Blog do Yuri

palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Os 100 Gênios da História da Literatura segundo Harold Bloom

Harold Bloom

O Javista (980?-900? A.C.)
Homero (séc. VIII A.C.)
Sócrates (469-399 A.C.)
Platão (c.429-347 A.C.)
Lucrécio (Tito Lucrécio Caro) (c.99-c.55 A.C.)
Virgílio (70-19 A.C.)
São Paulo (?-67)
Santo Agostinho (354-430)
Maomé (570?-632)
Murasaki Shikibu, Lady (978?-1026?)
Dante Alighieri (1265-1321)
Geoffrey Chaucer (1340?-1400)
Luis Vaz de Camões (1524?-1580)
Michel de Montaigne (1533-1592)
Miguel de Cervantes (1547-1616)
William Shakespeare (1564-1616)
John Donne (1572-1631)
John Milton (1608-1674)
Molière (Jean-Baptiste Poquelin) (1622-1673)
Jonathan Swift (1667-1745)
Alexander Pope (1688-1744)
Samuel Johnson (1709-1784)
James Boswell (1740-1795)
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
William Blake (1757-1827)
William Wordsworth (1770-1850)
Jane Austen, Lady (1775-1817)
Stendhal (Henry Beyle) (1783-1842)
Percy Bysshe Shelley (1792-1822)
John Keats (1795-1821)
Giacomo Leopardi (1798-1837)
Honoré de Balzac (1799-1850)
Victor Hugo (1802-1885)
Ralph Waldo Emerson (1803-1882)
Nathaniel Hawthorne (1804-1864)
Gérard de Nerval (Gérard Labrunie) (1808-1855)
Lorde Alfred Tennyson (1809-1892)
Charles Dickens (1812-1870)
Robert Browning (1812-1889)
Sören Kierkegaard (1813-1855)
Charlotte Brontë (1816-1855)
Emily Jane Brontë (1818-1848)
George Eliot (Mary Ann Evans) (1819-1880)
Herman Melville (1819-1891)
Walt Whitman (1819-1892)
Charles Baudelaire (1821-1867)
Gustave Flaubert (1821-1880)
Fiodor Dostoievski (1821-1881)
Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)
Henrik Ibsen (1828-1906)
Leon Tolstoi (1828-1910)
Emily Dickinson (1830-1886)
Christina Rossetti (1830-1894)
Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodgson) (1832-1898)
Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens) (1835-1910)
Algernon Charles Swinburne (1837-1909)
Walter Pater (1839-1894)
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)
Henry James (1843-1916)
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
José Maria Eça de Queirós (1845-1900)
Arthur Rimbaud (1854-1891)
Oscar Wilde (1854-1900)
Sigmund Freud (1856-1939)
Anton Tchekhov (1860-1904)
Edith Wharton (1862-1937)
William Butler Yeats (1865-1939)
Luigi Pirandello (1867-1936)
Marcel Proust (1871-1922)
Paul Valéry (1871-1945)
Willa Cather (1873-1947)
Hugo von Hofmannsthal (1874-1929)
Robert Frost (1874-1963)
Rainer Maria Rilke (1875-1926)
Thomas Mann (1875-1955)
Wallace Stevens (1879-1955)
Virginia Woolf (1882-1941)
James Joyce (1882-1941)
Franz Kafka (1883-1924)
D. H. Lawrence (1885-1930)
Fernando Pessoa (1888-1935)
T. S. Eliot (Thomas Stearns) (1888-1965)
Isaac Babel (1894-1940)
F. Scott Fitzgerald (1896-1940)
Eugenio Montale (1896-1981)
William Faulkner (1897-1962)
Federico Garcia Lorca (1898-1936)
Hart Crane (1899-1932)
Ernest Hemingway (1899-1961)
Jorge Luis Borges (1899-1986)
Luis Cernuda (1902-1963)
Alejo Carpentier (1904-1980)
Samuel Beckett (1906-1989)
Tennessee Williams (1911-1983)
Ralph Waldo Ellison (1914-1994)
Octavio Paz (1914-1998)
Iris Murdoch (1919-1999)
Paul Celan (Paul Antschel) (1920-1970)
Italo Calvino (1923-1985)
Flannery O’Connor (1925-1964)

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Do livro Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura, de Harold Bloom.

