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palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Kurt Gödel e o Teorema da Incompletude: A descoberta Matemática Nº 1 do Século XX e suas relações com fé e razão

 Kurt Gödel

Este artigo de Perry Marshall (traduzido ao português por Mateus Scherer Cardoso) me causou um deslumbramento tão grande que decidi publicá-lo aqui por inteiro. Eu o encontrei durante um intervalo da leitura do artigo Science and the Restoration of Culture, de Wolfgang Smith, que cita Gödel e que me deixou com vontade de me aprofundar mais no tema. Não perdi meu tempo. (Claro, primeiro tive de quebrar a cabeça aqui e aqui. E, por fim, também sugeri Gödel para a galeria Cearenses Internacionais.)

O Teorema da Incompletude de Gödel:
A Descoberta Matemática Nº 1 do Século XX

Em 1931, o jovem matemático Kurt Gödel fez uma descoberta-marco tão poderosa quanto qualquer coisa que Albert Einstein desenvolveu, desferindo um golpe devastador nos matemáticos de sua época.

A descoberta de Gödel não se aplica somente à matemática, mas literalmente a todos os ramos da ciência, lógica e conhecimento humano. Ela tem verdadeiramente implicações que abalam a Terra.

Estranhamente, poucas pessoas sabem qualquer coisa sobre ela.

Permita-me contar-lhe a história.

Os matemáticos adoram provas. Eles estavam furiosos e chateados por séculos, porque eles eram incapazes de PROVAR algumas das coisas que eles sabiam que eram verdade.

Por exemplo: se você estudou geometria no colégio, você fez os exercícios nos quais você, baseado em uma lista de teoremas, prova todos os tipos de coisas sobre os triângulos.

Aquele livro de geometria do colégio é feito sobre os cinco postulados de Euclides. Todos sabem que os postulados são verdadeiros, mas em 2500 anos ninguém imaginou um meio de prová-los.

Sim, parece sim perfeitamente razoável que uma linha possa ser estendida infinitamente em ambas as direções, mas ninguém tem sido capaz de PROVAR isso. Nós só podemos demonstrar que eles são um conjunto de 5 suposições razoáveis e de fato necessárias.

Grandes gênios matemáticos estavam frustrados por mais de 2000 anos porque eles não podiam provar todos os seus teoremas. Havia muitas coisas que eram “obviamente” verdade, mas ninguém conseguia imaginar um meio de prová-las.

No início dos anos 1900, entretanto, um tremendo senso de otimismo começou a crescer nos círculos matemáticos. Os matemáticos mais brilhantes do mundo (como Bertrand Russell, David Hilbert e Ludwig Wittgenstein) estavam convencidos que estavam rapidamente se aproximando de uma síntese final.

Uma “Teoria de Tudo” unificada, que finalmente amarraria todos os pontos soltos. A matemática seria completa, à prova de balas, hermética, triunfante.

Em 1931, este jovem matemático austríaco, Kurt Gödel, publicou um artigo que de uma vez por todas PROVOU que uma única Teoria de Tudo é realmente impossível.

A descoberta de Gödel foi chamada de “O Teorema da Incompletude”.

Se você me der alguns minutos, eu lhe explicarei o que ele diz, como Gödel o descobriu e o que ele significa – em português simples e direto que qualquer um pode entender.

O Teorema da Incompletude de Gödel diz:

“Qualquer coisa em que você pode desenhar um círculo ao redor não pode ser explicada por si mesma sem se referir a algo fora do círculo – algo que você tem que assumir mas não pode provar.”

Expresso em Linguagem Formal:

O teorema de Gödel diz: “Qualquer teoria efetivamente gerada capaz de expressar aritmética elementar não pode ser simultaneamente consistente e completa. Em particular, para qualquer teoria formal consistente e efetivamente gerada, que prova certas verdades aritméticas básicas, existe uma afirmação aritmética que é verdadeira, mas que não pode ser provada em teoria.”

A Tese de Church-Turing diz que um sistema físico pode expressar aritmética elementar assim como um humano pode, e que a aritmética de uma Máquina de Turing (um computador) não pode ser provada dentro do sistema e é igualmente sujeita à incompletude.

Qualquer sistema físico sujeito a medição é capaz de expressar aritmética elementar. (Em outras palavras, crianças podem fazer matemática contando em seus dedos, a água fluindo para um balde faz integração, e sistemas físicos sempre dão a resposta certa.)

Portanto, o Universo é capaz de expressar aritmética elementar e, tanto como a própria matemática e uma máquina de Turing, é incompleto.

Silogismo:

1. Todos os sistemas computacionais não-triviais são incompletos.

2. O Universo é um sistema computacional não-trivial.

3. Portanto, o Universo é incompleto.

Você pode desenhar um círculo ao redor de todos os conceitos no seu livro de geometria do colégio. Mas eles são todos feitos sobre os cinco postulados de Euclides, que claramente são verdadeiros mas que não podem ser provados. Esses cinco postulados estão fora do livro, fora do círculo.

Você pode desenhar um círculo ao redor de uma bicicleta, mas a existência dessa bicicleta depende de uma fábrica que está fora do círculo. A bicicleta não pode explicar a si mesma.

Gödel provou que há SEMPRE mais coisas que são verdadeiras do que você pode provar. Qualquer sistema de lógica ou números que os matemáticos possam desenvolver sempre se baseará em pelo menos umas poucas suposições que não podem ser provadas.

O Teorema da Incompletude de Gödel não se aplica somente à matemática, mas a tudo que está sujeito às leis da lógica. A incompletude é uma verdade na matemática, e é igualmente verdadeira na ciência, na linguagem ou na filosofia.

E, se o Universo é matemático e lógico, a Incompletude também se aplica ao Universo.

Gödel criou sua prova começando com o “Paradoxo do Mentiroso” — que é a afirmação:

“Eu estou mentindo.”

“Eu estou mentindo” é autocontraditória, já que, se é verdade, eu não sou um mentiroso, e, se é falsa, eu sou um mentiroso, então é verdade.

