Blog do Yuri

palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Quatuor pour la fin du temps — Olivier Messiaen

O compositor José Antônio de Almeida Prado estudou com Olivier Messiaen. Almeida Prado me disse que Messiaen “sofria” de sinestesia, isto é, ele via as cores dos sons. Ou melhor: via os sons enquanto cores. (Essa condição que os demais mortais só alcançam com LSD.) Contou-me também que, sempre que Messiaen ouvia um passarinho, ficava boquiaberto, em deslumbrado silêncio, dizendo por fim algo do tipo “Nossa, que cascata de cores!”. Messiaen, o mesmo sujeito que compôs o “Quatuor pour la fin du temps” [“Quarteto para o Fim dos Tempos”] enquanto prisioneiro de um campo de prisioneiros nazista. Ele não escolheu os instrumentos. Saiu pelo campo a descobrir se havia outros músicos ali e que instrumentos tocavam, compondo, pois, especificamente para eles. Li – salvo engano no livro Viagem aos Centros da Terra, de Vintila Horia, que o entrevistou – que, uma vez finalizada a composição, o quarteto apresentou-se vestido de molambos a uma platéia formada por outros prisioneiros em farrapos e por soldados e oficiais nazistas. Ficaram todos, sobretudo os nazistas, muitíssimo impressionados. Foi como se, pela primeira vez, realmente percebessem no que afinal estavam envolvidos.

Roberto Carlos, o dito cujo carcará romantiquento

Da adolescência até uns, sei lá, vinte e seis anos de idade, eu não podia ouvir Roberto Carlos de jeito nenhum, afinal, achava aquela cantoria toda breguérrima, uma coisa completamente envelhecida e ultrapassada. Sabe, né? Música do pai, da mãe, do tio, da avó, enfim, daquela gente que reclama do seu rock e das suas músicas eletrônicas.

O primeiro passo para mudar essa visão ocorreu em São Paulo, em 1998, quando a filha de uma namorada — namorada esta doze anos mais velha do que eu — chegou felicíssima da praça Benedito Calixto com vários discos — vinis, véio, vinis — todos do dito cujo carcará romantiquento. Como era possível? A filha adolescente da minha namorada ouvindo as músicas dos “coroas”? Seriam os hormônios? Muito esquisito. Devia haver algo de muito estranho no reino da menarca.

Porém, o tempo passou e, hoje, não posso ouvir Roberto Carlos de jeito nenhum simplesmente porque me identifico tanto TAnto TANto TANTO com certas letras que, se insistir em ouvi-lo, serei capaz ou de dar um tiro na cabeça de tanta melancolia e dor de cotovelo, ou de sair gritando “Jesus Cristo, eu estou aqui” pela rua, ou de sair por aí mandando brasa, mora? O que seria péssimo, afinal, segundo noto pela atual onda politicamente correta, mandar brasa já não é algo aceitável socialmente.

Sim, sim. Todo esse preâmbulo para dizer que eu aprendi a gostar do Roberto Carlos. E, para piorar (tá! tá! para melhorar), ainda incluí suas músicas no meu repertório de chuveiro.

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Publicado no Digestivo Cultural.

Chesterton fala sobre a diferença entre o paganismo e o cristianismo no que toca à alegria e à tristeza

G.K.Chesterton

« Dizem que o paganismo é uma religião de alegria e o cristianismo é de tristeza. Seria igualmente fácil provar que o paganismo é pura tristeza e o cristianismo pura alegria. Esses conflitos nada significam e não levam a lugar algum. Tudo o que é humano deve conter em si alegria e tristeza; a única questão que interessa é como os dois ingredientes são equilibrados e divididos. E a coisa realmente interessante é a seguinte, que o pagão sentia-se em geral cada vez mais feliz à medida que se aproximava da terra, mas cada vez mais triste à medida que se aproximava dos céus.

« A alegria do melhor paganismo, como na jocosidade de Catulo ou Teócrito, é, de fato, uma alegria eterna que nunca deve ser esquecida por uma humanidade grata. Mas é uma alegria totalmente voltada para os fatos da vida, não envolvendo a origem dela. Para o pagão, as menores coisas são doces como os menores riachos que irrompem da montanha; mas as coisas maiores são amargas como o mar. Quando o pagão olha para o verdadeiro âmago do cosmos, ele de súbito se sente gelado. Por trás dos deuses, que são meramente despóticos, sentam-se as parcas, que são mortais. Melhor dizendo, as parcas são piores que mortais; elas estão mortas.