Valentin Tomberg fala sobre o arcano “Os Amantes / Os Enamorados”

Os Amantes

Caro Amigo Desconhecido,

Eis como se compõe a sexta lâmina, transposta inteiramente da linguagem visual do Tarô para a da poesia de Salomão. Porque na lâmina uma mulher de cabelos pretos, vestido vermelho e modos impudentes agarra um adolescente pelo ombro, enquanto outra, de cabelos louros e manto azul, com gesto casto de sua mão esquerda faz apelo ao seu coração; enquanto isso, do alto, um menino arqueiro, alado, destacando-se de bola branca que emite chamas vermelhas, amarelas e azuis, está prestes a lançar flecha ao outro ombro do adolescente. Contemplando-se a VI lâmina do Tarô, não se ouve voz dizer: “Eu te encontrei”? e outra: “Aquele que me procura me encontra”? Não se reconhecem a voz da sensualidade, a voz do coração e a flecha de fogo do alto, da qual fala o rei Salomão?

O tema central do sexto Arcano é, pois, o da prática do voto de Castidade, como o quinto Arcano tinha por tema de base a Pobreza, e o quarto, a Obediência. O sexto Arcano é, ao mesmo tempo, o resumo dos dois arcanos precedentes, sendo a Castidade fruto da Obediência e da Pobreza. Ele resume os três “votos” ou métodos de disciplina espiritual, confrontando-os com as três provas ou tentações opostas a esses votos. A escolha diante da qual o adolescente do sexto Arcano se acha é de alcance maior do que entre o vício e a virtude. Aqui se trata da escolha entre a via da Obediência, da Pobreza e da Castidade, de um lado, e a via do Poder, da Riqueza e da Luxúria, do outro. O ensinamento prático do Arcano “Os Amantes” trata dos três votos e das três tentações correspondentes, porque é essa a doutrina prática do Hexagrama ou Senário.

Na sua essência, os três votos são recordações do Paraíso, no qual o homem estava unido a Deus (Obediência), no qual tinha tudo ao mesmo tempo (Pobreza) e no qual sua companheira era também sua mulher, sua amiga, sua irmã e sua mãe (Castidade). Porque a presença real de Deus acarreta necessariamente a ação de prostrar-se diante Daquele “que é mais eu do que eu mesmo” — e aqui está a raiz e a fonte do voto de Obediência; a visão das forças, substâncias e essências do mundo na forma de jardim dos símbolos divinos ou Éden significa a posse de tudo sem escolher, sem pegar, sem apropriar-se de alguma coisa particular, isolada do todo — e aqui está a raiz e a fonte do voto de Pobreza; enfim a comunhão total entre o Único e a Única, que abrange a escala de todas as relações possíveis do espírito, da alma e do corpo entre dois seres polarizados, comporta necessariamente a integralidade absoluta do ser espiritual, anímico e corporal no amor — e aqui se encontra a raiz e a fonte do voto de Castidade.

Só é casto quem ama a totalidade do seu ser. A castidade é a integralidade do ser não na indiferença, mas no amor, que é “forte como a morte e cujas flechas são flechas de fogo, a chama do Eterno”. É a unidade vivida. São três, espírito, alma e corpo, que são um, e outros três, espírito, alma e corpo, que são um — três mais três fazem seis, e seis são dois, e dois são um.

Tal é a fórmula da Castidade no amor. É a fórmula de Adão-Eva. Ela é o princípio da Castidade, a recordação viva do Paraíso.

E o celibato do monge e da religiosa? Como se aplica a eles a fórmula da Castidade “Adão-Eva”?

O amor é forte como a morte, isto é, a morte não o destrói. Ela não pode fazer esquecer, nem fazer cessar de esperar. Aqueles dentre nós, almas humanas, que trazem em si a chama da recordação do Éden não podem esquecê-lo nem cessar de esperá-lo. E se essas almas vêm ao mundo com a marca dessa recordação e, ainda, com a marca de saber que seu encontro com Outro não se dará nesta vida, viverão a vida presente como viúvas, enquanto recordam, e como noivas, enquanto esperam. Ora, no fundo de seu coração, todos os verdadeiros monges são viúvos e noivos, e todas as verdadeiras religiosas são viúvas e noivas. O verdadeiro celibato dá testemunho da eternidade do amor como o milagre do verdadeiro matrimônio dá testemunho de sua realidade.

Ora, caro Amigo Desconhecido, a vida é profunda, e a sua profundeza é como um abismo sem fundo. Nietzsche sentiu isso e o exprimiu em seu Nachtlied:

O Mensch, gib acht,
Was spricht die tiefe Mitternacht —
Ich schlief, ich schlief — aus tiefem Traum bin ich erwacht.
Die Welt ist tief, noch tiefer als der Tag gedacht,
Tief ist ihr Weh,
Die Lust — noch tiefer als das Herzelied —
Weh spricht — Vergeh,
Doch alle Lust will Ewigkeit, will tiefe, tiefe Ewigkeit.”