Então Gödel, em um dos movimentos mais engenhosos da história da matemática, converteu o Paradoxo do Mentiroso em uma fórmula matemática. Ele provou que qualquer afirmação requer um observador externo.

Nenhuma afirmação sozinha pode completamente provar a si mesma como verdadeira.

O seu Teorema da Incompletude foi um golpe devastador no “positivismo” da época. Gödel provou o seu teorema preto no branco, e ninguém podia discutir com a sua lógica.

Ainda assim, alguns de seus amigos matemáticos foram para o túmulo negando, acreditando que, de uma forma ou outra, Gödel certamente estaria errado.

Ele não estava errado. Era mesmo verdade. Existem mais coisas que são verdade do que você pode provar.

Uma “teoria de tudo” – seja na matemática, na física ou na filosofia – nunca será encontrada. Porque é impossível.

OK, o que isso então realmente significa? Por que isso é superimportante, e não apenas um factóide geek?

Isso é o que significa:

  • Fé e Razão não são inimigas. Na verdade, o exato oposto é verdade! Uma é absolutamente necessária para que a outra exista. Todo o raciocínio ao final leva de volta à fé em algo que você não pode provar.
  • Todos os sistemas fechados dependem de algo fora do sistema.
  • Você pode sempre desenhar um círculo maior, mas existirá sempre algo fora do círculo.
  • O raciocínio de um círculo maior para um menor é “raciocínio dedutivo.”

Exemplo de um raciocínio dedutivo:

1. Todos os homens são mortais
2. Sócrates é um homem
3. Portanto, Sócrates é mortal

  • O raciocínio de um círculo menor para um maior é “raciocínio indutivo.”

Exemplos de raciocínio indutivo:

1. Todos os homens que conheço são mortais
2. Portanto, todos os homens são mortais

1. Quando eu largo objetos, eles caem
2. Portanto, há uma lei da gravidade que governa objetos de caem

Note que quando você se move do círculo menor para o maior, você tem que fazer suposições que não pode provar 100%.

Por exemplo: você não pode PROVAR que a gravidade sempre será consistente todas as vezes. Você só pode observar que ela é consistentemente verdadeira toda vez. Você não pode provar que o Universo é racional. Você só pode observar que fórmulas matemáticas como E = mc² parecem, sim, descrever perfeitamente o que o Universo faz.

Praticamente todas as leis científicas estão baseadas no raciocínio indutivo. Estas leis apóiam-se em uma afirmação de que o Universo é lógico e baseado em leis fixas que podem ser descobertas.

Você não pode PROVAR isto. (Você não pode provar que o Sol virá amanhã de manhã também.) Você literalmente tem que usar a fé. Na verdade, a maioria das pessoas não sabem que além do círculo da ciência existe um círculo da filosofia. A ciência está baseada em suposições filosóficas que você não pode provar cientificamente. Realmente, o método científico não pode provar, só pode inferir.

(A ciência originalmente surgiu da idéia de que Deus fez um Universo ordenado que observa leis fixas e que podem ser descobertas.)

Agora, por favor, considere o que acontece quando desenhamos o maior círculo possível – ao redor de todo o Universo.
(Se existem múltiplos universos, nós estamos desenhando um círculo ao redor deles todos também.):

  • Tem que existir algo fora desse círculo. Algo que nós temos que assumir mas não podemos provar.
  • O Universo como nós conhecemos é finito – matéria finita, energia finita, espaço finito e 13,7 bilhões de anos de idade.
  • O Universo é matemático. Qualquer sistema físico sujeito a medição executa a aritmética. (Você não precisa conhecer matemática para fazer uma adição – você pode usar um ábaco em vez disso e ele lhe dará a resposta certa todas as vezes.)
  • O Universo (toda a matéria, energia, espaço e tempo) não pode explicar a si mesmo.
  • O que quer que esteja fora do maior círculo não tem limites.Por definição, não é possível desenhar um círculo ao redor dele.
  • Se desenharmos um círculo ao redor de toda a matéria, energia, espaço e tempo e aplicar o teorema de Gödel, então saberemos que o que está fora desse círculo não é matéria, não é energia, não é espaço e não é tempo. É imaterial.
  • O que quer que esteja fora do maior círculo não é um sistema – i.e. não é um conjunto de partes. De outra forma poderíamos desenhar um círculo ao redor delas. A coisa fora do maior círculo é indivisível.
  • O que quer que esteja fora do maior círculo é uma causa não-causada, porque você sempre pode desenhar um círculo ao redor de um efeito.

Nós podemos aplicar o mesmo raciocínio indutivo à origem da informação:

  • Na história do Universo, nós também podemos ver a introdução da informação, cerca de 3,5 bilhões de anos atrás. Ela veio na forma do código genético, que é simbólico e imaterial.
  • A informação teve que vir de fora, já que a informação não é conhecida por ser uma propriedade inerente da matéria, energia, espaço ou tempo.
  • Todos os códigos cuja origem conhecemos são projetados por seres conscientes.
  • Portanto, o que quer que esteja fora do círculo maior é um ser consciente.

Em outras palavras, quando adicionamos a informação à equação, concluímos que a coisa fora do maior círculo não só é infinita e imaterial, como também é consciente.

Não é interessante como todas estas coisas soam suspeitamente similar a como os teólogos têm descrito Deus por milhares de anos?

Então é dificilmente surpreendente que entre 80 e 90% das pessoas do mundo acreditam em algum conceito de Deus. Sim, é intuitivo para a maioria do pessoal. Mas o teorema de Gödel indica que é também supremamente lógico. De fato, é a única posição que alguém pode tomar e ainda assim permanecer nos domínios da razão e da lógica.

A pessoa que orgulhosamente proclama “Você é um homem da fé, mas eu sou um homem da ciência” não entende as raízes da ciência e a natureza do conhecimento!

Um aparte interessante…

Se você visitar o maior website ateu do mundo, Infidels, na página inicial você encontrará a seguinte declaração:

“O Naturalismo é a hipótese segundo a qual o mundo natural é um sistema fechado, o que significa que nada que não seja parte do mundo natural o afeta.”