« E quando os racionalistas dizem que o mundo antigo era mais esclarecido que o mundo cristão, do seu ponto de vista eles estão certos. Pois quando dizem "esclarecido" querem dizer "obscurecido" por um incurável desespero. É profundamente verdadeiro que o mundo antigo era mais moderno do que o cristão. O vínculo comum está no fato de que os antigos e os modernos sentiram-se infelizes acerca da existência, acerca de todos os fatos da vida, ao passo que os medievais sentiam-se felizes pelo menos a respeito disso.

« Admito francamente que os pagãos, assim como os modernos, eram apenas infelizes acerca da totalidade dos fatos da vida — eles eram muito alegres acerca de tudo o mais. Concedo que os cristãos da Idade Média viviam em paz com a totalidade dos fatos da vida — estavam em guerra com tudo o mais. Mas se a questão girar em torno do primeiro pivô do cosmos, então havia mais contentamento cósmico nas estreitas e sangrentas ruas de Florença do que no teatro de Atenas ou no jardim aberto de Epicuro. Giotto viveu numa cidade mais sombria do que Eurípides, mas ele viveu num universo mais alegre.

« A massa humana tem sido forçada a sentir-se alegre acerca de coisas pequenas, mas a entristecer-se acerca de coisas grandes. Apesar disso (apresento o meu último dogma como uma provocação), não é natural para o homem ser assim. O homem se identifica mais consigo mesmo, é mais parecido com o homem quando a alegria é a coisa fundamental dentro dele e a dor é superficial. A melancolia deveria ser um inocente interlúdio, um estado de espírito delicado e fugaz; a pulsação permanente da alma deveria ser o louvor. O pessimismo é, na melhor das hipóteses, um meio-feriado emocional; a alegria é a ruidosa labuta pela qual vivem todas as coisas.

« No entanto, de acordo com a aparente condição do homem na ótica do pagão ou do agnóstico, essa primeira necessidade da natureza humana nunca pode ser satisfeita.

« A alegria deveria ser expansiva; mas, para o agnóstico, ela deve ser contraída, deve restringir-se a alguém bem-sucedido neste mundo. A dor deveria ser uma concentração; mas, para o agnóstico, a desolação dela se espalha por uma eternidade inimaginável. Isso é o que chamo de nascer de cabeça para baixo. Pode-se na verdade dizer que o cético está de pernas para o ar, pois seus pés vão dançando virados para cima em vão frenesi, enquanto o cérebro está no abismo.

« Para o homem moderno, os céus estão realmente embaixo da terra. A explicação é simples: ele está de ponta-cabeça, o que constitui um pedestal pouco resistente para apoiar-se. Mas quando ele houver novamente descoberto os próprios pés, saberá disso. O cristianismo satisfaz de repente e à perfeição o instinto ancestral do homem de estar virado para cima; e o satisfaz plenamente neste sentido: com seu credo a alegria se torna algo gigantesco e a tristeza algo especial e pequeno.

« A abóbada acima de nós não é surda porque o universo é um idiota: seu silêncio não é o silêncio sem piedade de um mundo sem fim e sem destino. O silêncio que nos cerca é antes uma pequena e compassiva quietude como a súbita quietude no quarto de um enfermo. Talvez a tragédia nos seja permitida como uma espécie de comédia benigna: porque a frenética energia das coisas divinas nos derrubaria como uma farsa de bêbados. Podemos aceitar as próprias lágrimas mais facilmente do que poderíamos aceitar a tremenda leveza dos anjos. Assim ficamos sentados talvez num quarto estrelado e silencioso, enquanto a risada dos céus é forte demais para os nossos ouvidos.