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Ó homem, presta atenção,
Ao que diz a profunda meia-noite —
Eu dormi, dormi — acordei-me de sonho profundo.
O mundo é pensado profundamente, mais profundamente do que o dia,
Profunda é a sua dor,
O prazer é ainda mais profundo do que a canção do coração!
A dor diz: passa,
Mas todo prazer quer a eternidade, a profunda, profunda eternidade.”

Assim é a mesma flecha — “a flecha de fogo da chama do Eterno” — que é a causa tanto do verdadeiro matrimônio como do verdadeiro celibato. O coração do monge está atravessado por ela — por isso ele é monge — como o está o coração do noivo nas vésperas das núpcias. Onde há mais verdade e mais beleza? Quem poderá dizê-lo?

E a caridade, o amor do próximo? Qual é sua relação com o amor, cujo protótipo é dado pela fórmula “Adão-Eva”?

Constantin Noica e As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo

Constantin Noica

« Diferentemente das doenças comuns, que, provocadas por circunstâncias e agentes os mais variados, são inumeráveis, as doenças de ordem superior, do espírito, não são mais que seis, pois refletem as seis precariedades possíveis do ser.

« A primeira nasce da precariedade da ordem geral numa realidade individual provida de suas determinações. É, no homem, a catolite.

« A segunda deve-se à precariedade de uma realidade individual que deveria assumir as determinações inscritas numa ordem geral. É a todetite.

« A terceira situação ontológica é provocada pela carência de determinações apropriadas de uma realidade geral que tem já sua forma individual. É a horetite.

« A quarta apresenta-se como o oposto simétrico da precedente: aqui é o individual que, após ter alcançado um sentido geral, é incapaz (ou o recusa, no caso do homem) de se dar determinações específicas. É a ahorecia.

« A quinta delas provém da precariedade – e, no homem, da incompreensão – de toda realidade individual em harmonia com um geral que já se teria especificado graças a determinações várias. É a atodecia.

« Por fim, a sexta precariedade do ser projeta (de modo deliberado, no homem) numa realidade individual determinações que não se apóiam em nenhum sentido geral. É a acatolia.

« E, se foi possível ver no homem "o ser doente do universo", foi provavelmente por causa dessas seis doenças, não por seus males físicos nem por suas neuroses. Naturalmente, elas ainda não tinham sido denominadas, e talvez não tivessem sido claramente relacionadas com as "crises" espirituais do homem; parece-nos, todavia, que é precisamente delas que sempre se falou, pois, como quer que seja, só elas – sendo constitutivas do homem – nos podem autorizar a dizer que ele é um "ser doente”.

« Se porém nos contentássemos com a imagem mais comum da doença, como seria despropositado esse qualificativo! O homem não é o único a ser acometido de “doenças ônticas”, longe disso; é, ao contrário, o único entre tudo quanto existe a não ser imobilizado por seus malefícios. E, a esse respeito, a cultura produziu um fenômeno muito estranho: em seus inícios, parecia destinada a pôr em evidência a perfeição das coisas (suas leis e a ordem em que elas repousam – e, com relação ao homem, as leis e a ordem na qual ele deveria encontrar-se); mas sucedeu que, com o tempo, a poder de desvelar suas leis, a cultura acabou por trazer a lume a imperfeição mesma das coisas que aquelas governam.

« Os deuses revelaram-se doentes. Após terem criado um mundo bem abaixo do que se poderia esperar, alguns deles se afastaram, tornando-se aqueles dii otiosi, aquela espécie de naturezas demasiado gerais, sem rosto nem imagem, que são descritas pela história das religiões; outros, ao contrário, se imiscuíram a tal ponto nos negócios dos homens, que se tornaram – como os deuses gregos – puras individualidades, unilaterais e mutiladas em sua excessiva especialização; por fim, outros, que conseguiram salvaguardar sua natureza geral, preservando o rosto e a imagem, perderam seu regime de vida específico (o deus de Platão, por exemplo, que se restringiu a geometrizar para ocupar o tempo) e não mais se souberam dar determinações, ou então se deram, ao contrário, determinações demasiado numerosas (como os deuses da Índia). Decididamente, os deuses são doentes.

« Também o céu é doente. Os antigos acreditavam na incorruptibilidade dos astros e das abóbadas celestes (como na incorruptibilidade do divino). Um belo dia chegou Galileu, com sua luneta, e mostrou as imperfeições da lua, para desespero de seu contemporâneo Cremonini, que não as queria ver, já que Aristóteles dissera claramente que a lua era “perfeita”. E hoje, ao que parece, já se podem identificar as doenças galácticas. Sem dúvida, um caruncho oculto carcome o cosmos.