Se você conhece o teorema de Gödel, você sabe que todos os sistemas lógicos devem contar com algo fora do sistema. Então, de acordo com o Teorema da Incompletude de Gödel, o Infidels não pode estar correto. Se o Universo é lógico, ele tem uma causa externa.

Assim, o ateísmo viola as leis da razão e da lógica.

O Teorema da Incompletude de Gödel prova definitivamente que a ciência não pode jamais preencher suas próprias lacunas. Nós não temos escolha a não ser procurar fora da ciência por respostas.

A Incompletude do Universo não é a prova que Deus existe. Mas… É a prova de que, para se construir um modelo racional e científico do Universo, a crença em Deus não é somente 100% lógica… ela é também necessária.

Os cinco postulados de Euclides não podem ser formalmente provados e Deus também não pode ser formalmente provado. Mas… assim como você não pode construir um sistema coerente de geometria sem os cinco postulados de Euclides, você também não pode construir uma descrição coerente do Universo sem uma Primeira Causa e uma Fonte de ordem.

Assim, fé e ciência não são inimigas, mas aliadas. Tem sido verdade por centenas de anos, mas em 1931 este jovem magricelo matemático austríaco chamado Kurt Gödel o provou.

Em nenhuma época na história da humanidade a fé em Deus tem sido mais razoável, mais lógica ou mais amplamente apoiada pela ciência e pela matemática.

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Perry Marshall (traduzido para o português por Mateus Scherer Cardoso)

Fonte: Cosmic Finger Prints.

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“Sem matemática nós não podemos penetrar profundamente na filosofia.
Sem filosofia nós não podemos penetrar profundamente na matemática.
Sem ambas nós não podemos penetrar profundamente em nada.”
Leibniz

“A matemática é a linguagem pela qual Deus escreveu o Universo.”
Galileu

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Leitura adicional:

“Incompleteness: The Proof and Paradox of Kurt Gödel” (em inglês) por Rebecca Goldstein – biografia fantástica e uma grande leitura

Uma coleção de citações e notas sobre a prova de Gödel’s da Miskatonic University Press (em inglês)

A descrição formal do Teorema da Incompletude de Gödel’s na Wikipédia(em inglês)

Ciência vs. Fé na CoffeehouseTheology.com (em inglês)

Teoria da Informação: “If you can read this, I can prove God exists” (em inglês)

Milton Friedman fala sobre o governo e a liberdade

miltonfriedman

« Há uma frase muito citada do discurso de posse do Presidente Kennedy: "Não pergunte o que sua pátria pode fazer por você – pergunte o que você pode fazer por sua pátria". Constitui uma clara indicação da atitude dos tempos que correm, que a controvérsia sobre esta frase se tenha focalizado sobre sua origem, e não sobre seu conteúdo. Nenhuma das duas metades da declaração expressa uma relação entre cidadãos e seu governo que seja digna dos ideais de homens livres numa sociedade livre. A frase paternalista "o que sua pátria pode fazer por você" implica que o governo é o protetor, e o cidadão, o tutelado – uma visão que contraria a crença do homem livre em sua própria responsabilidade com relação a seu próprio destino. A frase organicista "o que você pode fazer por sua pátria" implica que o governo é o senhor ou a deidade, e o cidadão, o servo ou o adorador. Para o homem livre, a pátria é o conjunto de indivíduos que a compõem, e não algo acima e além deles. O indivíduo tem orgulho de sua herança comum e mantém lealdade a uma tradição comum. Mas considera o governo como um meio, um instrumento – nem um distribuidor de favores e doações nem um senhor ou um deus para ser cegamente servido e idolatrado. Não reconhece qualquer objetivo nacional senão o conjunto de objetivos a que os cidadãos servem separadamente. Não reconhece nenhum propósito nacional a não ser o conjunto de propósitos pêlos quais os cidadãos lutam separadamente.

« O homem livre não perguntará o que sua pátria pode fazer por ele ou o que pode ele fazer por sua pátria. Perguntará de preferência: "o que eu e meus compatriotas podemos fazer por meio do governo" para ajudar cada um de nós a tomar suas responsabilidades, a alcançar nossos propósitos e objetivos diversos e, acima de tudo, a proteger nossa liberdade? E acrescentará outra pergunta a esta: "o que devemos fazer para impedir que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein e venha a destruir justamente a liberdade para cuja proteção nós o estabelecemos?" A liberdade é uma planta rara e delicada. Nossas próprias observações indicam, e a história confirma, que a grande ameaça à liberdade está constituída pela concentração do poder. O governo é necessário para preservar nossa liberdade, é um instrumento por meio do qual podemos exercer nossa liberdade; entretanto, pelo fato de concentrar poder em mãos políticas, ele é também uma ameaça à liberdade. Mesmo se os homens que controlam esse poder estejam, inicialmente, repletos de boa vontade e mesmo que não venham a ser corrompidos pelo poder, este formará e atrairá homens de tipos diferentes. Como nos podemos beneficiar das vantagens de ter um governo e, ao mesmo tempo, evitar a ameaça à liberdade? Dois grandes princípios apresentados em nossa Constituição nos dão a resposta que foi capaz de preservar nossa liberdade até agora – embora tenham sido violados, repetidamente na prática, enquanto proclamados como preceitos.

« Primeiro, o objetivo do governo deve ser limitado. Sua principal função deve ser a de proteger nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas; preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados competitivos. Além desta função principal, o governo pode, algumas vezes, nos levar a fazer em conjunto o que seria mais difícil ou dispendioso fazer separadamente. Entretanto, qualquer ação do governo nesse sentido representa um perigo. Nós não devemos nem podemos evitar usar o governo nesse sentido. Mas é preciso que exista uma boa e clara quantidade de vantagens, antes que o façamos. E contando principalmente com a cooperação voluntária e a empresa privada, tanto nas atividades econômicas quanto em outras, que podemos constituir o setor privado em limite para o poder do governo e uma proteção efetiva à nossa liberdade de palavra, de religião e de pensamento.