« A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão. E no fechamento deste caótico volume torno a abrir o estranho livrinho do qual proveio o cristianismo; e novamente sinto-me assombrado por uma espécie de confirmação. A tremenda figura que enche os evangelhos ergue-se altaneira nesse respeito, como em todos os outros, acima de todos os pensadores que jamais se consideraram elevados. A compaixão dele era natural, quase casual. Os estóicos, antigos e modernos, orgulhavam-se de ocultar as próprias lágrimas. Ele nunca ocultou as suas; mostrou-as claramente no rosto aberto ante qualquer visão do dia-a-dia, como a visão distante de sua cidade natal. No entanto, alguma coisa ele ocultou. Solenes super-homens e diplomatas imperiais orgulham-se de conter a própria ira. Ele nunca a conteve. Arremessou móveis pela escadaria frontal do Templo e perguntou aos homens como eles esperavam escapar da danação do inferno. No entanto, alguma coisa ele ocultou. Digo-o com reverência; havia naquela chocante personalidade um fio que deve ser chamado de timidez. Havia algo que ele encobria constantemente por meio de um abrupto silêncio ou um súbito isolamento. Havia uma certa coisa que era demasiado grande para Deus nos mostrar quando ele pisou sobre esta nossa terra. Às vezes imagino que era a sua alegria.»
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Ortodoxia, de G. K. Chesterton.

Religião e Sociedades Secretas – podcast com Olavo de Carvalho

Há exatos seis anos, publiquei meu sexto podcast com o filósofo Olavo de Carvalho, no qual conversamos sobre “Religião e Sociedades Secretas”. (Veja os tópicos logo abaixo de cada parte.) Volto a postá-lo aqui, em duas partes, porque, dentre todos os gravados naquele ano (2006), foi exatamente este o que mais me marcou. A primeira parte — que chamo de “lado A” — foi ouvida, até o momento, mais de 97 mil vezes. A segunda parte (“lado B”), por alguma razão que desconheço, foi danificada no YouTube quando já havia sido ouvida mais de 22 mil vezes. Voltei a postá-la novamente e, hoje, conta 5160 acessos. Não sei o porquê dessa discrepância de acessos entre as duas partes, mas a questão é que considero a segunda parte tão ou mais importante que a primeira. Creio que, na primeira, Olavo prepara a mesa enquanto que, na segunda, ele nos serve um banquete. O que Olavo fala sobre a fé, nessa segunda parte, é algo que jamais esquecerei. Não sugiro que seja ouvida antes ou em vez da primeira parte, mas, sim, que não seja deixada de lado. Você irá entender o porquê.


Neste sexto bate-papo, “lado A”, o filósofo Olavo de Carvalho discorre sobre os seguintes temas: Islã, Frithjof Schuon, religião comparada, judaísmo/hinduísmo/budismo; Conceito de religião, revelação e doutrina; Cristianismo, o indiví­duo, fé e crença; a filosofia perene; Martin Heidegger; religião evolutiva?; Islã e terrorismo; queda do Império Romano, os feudos, a Igreja Católica, racionalismo e moral cristã; Emmanuel Swedenborg, a Bí­blia; ateus; sociedades secretas, Maçonaria, os Illuminati; René Guénon, o caos e a unidade do Islã, califado mundial; etc.


Neste sexto podcast, “lado B”, Olavo discorre sobre os seguintes tópicos: pensamento epidérmico e pensamento profundo; diferença entre Deus e Alá; fraternidade; a conversão acentuadamente “civil” islâmica e a conversão estritamente espiritual cristã; o Verbo Divino; Fé e confiança; a conversão não é instantânea; a Salvação; o pensamento de Jacques Derrida como testemunho da perdição da alma; a Imortalidade; o Livro de Urântia (Urantia Book); a Bí­blia e a literatura; a Bí­blia como chave para interpretação da vida pessoal; alma fechada e alma aberta; a diferença entre o poeta e o louco; “Deus não é objeto para o pensamento”; “o desconstrucionismo, o marxismo e a psicanálise defendem-se da crí­tica tal como o faz o homossexualismo”; unidade planetária e globalização; abismos culturais; George Soros; “os quatro graus de credibilidade”; maturidade intelectual; uma dica de filme; o lançamento de sua rádio online (TrueOutspeak).

Vinicius de Moraes — A brusca poesia da mulher amada (III)

A brusca poesia da mulher amada (III)

A Nelita

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido
herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a
bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco
quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as
confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos
ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves.
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas… Ei-la que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo… Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!

Rio de Janeiro, 1950.

Aulas de filosofia de Mário Ferreira dos Santos

Mário Ferreira dos Santos (1907-1968) nasceu em Tietê, Estado de São Paulo, tendo passado sua infância e adolescência em Pelotas, Rio Grande do Sul. Licenciou-se em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de Porto Alegre. Mudou-se para São Paulo, onde fundou duas editoras para publicação e divulgação de suas obras: Editora Logos e Editora Matese.