« Até a luz é doente. Goethe acreditava ainda em sua perfeição, e protestava quando Newton, após experiências, a proclamava impura, porque compósita. Ah! fosse ela apenas impura! Mas é também limitada, e seu passo de entidade cósmica débil conta apenas 300.000 km/s. Impura, débil, ela ademais é secretamente fissurada, sendo corpúsculo e onda a um tempo. Quantas doenças num só raio de luz!

« Quanto ao tempo, esse tempo absoluto, homogêneo e uniforme, em seu equilíbrio perfeito e implacável, não se terá tornado um pouco menos majestoso quando se percebeu que ele não passa de um pobre “tempo local”, irmão siamês de um espaço que, por seu lado, considerado até recentemente “ordem universal de coexistência das coisas”, se tornou, desde então, mero campo espacial, uma espécie de realidade regional, num universo onde já nenhum conjunto chega a reunir a infinidade de suas partes?

« E não se poderá dizer o mesmo da Vida, tal como a vêem hoje os biólogos, com suas incertezas e aproximações, fruto de um acaso mudado em necessidade (Monod), espécie de tumefação incidente da matéria – na terra, pelo menos -, abscesso que amadurece dia a dia e que, com o homem, terá talvez o seu fim? E também o Logos, coroamento da Vida, não é, com toda a certeza, doente, fragmentado como está em vários idiomas? Pois há que reconhecer, sem sequer recorrer ao mito das represálias divinas, a incongruência entre, por um lado, ele, o Logos, estar dividido e, por outro, seu nome mesmo pretender que ele traga em si a unidade da Razão.

« Dado que as grandes entidades são doentes (sem contar todas as miúdas realidades, em nossa escala!) e que a cultura demonstra que suas doenças são constitutivas, como não ver aí, então, as doenças do ser? Seria preciso, ao contrário, levar em consideração as situações críticas do ser, tanto mais seriamente porque elas tocam diretamente o ser no homem. A cultura trouxe a lume sobretudo as doenças das coisas, ao passo que o homem pode, por seu espírito e por sua razão, e a despeito de sua vinculação ao Tempo, ao Espaço, à Vida e ao Logos – precários, como vimos -, afirmar sua própria superioridade. Não seria o homem, portanto, se não o único ser são, ao menos o único curável no universo – sendo tudo o mais imperfeito e doente?

« Em certo sentido, a sentença de Nietzsche, e, infelizmente, não somente sua – "O homem é o único ser doente do universo" -, foi um dos grandes achados estúpidos da humanidade, os quais temos o hábito de adotar sem o menor exame crítico. No caso em questão, o único fato que teria permitido ao homem saber que o ser é doente – e a sentença de Nietzsche é prova bastante! – bastaria para confirmar-lhe o privilégio, único no mundo, de poder superar seu mal só pela força de seu espírito. Naturalmente, o cego de nascença não cobriria os olhos se não soubesse o seu estado. Mas, na verdade, ele não o "sabe" realmente: disseram-lho. Em todo caso, ele não saberá jamais o que é de fato ver. Quanto ao homem, fosse ele esse ser doente por excelência, exilado no meio da suposta "saúde" geral, não permaneceria o único a conhecer, ao mesmo tempo, seu mal e a saúde de tudo o mais; em contrapartida, se, em verdade, também tudo o mais é doente, como lho mostra a cultura inteira, e se seu próprio mal não representa senão mais um, este último é, sem dúvida alguma, de natureza diferente de tudo o que é precário, incerto e doente no mundo.

« Com efeito, ao longo das páginas que se seguirão, tornar-se-á cada vez mais evidente que no homem – e só nele – as doenças do ser são simuladores ontológicos. Que Ser, aliás, recusaria um excedente de ser? E por que o ser humano seria incapaz de enriquecer o "humano" que há nele? Só a vã e humilhante consciência do "corruptível" e do efêmero, da insanidade que cada uma de nossas tentações de existir e de crer encerra, pode ser doença no homem; ela nos pode debilitar apenas quando não se muda em canto ou poema. Em contrapartida, as doenças do ser, isto é, as doenças de seu ser espiritual, conservam ou, ao menos, podem conservar, em sua desordem mesma, o positivo humano. A desordem do homem é sua inesgotável fonte de criação.