« O segundo grande princípio reza que o poder do governo deve ser distribuído. Se o governo deve exercer poder, é melhor que seja no condado do que no estado; e melhor no estado do que em Washington. Se eu não gostar do que a minha comunidade faz em termos de organização escolar ou habitacional, posso mudar para outra e, embora muito poucos possam tomar esta iniciativa, a possibilidade como tal já constitui um controle. Se não gostar do que faz o meu estado, posso mudar-me para outro. Se não gostar do que Washington impõe, tenho muito poucas alternativas neste mundo de nações ciumentas.

« A grande dificuldade de evitar o fortalecimento do Governo Federal é, sem dúvida alguma, a atração da centralização para muitos de seus proponentes. Isto lhes permitirá, acham eles, legislar de modo mais efetivo determinados programas que – é assim que imaginam – são do interesse do público, quer se trate de transferência da renda do rico para o pobre ou de objetivos privados para os governamentais. Eles têm razão num sentido. Mas a moeda tem duas faces. O poder para fazer coisas certas é também poder para fazer coisas erradas; os que controlam o poder hoje podem não ser os mesmos de amanhã; e, ainda mais importante, o que um indivíduo considera bom pode ser considerado mau por outro. A grande tragédia do entusiasmo pela centralização, bem como do entusiasmo pela expansão dos objetivos do governo em geral, é que envolve homens de boa vontade que serão os primeiros a sofrer suas conseqüências negativas.

« A preservação da liberdade é a principal razão para a limitação e descentralização do poder do governo. Mas há também uma razão construtiva. Os grandes avanços da civilização – quer na arquitetura ou na pintura, quer na ciência ou na literatura, quer na indústria ou na agricultura – nunca vieram de governos centralizados. Colombo não resolveu tentar uma nova rota para a China em conseqüência de uma resolução da maioria de um parlamento, embora tenha sido financiado em parte por um monarca absoluto. Newton e Leibniz; Einstein e Bohr; Shakespeare, Milton e Pasternak; Whitney, McCornick, Edison e Ford; Jane Adams, Florence Nightingale e Albert Schweitzer; nenhum deles abriu novas fronteiras para o conhecimento ou a compreensão humana, na literatura, na técnica, no cuidado com o sofrimento humano, em resposta a diretivas governamentais. Seus feitos constituíram o produto de seu gênio individual, de um ponto de vista minoritário corajosamente mantido, de um clima social que permitia a variedade e a diversidade.

« O governo não poderá jamais imitar a variedade e a diversidade da ação humana. A qualquer momento, por meio da imposição de padrões uniformes de habitação, nutrição ou vestuário, o governo poderá sem dúvida alguma melhorar o nível de vida de muitos indivíduos; por meio da imposição de padrões uniformes de organização escolar, construção de estradas ou assistência sanitária, o governo central poderá sem dúvida alguma melhorar o nível de desempenho em inúmeras áreas locais, e, talvez, na maior parte das comunidades. Mas, durante o processo, o governo substituirá progresso por estagnação e colocará a mediocridade uniforme em lugar da variedade essencial para a experimentação que pode trazer os atrasados do amanhã por cima da média de hoje.

« Este livro discute algumas dessas importantes questões. Seu tema principal é o papel do capitalismo competitivo – a organização da maior parte da atividade econômica por meio da empresa privada operando num mercado livre – como um sistema de liberdade econômica e condição necessária à liberdade política. Seu tema secundário é o papel que o governo deve desempenhar numa sociedade dedicada à liberdade e contando principal mente com o mercado para organizar sua atividade econômica.»

Trecho da introdução ao livro Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman

O Duplo — um conto de Coelho Neto

— Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?

— Quem te disse ?

— Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

— Laura… Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

— Que tem?

— Ora! Que tem… Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas. Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais “termos” não dou um passo — nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer. Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que freqüenta. O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

— Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestamse visível, sensivelmente. Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor — Mistério. Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há alguma coisa que… ninguém sabe o que é. A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade…?

— Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida. Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida. O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais. O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham. O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acontecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa Voltei página do jornal – a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi…!

— Viste…?

— A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra. Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo: “Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos. Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa”. Que angústia, meu amigo ! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d’alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado. Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim. Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé. A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio. Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro “eu”, não o vi mais. Teria descido? Não! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro. E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento. Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo. E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: ‘– Quem era o morto?” E logo lhe foi respondido:

— É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

— Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.

Sobre o escritor Coelho Neto (1864-1934).

“Saudade do jornalismo”, artigo de Olavo de Carvalho

Olavo de Carvalho

Quatro ou cinco décadas atrás, você abria os jornais e encontrava análises políticas substantivas. Fossem "de esquerda" ou "de direita", os articulistas ainda acreditavam numa coisa chamada "verdade" e faziam algum esforço para encontrá-la. Eram também homens de boa cultura literária, conheciam e respeitavam o idioma.
Tenho saudades dos longos artigos de Júlio de Mesquita Filho, Paulo Francis, Antônio Olinto, Paulo de Castro, José Lino Grünewald, Nicolas Boer, Gustavo Corção; do próprio Oliveiros da Silva Ferreira – que está vivo, mas longe da mídia diária. E de tantos e tantos outros.

Hoje em dia temos puros polemistas, que não investigam nada, não explicam nada, não fazem nenhum esforço intelectual, não tentam entender coisa nenhuma, só tomam posição, lavram sentenças como juízes e ditam regras.

Também os havia então, mas como escreviam bem! Carlos Lacerda, Nelson Rodrigues e Raquel de Queiroz eram provavelmente os melhores. O próprio Otto Maria Carpeaux era do time. Contrastando com a destreza dialética alucinante da sua crítica literária, os artigos de política que ele publicava no Correio da Manhã, produzidos em série e, como que por automatismo, eram traslados servis das palavras-de-ordem do Partidão, do qual em pleno declínio de suas faculdades intelectuais ele se fizera "companheiro de viagem", por puro medo da ditadura, talvez do desemprego. Estão repletos de erros pueris, desinformação comunista grossa, mas neles ainda se pode reconhecer o pulso firme do escritor.

Do outro lado, havia, por exemplo, David Nasser. Sempre se sabia de antemão o que ele ia defender ou atacar. Mas com que graça se repetia, variando as formas ao ponto de fazer as opiniões mais estereotipadas soarem como novidades!