Escritor e pensador extraordinariamente fecundo, publicou, em menos de quinze anos, a coleção “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais”, que abrange 45 volumes, parte de caráter teorético e parte histórico-críticos. Em 1957, publicou “Filosofia Concreta”, que estabelece o seu modo de filosofar. Mário Ferreira dos Santos considera a Filosofia como ciência rigorosa, aceitando o que é demonstrado e não o problemático e provável. Para ele, a Filosofia possui o genuíno valor de ciência, seja na investigação e na sistematização, seja na análise e na síntese de temas expositivos e polêmicos. Em 1959, a edição de “Métodos Lógicos e Dialéticos” expõe uma nova metodologia para guiar com segurança o estudioso no campo do saber.

A década de 1960 foi o período em que suas obras tiveram maior difusão em todo o território nacional.

Trecho d’A República, de Platão: Sócrates descreve as quatro formas de deterioração do Estado

Sócrates

Antes de ler o diálogo abaixo, extraído d’A República, de Platão, vale lembrar que a proposta de Sócrates, no texto, não é descrever um Estado utópico. Ao responder a uma pergunta sobre a natureza da Justiça, e consequentemente sobre o que seria um “homem justo”, Sócrates propõe a analogia entre um ser humano e uma cidade-estado, uma vez que esta, sendo grande, teria elementos mais palpáveis e conspícuos, ou seja, elementos mais fáceis de se discernir e analisar. Assim, Sócrates descreve a cidade-estado, e suas diferentes formas de governo, para poder definir a natureza do “homem justo” em contraste com outros tipos de “homens degenerados”. (Yuri Vieira)

Glauco — Não vejo nisso dificuldade. Depois de teres esgotado o que diz respeito ao Estado, dizias quase o mesmo que agora, afirmando que achavas bom o Estado que acabavas de descrever [aristocracia] e o homem que lhe era semelhante, e isso, ao que tudo indica, apesar de teres a capacidade de nos falar de um Estado e de um homem ainda mais belos. No entanto, tu acrescentaste que as outras formas de governo são falhas, uma vez que aquela é boa. Dessas outras formas, ao que me lembro, afirmaste haver quatro espécies dignas de atenção e das quais importava ver os defeitos, assim como os dos homens que lhes são semelhantes, com o fito de que, depois de tê-los analisado e reconhecido qual o melhor e qual o pior, estivéssemos aptos a julgar se o melhor é o mais feliz, e o pior, o mais infeliz, ou se não é assim. Então, como eu indaguei quais seriam as quatro formas de governo, Polemarco e Adimanto interromperam-nos, e aí iniciaste a discussão que nos conduziu até este ponto.

Sócrates — Lembras-te disso com muita clareza.

Glauco — Assim, faz igual aos pugilistas e concede-me outra vez a mesma posição e, tendo em vista que te faço a mesma questão, procura dizer o que estavas para responder.

Sócrates — Farei, se o puder.

Glauco — Desejo saber quais são os quatro governos de que falavas.

Sócrates — É fácil satisfazer-te, pois que os governos a que me refiro são conhecidos. O primeiro e muito elogiado é o de Creta e da Lacedemônia; o segundo, que só se louva em segundo lugar, chama-se oligarquia. Trata-se de um governo repleto de vícios vários. Oposto a este vem, em seguida, a democracia. Por fim, vem a soberba tirania, contrária a todos os outros e que é a quarta e a última doença do Estado. Conheces acaso outro governo que se possa ordenar numa classe bem distinta? As monarquias hereditárias, os principados venais e governos que se lhes assemelham não são, em dada medida, senão formas intermediárias e encontram-se tanto entre os bárbaros como entre os gregos.

Glauco — Realmente dizem que os há muitos e estranhos.

Sócrates — Sabes que há tantas espécies de caráter como formas de governo? Ou pensas que essas formas provêm dos carvalhos e da rocha, e não dos costumes dos cidadãos, que arrastam todo o resto para o lado para que pendem?

Glauco — Não podem originar-se senão daí.

Sócrates — Portanto, se existem cinco espécies de cidades, o caráter da alma, nos indivíduos, será, igualmente, em número de cinco.

Glauco — Com toda a certeza.

Sócrates — Analisamos anteriormente o que corresponde à aristocracia e afirmamos, com razão, que é bom e justo.

Glauco — Sim.

