinha nada de gay. Aquele travesti do vídeo devia ser apenas uma espécie de dose a mais de heroína ou cocaína pornográfica, algo que o cérebro dele exigia para liberar mais hormônios prazerosos. Sim, sim, ele realmente falava a verdade. Dizem que o martelar dos mesmos estímulos, no decorrer do tempo, deixa de surtir efeito. Até a pornografia, quando cai na rotina, perde a razão de ser. A mesma tolerância ocasionada pelo uso de drogas… Sim, era isso. E, claro, ela o convenceria a procurar ajuda, talvez um psicólogo ou um AAA para viciados em pornografia. E no final das contas, a coisa toda ao menos provava que ele não tinha nada de transfóbico. Menos mal. Quanto ao marido, bem, ele estava aliviadíssimo. Escapara por pouco. Não fosse essa desculpa extraordinária, a mulher o teria pego no flagra lendo os textos antifeministas do blog Marxismo Cultural. Imagine o inferno que seria!! Ela, as três irmãs, a mãe, as amigas, todas olhando-o com censura, chamando-o de preconceituoso, machista, porco chauvinista, fascista e por aí abaixo. Não, nem pensar.
“Maldito feminismo!”, pensava ele, um sorriso nos lábios, enquanto a esposa, pela primeira vez em meses, finalmente o tratava como um sultão.
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Do filme Jacob’s Ladder (Alucinações do Passado):
Louis: “Eckhart viu o inferno também. Ele disse: a única coisa que queima no Inferno é aquela sua parte que não irá desistir da vida, suas memórias, seus apegos. Eles [os demônios] queimam tudo isso. Mas eles não o estão punindo, disse ele. Eles estão libertando a sua alma. Assim, se você teme morrer e… você está se agarrando, resistindo, você verá demônios a dilacerar sua vida. Contudo, se você tiver alcançado sua paz, então perceberá que os demônios, na verdade, são anjos liberando-o da Terra.”