Tudo isso está morto e enterrado. Em toda a grande mídia, só raros colunistas ainda honram o idioma e o melhor deles não é brasileiro, é português: João Pereira Coutinho. Leio com satisfação Reinaldo Azevedo (o mais informado) e Neil Ferreira (o mais engraçado). Os outros que dão gosto estão só na internet.

Em todos os grandes jornais ninguém escreve com a seriedade de Heitor de Paola, a elegância de Percival Puggina, a inventividade de Yuri Vieira, a precisão vernácula de José Carlos Zamboni, a erudição bem-humorada de J. O. de Meira Penna. Os outros que me perdoem: a lista dos melhores excluídos não tem fim.

Nas faculdades estuda-se, por incrível que pareça, a decadência do jornalismo brasileiro. Mas lança-se a culpa em tudo, menos nos jornalistas. Como se a má pintura não fosse nunca obra de maus pintores ou a comida fosse sempre ruim a despeito dos excelentes cozinheiros.

A classe tem um tremendo esprit de corps quando lhe interessa, mas nunca faz um julgamento sério de seus próprios atos, uma avaliação realista do seu impacto na sociedade. Narra sua história como se fosse autora de tudo o que é bom, vítima inerme de tudo o que é mau. Nada, absolutamente nada, lhe dói na consciência.

Não lhe ocorre nem mesmo a conveniência de um vago mea culpa por ter ocultado o Foro de São Paulo ao longo de dezesseis anos, praticando a censura com mais eficácia, amplitude e tenacidade do que a Polícia Federal do tempo dos militares. Sua falsa auto-imagem raia a sociopatia pura e simples (ver aqui, aqui e ainda aqui).

Nos anos da ditadura, como a liberdade de imprensa e a liberdade de ação da esquerda sofressem juntas as mesmas restrições oficiais (amplamente inoperantes na prática), jornalismo e esquerdismo se deram as mãos na luta contra o inimigo comum. Foi justo e oportuno. Mas, decorridas três décadas do fim do regime, a aliança de ocasião não quer admitir que seu tempo passou, que não há mais inimigos armados contra os quais o fingimento é a única defesa da parte mais débil.

Na época, a esquerda já dominava a mídia, mas fazia-se de coitadinha, de nanica, de excluída. Oprimida nas ruas e nas praças, discriminava os direitistas nas redações (como a intelectualidade acadêmica fazia nas universidades), reproduzindo às avessas, no microcosmo da profissão, o controle repressivo que o governo exercia na escala maior em torno.

Hoje, ela domina o país inteiro, e o que era precaução tática compreensível se tornou instrumento de perpetuação de poderes e prestígios imerecidos. A arma dos fracos tornou-se uma gazua nas mãos dos fortes.

Nunca, ao longo de todo o período militar, a esquerda esteve tão amordaçada quanto a direita conservadora, especialmente religiosa, está hoje na grande mídia.

Para camuflar esse estado de coisas, é preciso eternizar o luto, alimentar e realimentar, com um jorro constante de lágrimas forçadas e caretas de pavor fingidas, padecimentos e temores velhos de mais de um quarto de século. Essa é a mentira estrutural que está na raiz de todas as degradações do jornalismo brasileiro. É a proibição total da sinceridade. A destruição da linguagem vem daí. Ninguém pode escrever direito quando vive de se esconder de si mesmo.

Artigo publicado pelo filósofo Olavo de Carvalho no Diário do Comércio, em 22 de Abril de 2012. (Também disponível em seu site pessoal.)

Quando os cientistas mentem

Na Bíblia, o termo “escândalo” costuma ser evocado para designar a comoção causada por uma informação que abala as crenças e a fé de uma pessoa. Para tentar experimentar tal sensação, assista à entrevista abaixo, concedida ao Jô Soares pelo cientista Ricardo Augusto Felício, professor de climatologia na USP. Entre outras coisas, somos informados de que não apenas o famigerado aquecimento global é uma farsa – na verdade, “aquecimento global” é apenas uma estratégia para o aumento do poder político de certas organizações internacionais – mas também somos informados de que não existe nem nunca existiu uma camada de ozônio – tudo não passou da ganância de certos empresários, os quais, em face do término das patentes que tornavam o CFC um gás lucrativo, decidiram patentear outro gás (HCFC) e espalhar a mentira de que o CFC danifica a “camada de ozônio”, substituindo-o por outro ainda mais caro -, de que a Amazônia não é o “pulmão do mundo” coisíssima nenhuma – a região amazônica não é quente e úmida por ter uma rainforest, senão que ela tem uma floresta porque a região é e sempre será, graças aos oceanos (os verdadeiros pulmões do mundo), sempre será quente e úmida, o que siginifica que, caso a floresta seja inteiramente derrubada, bastará um século para que cresça de novo por inteiro -, e assim por diante.

Aliás, o jornalista Charles C. Mann, após entrevistar grande número de cientistas, afirma que enorme parte da Amazônia já havia sido derrubada pelo homem antes mesmo da chegada de Colombo, e a prova disso está nos geoglifos, semelhantes aos de Nazca, que vêm surgindo em nosso próprio país conforme a floresta é novamente derrubada. (Veja entrevista com Charles C. Mann, e imagens aéreas dos geoglifos, no programa Milênio. Este é um dos livros dele.)

Enfim, se você costumava dar risadinhas cabotinas diante das crenças ingênuas de gente que acredita em “coisas” tais como Deus ou, digamos, a imortalidade da alma, saiba que algumas de suas certezas científicas (crenças!) foram desmentidas primeiro e que essas outras talvez jamais o sejam. (Escandalizado? Não? O Jô ficou, e por isso vale a pena rir das reações dele diante das revelações do professor Ricardo Augusto.)

P.S.: Ah, sim: a temperatura média da Terra está caindo desde 1998.

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Publicado originalmente no blog do Digestivo Cultural.