Sócrates — Isto posto, não convirá passar em revista os caracteres inferiores: em primeiro lugar, o que ama a vitória e a honra, baseado no exemplo do governo da Lacedemônia; em segundo o oligárquico, o democrático e o tirânico? Depois de reconhecermos qual o mais injusto, oporemos este ao mais justo e poderemos aí terminar o nosso exame e ver como a pura justiça e a pura injustiça agem, respectivamente, no que diz respeito à felicidade ou à infelicidade do indivíduo, para que siga o caminho da injustiça, se nos deixarmos convencer por Trasímaco, ou a da justiça, se cedermos às razões que se manifestam a seu favor.

Glauco — Concordo plenamente, é assim que se deve proceder.

Sócrates — E, já que começamos por examinar os costumes dos Estados antes de analisarmos os dos particulares, sendo este método o mais claro, não devemos agora considerar primeiro o governo da honra, ao qual, como não tenho designação a dar-lhe, chamarei timocracia, e passar logo após ao exame do homem que se lhe assemelha, depois ao da oligarquia e do homem oligárquico; então lançar vistas para a democracia e o homem democrático; e por fim, em quarto lugar, considerar a cidade tirânica, depois a alma do tirânico, e procurar julgar com conhecimento de causa a indagação que nos propomos?

Glauco — Isso seria agir com disciplina a essa análise e a esse julgamento.

Sócrates — Tentemos, caro Glauco, explicar de que maneira se faz a transição da aristocracia para a timocracia. Não é uma verdade inconteste que toda constituição se modifica de acordo com quem detém o poder, quando a discórdia grassa entre os seus membros, e assim, enquanto está de acordo consigo mesma, por muito pequena que se mostre, é impossível abalá-la?

Glauco — Assim me parece.

Sócrates — Nesse caso, como a nossa cidade será abalada? Por onde se infiltrará, entre os guardiões e os chefes, a discórdia que cada um destes lançará contra o outro e contra si mesmo? Desejas que, como Homero, conjuremos as Musas para que nos digam: ‘Quem os impeliu à discórdia?’ Suponhamos que, brincando e se divertindo conosco como com crianças, falam, como se os seus discursos fossem sérios, no tom inflamado da tragédia.

Glauco — Como assim?

Sócrates — Mais ou menos desta forma: é difícil que um Estado constituído como o vosso venha a se alterar. Porém, como tudo o que nasce é passível de corrupção, este sistema de governo não durará eternamente, mas dissolver-se-á, e aqui tens o modo. Há, para as plantas enraizadas na terra e para os animais que vivem à sua superfície, ciclos de fecundidade ou de esterilidade que afetam a alma e o corpo. Estes ciclos surgem quando as revoluções periódicas completam as circunferências dos círculos de cada espécie, e são curtas para as que têm uma vida curta, longas para as que têm uma vida longa. Pois bem, por muito sábios que sejam os chefes da cidade que vós educastes, não conseguirão nada pelo cálculo unido à experiência, quer suas gerações sejam boas ou não venham a existir. Estas coisas escapar-lhes-ão e farão filhos quando não o deveriam fazer. (…) É este número geométrico total que determina os bons e os maus nascimentos e, quando os vossos guardiões, não o conhecendo, unirem moças e rapazes fora de propósito, os filhos que nascerem desses casamentos não serão favorecidos nem pela natureza nem pela fortuna. Os seus antecessores colocarão os melhores à cabeça do governo, mas, como disso são indignos, logo que assumirem os cargos dos seus pais passarão a menosprezar-nos, apesar de serem guardiões, não honrando, como deveriam, primeiramente a música, em seguida a ginástica. Assim, tereis uma geração nova bem menos culta. Daí sairão chefes pouco capazes de zelar pelo Estado e que não sabem notar a diferença nem das raças de Hesíodo nem das vossas raças de ouro, prata, bronze e feno. Deste modo, misturando-se o ferro com a prata e o bronze com o ouro, resultará destas misturas um defeito de conveniência, de regularidade e de harmonia que, uma vez instaurado, engendra sempre a guerra e o ódio. E esta a origem que se deve atribuir à discórdia, em toda parte que se declare.

Glauco — Devemos reconhecer que as Musas responderam bem.

Sócrates — Certamente, visto que são Musas.

Glauco — E então? O que dizem elas além disso?