Por que Jesus ensinava através de parábolas?

parabola-semeador

(1688.3) 151:1.1 Naquela época, e pela primeira vez, Jesus começara a utilizar o método da parábola, para ensinar às multidões que tão freqüentemente se ajuntavam em volta dele. Posto que Jesus havia conversado com os apóstolos, e com outros, até tarde da noite, nesse domingo pela manhã pouquíssimos do grupo estavam de pé para o desjejum; assim, ele foi para a beira-mar e assentou-se a sós no barco, o velho barco de pesca de André e Pedro, que permanecia sempre à disposição dele; e então Jesus pôde meditar sobre o próximo passo a ser dado na obra de expandir o Reino. Todavia, o Mestre não ficou só por muito tempo. Logo, o povo de Cafarnaum e das aldeias próximas começou a chegar e, às dez horas, naquela manhã, quase mil pessoas se viram reunidas, na praia, perto do barco de Jesus, e clamavam pela atenção dele. Pedro, que agora já estava de pé, chegando ao barco, disse a Jesus: “Mestre, devo falar a eles?” E Jesus respondeu: “Não, Pedro, eu vou contar-lhes uma história”. E Jesus então começou a contar a parábola do semeador, uma das primeiras de uma longa série de parábolas com as quais ele ensinou às multidões que o seguiam. Esse barco tinha um assento elevado, no qual ele assentou-se (pois era costume ficar assentado, enquanto se ensinava) para falar às pessoas reunidas ao longo da praia. Pedro falou umas poucas palavras e em seguida Jesus disse:

(1688.4) 151:1.2 “Um semeador saiu para semear, e aconteceu que, ao semear, algumas sementes caíram à beira do caminho, onde seriam pisadas ou devoradas pelos pássaros do céu. Outras sementes caíram em locais rochosos, onde havia pouca terra, e brotaram imediatamente, dada a pouca profundidade no solo; todavia o sol veio logo e elas murcharam, pois não possuíam raízes com as quais absorver a umidade. Outras sementes caíram entre os espinhos e, quando os espinhos cresceram, ficaram estranguladas, de modo a nada produzirem. Outras sementes, ainda, caíram em solo bom e, crescendo, produziram trinta grãos, algumas outras, sessenta, e outras, cem grãos”. E, quando Jesus terminou de contar essa parábola, disse à multidão: “Aquele que tem ouvidos para ouvir, que ouça”.

(1689.1) 151:1.3 Os apóstolos e aqueles que estavam junto, quando ouviram Jesus ensinando ao povo daquele modo, ficaram bastante perplexos; e, depois de muito conversarem, entre si, naquela noite, no jardim de Zebedeu, Mateus disse a Jesus: “Mestre, qual é o significado das palavras obscuras que tu apresentaste à multidão? Por que falas por meio de parábolas àqueles que buscam a verdade?” E Jesus respondeu:

(1689.2) 151:1.4 “Eu vos tenho instruído com paciência durante todo esse tempo. A vós vos é dado conhecer os mistérios do Reino do céu, mas, para a multidão, que não sabe discernir, e, para aqueles que buscam a nossa destruição, de agora em diante, os mistérios do Reino serão apresentados em parábolas. Assim nós faremos para que aqueles que realmente desejem entrar no Reino possam discernir o significado do ensinamento e dessa forma encontrar a salvação; ao passo que aqueles que nos estiverem escutando, apenas para nos pegar de surpresa, acabarão ficando mais confundidos, pois verão sem nada ver e ouvirão sem nada ouvir. Meus filhos, não conheceis a lei do espírito a qual decreta que, àquele que tem, será dado, de um tal modo que ele terá em abundância; mas, àquele que não tem, será tomado até mesmo o que ele tem. Por isso, de agora em diante, eu falarei muita coisa ao povo, por meio de parábolas, para que os nossos amigos e aqueles que desejarem saber a verdade possam encontrar o que procuram, enquanto os nossos inimigos e aqueles que não amam a verdade possam ouvir sem entender. Muitos, dessa gente, não estão no caminho da verdade. O profeta de fato descreveu todas essas almas sem discernimento, quando ele disse: ‘Pois o coração desse povo tornou-se fechado e duro, e os seus ouvidos, embotados, e não escutam, e os seus olhos, eles os fecharam para não ver a verdade e para não a compreender nos seus corações”.

(1689.3) 151:1.5 Os apóstolos não entenderam totalmente o significado das palavras do Mestre. Enquanto André e Tomé conversavam mais com Jesus, Pedro e os outros apóstolos retiraram-se para uma outra parte do jardim, onde iniciaram uma discussão verdadeira e prolongada.

2. A Interpretação da Parábola

(1689.4) 151:2.1 Pedro e o grupo à sua volta chegaram à conclusão de que a parábola do semeador era uma alegoria, e que cada aspecto possuía um sentido oculto e, sendo assim, decidiram ir a Jesus e pedir uma explicação. E, desse modo, Pedro aproximou-se do Mestre, dizendo: “Nós não somos capazes de penetrar no significado dessa parábola, e, estamos desejando que tu a expliques para nós, já que disseste que a nós nos é dado conhecer os mistérios do Reino”. E, depois de ter ouvido isso, Jesus disse a Pedro: “Meu filho, não desejo esconder nada de ti, mas, primeiro, que tal se disseres a mim sobre o que acabastes de conversar; qual a tua interpretação da parábola?”

(1689.5) 151:2.2 Após um momento de silêncio, Pedro disse: “Mestre, nós falamos muito a respeito da parábola, e a interpretação pela qual eu optei é a seguinte: O semeador é o pregador do evangelho; a semente é a palavra de Deus. A semente, que cai à beira do caminho, representa aqueles que não compreendem o ensinamento do evangelho. Os pássaros, apanhando as sementes que caem no chão endurecido, representam Satã, ou o maligno, que rouba aquilo que foi semeado nos corações dos ignorantes. A semente que caiu nos locais rochosos e que brotam muito subitamente representam aquelas pessoas superficiais e irreflexivas que, ao ouvirem as boas-novas, recebem a mensagem com júbilo mas, como a verdade não tem nenhuma raiz real no seu entendimento mais profundo, a sua devoção tem vida curta diante da atribulação e da perseguição. Quando chegam as dificuldades, esses crentes tropeçam, e sucumbem quando tentados. A semente que caiu entre os espinhos representa todos aqueles que ouvem a palavra com boa vontade, mas permitem que as preocupações do mundo e a natureza enganadora das riquezas asfixiem o mundo da verdade, de tal modo que as verdades se tornam infrutíferas. Agora, as sementes que caíram no bom solo, e que cresceram, até darem, algumas trinta, outras sessenta e outras até cem grãos, representam aqueles que, após haverem ouvido a verdade, recebem-na em vários níveis de entendimento — devido aos seus dons intelectuais diferentes — e, por isso, manifestam esses vários graus de experiência religiosa”.

(1690.1) 151:2.3 Após haver ouvido a interpretação de Pedro, para a parábola, Jesus perguntou aos outros apóstolos se eles também possuíam sugestões a oferecer. A esse convite apenas Natanael respondeu. Disse ele: “Mestre, ainda que eu reconheça muitas coisas boas na interpretação que Simão Pedro dá à parábola, não concordo totalmente com ele. A minha idéia sobre essa parábola seria: A semente representando o evangelho do Reino, enquanto o semeador significando os mensageiros do Reino. A semente que caiu à margem do caminho, na parte endurecida do solo, representa aqueles que não ouviram senão pouco do evangelho e, também, aqueles que são indiferentes à mensagem e endureceram os seus corações. Os pássaros do céu, que levam as sementes caídas. à beira do caminho, representam os hábitos da nossa vida, a tentação do mal e os desejos da carne. A semente caída na rocha representa aquelas almas emocionais que são rápidas para receber os ensinamentos novos, mas também são igualmente rápidas para desistir da verdade, quando enfrentam as dificuldades e realidades para viver de acordo com essa verdade, a elas faltando a percepção espiritual. A semente, que caiu entre os espinhos, representa os que são atraídos para as verdades do evangelho; eles têm a intenção de seguir os ensinamentos, mas são impedidos pelo orgulho da vida, o ciúme, a inveja e as ansiedades da existência humana. A semente que caiu em bom solo, e cresceu até dar, algumas trinta, algumas sessenta e outras até cem grãos, representa os graus de capacidade natural e variável para compreender a verdade e responder aos seus ensinamentos espirituais, que têm os homens e as mulheres, pois possuem dons diferentes de iluminação de espírito”.

(1690.2) 151:2.4 Quando Natanael terminou de falar, os apóstolos e os seus companheiros entraram em uma discussão séria e mesmo em um debate profundo, alguns sustentando a correção da interpretação de Pedro; e um número quase igual deles tentava defender a explicação de Natanael para a parábola. Nesse ínterim, Pedro e Natanael haviam-se retirado para a casa, onde se envolveram em um esforço vigoroso e determinado para convencer e mudar a idéia, um ao outro.

(1690.3) 151:2.5 O Mestre permitiu que essa confusão ultrapassasse o limite da sua expressão mais intensa; após o que ele bateu com as palmas das mãos a fim de chamá- los para perto de si. Quando eles estavam todos reunidos à sua volta, uma vez mais, disse: “Antes de falar-vos sobre essa parábola, algum de vós tem qualquer coisa a dizer?” Depois de um momento de silêncio, Tomé falou: “Sim, Mestre, gostaria de dizer umas poucas palavras. Lembro-me de que tu nos aconselhaste, certa vez, para tomarmos cuidado exatamente com isso. Ensinaste-nos que, quando usássemos exemplos nas nossas pregações, deveríamos empregar histórias verdadeiras, não fábulas, e que deveríamos escolher a história que melhor se adequasse como exemplo da verdade central e vital, a qual gostaríamos de ensinar ao povo; e que, havendo usado a história, não deveríamos tentar dar um emprego espiritual a todos os detalhes menores envolvidos na narrativa da história. Eu sustento que Pedro e Natanael estão ambos errados nas suas tentativas de interpretar essa parábola. Admiro a capacidade deles para essas coisas, mas estou igualmente seguro de que todas as tentativas, como essas, de fazer uma parábola natural produzir analogias espirituais, em todos os seus aspectos, pode apenas resultar em confusão e em erros sérios de concepção, sobre o verdadeiro propósito da parábola. E, plenamente provado que eu devo estar certo, está, pelo fato de que, se há uma hora atrás comungávamos de um só pensamento, agora estamos divididos em dois grupos separados que sustentam opiniões diferentes a respeito dessa parábola e que mantêm tais opiniões tão sinceramente a ponto de até interferir, na minha opinião, com a capacidade de compreender plenamente a grande verdade que tu tinhas em mente, quando apresentaste essa parábola à multidão e quando posteriormente nos pediste para tecer comentários sobre ela”.

(1691.1) 151:2.6 As palavras ditas por Tomé tiveram o efeito de acalmar a todos. Ele levou-os a lembrarem-se do que Jesus lhes tinha ensinado em ocasiões anteriores e, antes que Jesus continuasse a falar, André ergueu-se e disse: “Estou persuadido de que Tomé está certo; e gostaria que ele nos contasse qual significado ele atribui à parábola do semeador”. Depois que Jesus acenou para Tomé falar, ele disse: “Meus irmãos, eu não gostaria de prolongar essa discussão, mas, se assim o desejardes, direi que penso que essa parábola foi contada para ensinar-nos uma grande verdade. E esta é a de que nossos ensinamentos sobre o evangelho do Reino, não importa quão fiel e eficientemente executemos as nossas missões divinas, serão acompanhados por vários níveis de êxito; e que todas essas diferenças, nos resultados, são devidas diretamente às condições inerentes às circunstâncias da nossa ministração, condições sobre as quais temos pouco ou nenhum controle”.

(1691.2) 151:2.7 Quando Tomé acabou de falar, a maioria dos seus companheiros pregadores estava pronta para concordar com ele e, Pedro e Natanael estavam mesmo, por sua vez, prontos a dirigir-se a ele, quando Jesus levantou-se e disse: “Muito bem, Tomé; tu discerniste bem o verdadeiro significado das parábolas; mas Pedro e Natanael, ambos, fizeram a vós todos um bem igual, pois eles mostraram plenamente o perigo de se tentar fazer uma alegoria das minhas parábolas. Nos vossos próprios corações, podeis muitas vezes, com proveito, fazer tais vôos de conjectura imaginativa, mas vós cometereis um erro sempre que buscardes oferecer conclusões como uma parte do vosso ensinamento público”.