Sócrates — Uma vez instaurada a divisão, as duas raças de feno e bronze aspiram a enriquecer e a adquirir posses de terras, casas, ouro e prata, ao passo que as raças de ouro e prata, sendo ricas por natureza, tendem para a virtude e a manter a antiga constituição. Depois de muitas violências e lutas, concorda-se em dividir as terras e ocupá-las, bem como às casas, e aqueles por quem anteriormente zelavam como seus concidadãos, como homens livres e amigos, agora subjugam-nos, tratam-nos como periecos e servidores, e continuam eles a ocupar-se da guerra e da guarda dos outros.

Glauco — Sim, parece-me que é daí que se origina essa mudança.

Sócrates — Aí está! Um tal governo não estará situado entre a aristocracia e a oligarquia?

Glauco — Estará, com certeza.

Sócrates — Vês então como se fará a mudança. Mas qual será a sua forma? Não é evidente que deverá imitar, por um lado, a constituição anterior e, por outro, a oligarquia, mas que terá também alguma coisa que lhe será própria?

Glauco — Assim me parece.

Sócrates — Pelo respeito aos chefes, pela aversão dos guerreiros à agricultura, às artes manuais e às outras profissões lucrativas, pela instituição das refeições em comum e a prática dos exercícios ginásticos e militares, por todos estes aspectos, não recordará a constituição anterior?

Glauco — Sim.

Sócrates — Mas o medo de nomear os sábios para as magistraturas, visto que aqueles que se terão não serão mais simples e firmes, mas de caráter dúbio; a inclinação para o caráter irascível e mais simples, moldado mais para a guerra do que para a paz; a estima em que se terão as manhas e os estratagemas guerreiros; o hábito de ter sempre a arma à mão: a maior parte dos aspectos deste gênero não lhe serão específicos?

Glauco — Sim.

Sócrates — Tais homens serão cobiçosos de riquezas, como os cidadãos dos Estados oligárquicos; adorarão com paixão, às ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados, nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem muito bem lhes apetecer.

Glauco — Eis aí uma grande verdade.

Sócrates — Serão apegados às suas riquezas porque as veneram e não as possuem às claras, e, por outro lado, pródigos com os bens dos outros, para satisfazerem as suas paixões. Se fartarão dos prazeres em segredo e, como crianças aos olhares do pai, fugirão aos olhares da lei, em conseqüência de uma educação não baseada na persuasão, mas na violência, em que se desprezou a verdadeira Musa, a da dialética e da filosofia, e se deu mais importância à ginástica do que à música.

Glauco — E claramente a descrição de um Estado composto de bem e mal.

Sócrates — Isso mesmo, é composto. Há nele um único aspecto que é nitidamente distinto, resultante do fato de nele predominar o elemento irascível: é a ambição e o amor das honrarias.

Glauco — Certamente.

Sócrates — Aí estão a origem e o caráter deste governo. Fiz apenas um esboço, e não um retrato detalhado, porque só por este esboço podemos distinguir o homem mais justo do homem mais injusto e, por outro lado, seria uma tarefa muitíssimo longa descrever sem nada omitir todas as constituições e todo caráter.

Glauco — Tens razao.

Sócrates — Agora, dize qual é o homem que corresponde a este governo, como se compreende e qual é o seu caráter.

Adimanto — Suponho que deve assemelhar-se a Glauco, aqui presente, ao menos no que se refere à ambição.

Sócrates — Talvez. Mas, ao que me parece, pelos aspectos que vou dizer, a sua natureza é diferente da de Glauco.

Adimanto — Quais são eles?

Sócrates — Tu deves ser mais presunçoso e mais avesso às Musas, apesar de amá-las, alegrando-se em escutar, mas não sendo de maneira nenhuma orador. Para com os escravos, um homem assim mostrar-se-á rígido, em vez de os desprezar, como faz aquele que recebeu uma boa educação. Será cordial para com os homens livres e muito submisso para com os magistrados. Desejoso de alcançar o mando e as horas, aspirará a isso não pela eloqüência, nem por nenhum outro predicado do mesmo gênero, mas pelos seus feitos guerreiros e pelos talentos militares e será um aficionado pela ginástica e pela caça.

Adimanto — É esse mesmo o caráter que é similar a tal forma de governo.

Sócrates — Um homem desse tipo poderá, durante a mocidade, desprezar as riquezas, mas com o correr dos anos mais as amará, porque a sua natureza incita-o à avareza, e a sua virtude, privada do seu melhor guardião, não é pura.

Adimanto — Qual é esse guardião?

Sócrates — A razão aliada à música. Só ela, quando entranhada na alma, se mantém toda a vida como defensora da virtude.