(1691.3) 151:2.8 Agora, uma vez passada a tensão, Pedro e Natanael congratulavam-se um com o outro pelas suas interpretações e, à exceção dos gêmeos Alfeus, cada um dos apóstolos aventurava-se a fazer uma interpretação da parábola do semeador antes de retirar-se para dormir. Até mesmo Judas Iscariotes ofereceu uma interpretação bastante plausível. Freqüentemente, entre si próprios, os doze iriam tentar imaginar as parábolas do Mestre, como haviam feito, por meio de uma alegoria, mas, nunca mais, eles levariam essas especulações a sério. Essa foi uma sessão bastante proveitosa para os apóstolos e para seus colaboradores, especialmente porque, desde então, e cada vez mais, Jesus empregou parábolas no seu ensinamento público.

3. Mais a Respeito das Parábolas

(1691.4) 151:3.1 A mente dos apóstolos adaptava-se bem às parábolas; tanto assim, que toda a noite seguinte foi dedicada a mais uma discussão sobre as parábolas. Jesus iniciou a conferência da noite dizendo: “Meus amados, vós deveis sempre amoldar os vossos modos de ensinar, adequando assim a vossa apresentação da verdade às mentes e aos corações que estão diante de vós. Quando estiverdes diante de uma multidão de intelectos e de temperamentos vários, vós não podereis falar palavras diferentes para cada tipo de ouvinte, mas podeis contar uma história que passe o vosso ensinamento; e cada grupo, cada indivíduo mesmo, será capaz de dar a sua própria interpretação à vossa parábola, de acordo com os próprios dons intelectuais e espirituais. Deveis deixar a vossa luz brilhar, mas o façais com sabedoria e discrição. Nenhum homem, quando acende uma lâmpada, cobre-a com um vaso ou põe-na debaixo da cama; ele põe a sua lâmpada sobre um pedestal, onde todos possam ver a luz. No Reino do céu, permiti que eu vos diga, nada que, estando escondido, deixará de tornar-se manifestado; nem há segredo algum que não se fará afinal conhecido. Finalmente, todas as coisas virão à luz. Não penseis apenas nas multidões, e em como elas ouvem a verdade; prestai atenção também em vós próprios, em como escutais. Lembrai-vos do que eu vos disse muitas vezes: Para aquele que tem, será dado mais; enquanto daquele que não tem, será tomado até mesmo aquilo que ele pensa que tem”.

(1692.1) 151:3.2 A discussão contínua sobre as parábolas; e as outras instruções para a sua interpretação podem ser resumidas e expressas, em forma moderna, do modo seguinte:

(1692.2) 151:3.3 1. Jesus preveniu contra o uso, fosse de fábulas, fosse de alegorias, para o ensino das verdades do evangelho. Ele recomendava o uso livre de parábolas, especialmente parábolas naturalistas. Ele enfatizava o valor de utilizar-se das analogias existentes entre o mundo natural e o mundo espiritual, como um meio para ensinar-se a verdade. Freqüentemente fazia alusão ao natural, como sendo “a sombra irreal e fugaz das realidades do espírito”.

(1692.3) 151:3.4 2. Jesus narrou três ou quatro parábolas das escrituras dos hebreus, chamando a atenção para o fato de que esse método de ensinar não era totalmente novo. Contudo, tornou-se quase um método novo de ensinar, do modo como ele o empregou, desse momento em diante.

(1692.4) 151:3.5 3. Ao ensinar aos apóstolos o valor das parábolas, Jesus chamou a atenção para os pontos seguintes:

(1692.5) 151:3.6 A parábola tem apelo para vários níveis diferentes, simultaneamente, da mente e do espírito. A parábola estimula a imaginação, desafia o senso do discernimento e provoca o pensamento crítico; ela promove a simpatia, sem despertar antagonismos.

(1692.6) 151:3.7 A parábola parte das coisas conhecidas e chega ao discernimento do desconhecido. A parábola utiliza o material e o natural, como um meio de apresentar o espiritual e o supramaterial.

(1692.7) 151:3.8 As parábolas favorecem a tomada de decisões morais imparciais. A parábola escapa de muitos preconceitos e joga na mente uma nova verdade, de um modo encantador; e a tudo isso ela faz despertando um mínimo de autodefesa, de ressentimento pessoal.

(1692.8) 151:3.9 Rejeitar a verdade contida na analogia parabólica requer uma ação intelectual consciente, que despreza diretamente o vosso próprio julgamento honesto e a vossa decisão equânime. A parábola conduz ao esforço do pensamento por meio do sentido da audição.

(1692.9) 151:3.10 O ensino, sob a forma de parábola, capacita aquele que ensina a apresentar verdades novas e até surpreendentes, e ao mesmo tempo evita amplamente qualquer controvérsia e choque externo com a tradição e com a autoridade estabelecida.

(1693.1) 151:3.11 A parábola também possui a vantagem de estimular a lembrança da verdade ensinada, quando as mesmas cenas conhecidas forem encontradas posteriormente.

(1693.2) 151:3.12 Desse modo, Jesus buscava deixar os seus seguidores inteirados das muitas razões que motivavam a sua prática de usar cada vez mais as parábolas nos seus ensinamentos públicos.

Poemas aos Homens do Nosso Tempo, de Hilda Hilst (lidos por mim)

Seleção de apenas quatro dos Poemas aos Homens do Nosso Tempo, que pertencem ao livro Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974). Em vista da perene má qualidade de nossos políticos, continuam mais do que atuais. (Sim, estava devendo a leitura de alguns poemas da Hilda. Se não os gravasse, ao reencontrá-la do lado de lá, ela certamente iria me esculhambar: “É, você gravou o Fernando Pessoa e nem se lembrou de mim!”. Taurinas…)

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