Adimanto — Boas falas.

Sócrates — Assim é que o jovem ambicioso é a imagem do governo timocrático.

Adimanto — Com certeza.

Sócrates — Origina-se mais ou menos do seguinte modo: por vezes é o jovem filho de um homem de bem, habitante de uma cidade mal governada, que evita as honras, os cargos, os processos e todos os incômodos deste gênero e que aceita a mediocridade, para tentar se ver livre de aborrecimentos.

Adimanto — E como se origina?

Sócrates — Primeiramente, ouve a mãe queixar-se por o marido não pertencer ao grupo dos governantes, o que a faz se sentir diminuída junto das outras mulheres. Por vê-lo desinteressado de enriquecer, não sabendo nem lutar nem usar a censura, quer em particular, perante os tribunais, quer em público, indiferente a tudo em tal matéria; por notar que está sempre ocupado consigo mesmo e não tem por ela nem estima nem desprezo. Indigna-se com tudo isso, dizendo ao jovem filho que o seu pai não é um homem, que lhe falta energia e cem outras coisas que as mulheres costumam dizer em tais casos.

Adimanto — E mesmo essa a atitude que no mais das vezes tomam conforme com a sua natureza.

Sócrates — E tu sabes que até os criados dessas famílias que parecem bem-intencionados costumam usar, em segredo, a mesma linguagem com as crianças; e, quando percebem que o pai não persegue um devedor ou uma pessoa que o ofendeu, exortam o filho a se vingar de semelhante gente, quando for grande, e a mostrar-se mais viril que o pai. Mal sai de casa, passa a ouvir outros comentários semelhantes e vê que aqueles que não se ocupam senão dos seus negócios na cidade são tratados como imbecis e tidos em pouco apreço, ao contrário dos que se ocupam dos negócios dos outros, que são honrados e louvados. Então, o jovem, vendo e ouvindo isso tudo, por um lado, e, por outro, escutando os discursos do pai, vê de perto as suas ocupações e compara-as com as dos demais. Então, sente atração pelos dois lados: pelo pai, que planta e faz crescer o elemento racional da sua alma, e pelos outros, que fortalecem os seus desejos e paixões. Como o seu caráter não é mau por natureza, pois apenas esteve ele em más companhias, escolhe o meio entre os dois partidos que o atraem, entrega o governo da sua alma ao princípio intermédio de ambição e cólera e torna-se um homem orgulhoso e amante de horas.

Adimanto — Descreveste muito bem a origem e o desenvolvimento desse caráter.

Sócrates — Temos aí a segunda constituição e o segundo tipo de homem.

Adimanto — Temos.

Sócrates — Agora, falaremos, como Ésquilo, “de outro homem alinhado em face de outro Estado”, ou seria melhor, seguindo a ordem que adotamos, começarmos pelo Estado?

Adimanto — Assim me parece bem.

Sócrates — Creio que a oligarquia é o governo que se segue ao precedente.

Adimanto — Que espécie de governo entendes por oligarquia?

Sócrates — O governo fundamentado no recenseamento, em que os ricos mandam e onde o pobre não participa no poder.

Adimanto — Entendo.

Sócrates — Não devemos começar por dizer como se passa da timocracia à oligarquia?

Adimanto — Sim, devemos.

Sócrates — Na realidade, até um cego seria capaz de ver como se faz esta passagem.

Adimanto — Como?

Sócrates — Esse tesouro que cada um enche de ouro põe a perder a timocracia. Em primeiro lugar, os cidadãos descobrem motivos de despesa e, para os satisfazer, deturpam a lei e desobedecem-lhe, eles e as suas mulheres.

Adimanto — E verossímil.

Sócrates — Depois, pelo que suponho, um vê o outro e se põe a imitá-lo, e assim a massa acaba por se lhes assemelhar.

Adimanto — Deve ser assim.

Sócrates — A partir disso, a sua avidez pelo ganho progride rapidamente e quanto mais amor têm pela riqueza menos o têm pela virtude. Em verdade, o que há de diferente entre a riqueza e a virtude não é que, colocadas cada uma num prato de uma balança, tomam sempre uma direção contrária?

Adimanto — Com toda certeza.

Sócrates — Concluo, então, que, quando a riqueza e os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são tidos em menor estima.

Adimanto — É evidente.

Sócrates — É de nossa natureza entregarmo-nos ao que é honrado e desprezarmos o que é desdenhado.

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