« Povos inteiros e até toda uma época se instalam numa ou noutra dessas seis doenças – e daí brotam as fontes de seu gênio. Seis doenças constitutivas do homem parecem, assim, estar na origem de seis grandes tipos de afirmação humana. Para ele, portanto, não se trataria de as curar, e uma "medicina entis" seria de todo inútil. Importa-lhe, em contrapartida, conhecê-las e aprender a nelas reconhecer-se e ler seu destino. Em certo sentido, elas dão conta tão bem de nossa existência humana, de nossas maneiras de raciocinar e de nossos pensamentos – pois não nascem nossos pensamentos, mui freqüentemente, de nossas grandes confusões? -, que poderiam fornecer um a verdadeira trama às nossas orientações. Poder-se-ia pois falar em seis idades do homem, como em seus seis objetos de amor, em suas seis maneiras de crer e, até, em seus seis modos de elaborar sistemas filosóficos; em suas seis culturas, em suas seis liberdades, em suas seis experiências da história e em seus seis sentidos do trágico, nos seis acasos e em suas seis necessidades, em seis sentidos do infinito e em seis sentidos do nada.

« Até onde levar esse exercício sistemático? Quando parar de desenvolver novas variedades de estruturas pela simples reunião, em sistema, das doenças espirituais? O fato de as seis doenças nos permitirem perceber uma diversidade ali onde reina a aparência de um só sentido – quem veria, ordinariamente, mais que um sentido na liberdade, ou no trágico? – parece, contudo, dar-nos aval para continuar. Ademais, as estruturas que assim possamos obter, em domínios tão variados, não estão aí, elas também, para defender nossa causa?

« Mas uma idéia que frutifica demasiadamente acaba por tornar suspeita aos olhos mesmos de seu autor. E talvez haja uma sétima doença do espírito: a de acarretar, com uma palhinha de novidade, um imenso tédio. Por isso, contentemo-nos com nossas seis doenças, e tentemos descrevê-las e decifrar a ordem que elas instauram na imensidão da desordem humana.»

______

Trecho do primeiro capítulo do livro As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, de Constantin Noica (1909-1987).

Enquanto isso, no banheiro feminino…

 

Banheiro feminino

— Ei, por que você tá me olhando desse jeito?

— Por nada.

— Essa voz…

— Que é que tem minha voz?

— Aaah! Você é homem! Sai daqui!

— Não saio não.

— Então eu vou gritar!

— Mas eu sou crossdresser.

— Hã?! Crós o quê?

— Crossdresser. Estou vivenciando meu lado feminino.

— Tá bom! Só porque tá vestido de mulher…

— É verdade.

— Se é verdade, tava me olhando por quê?

— Para aprender a me portar melhor como mulher, ora.

— Hum, sei… Muito esquisito isso.

— É sério. Por exemplo: gostei da sua idéia de cobrir o vaso com papel antes de se sentar. Toda mulher faz isso?

— O quê? Você tava me espiando no reservado?

— Dei uma olhadinha por cima, de pé na privada aí do lado. Achei muito interessante.

— Seu safado!

— Safado não. Respeite minha opção. Quero ser tratado como mulher. É meu direito.

— Não acredito que agora sou obrigada a ouvir isso…

— Obrigada a ouvir você não é, mas é obrigada a aceitar. Se me tirarem daqui, posso processar você e o dono do bar.

— Tá legal, calma. Só que primeiro eu preciso me acostumar com a idéia, né. Até meu avô já se vestiu de mulher; mas isso era no carnaval, poxa!

— Certo, eu entendo. Meus tios também faziam isso lá no Rio. Mas, enquanto você se acostuma, posso pedir um favor?

— Que favor?

— Depois que você faz xixi, na hora de se enxugar, você esfrega o papel na xoxota ou só o encosta de leve?

— Ah, pelo amor de Deus! Me poupe, né!

— Poxa, é uma pergunta relevante. Cerveja faz a gente vir aqui toda hora. E imagino que, se você esfrega o papel cada vez que faz xixi, acaba ficando toda assada, né.

— Por que você não pergunta isso pra sua mãe, hem?

— Bom, minha mãe já faleceu… — responde, com a voz embargada.

— Ah, desculpe, não quis…

— Tudo bem… — diz ele, uma expressão triste no olhar.

— Não faz essa cara, falei sem saber.

— Bom, se você me fizer um favor, juro que vou me sentir melhor.

— Ai… O que é agora?

— Posso passar o papel em você pra eu sentir como é?

— O quê?! Ficou maluco, é?

— Maluco não: maluca!

— Tá: maluca. Ficou maluca, é?

— Deixa, vai. Só um pouquinho.

— Nem ferrando!!

— Então deixa pelo menos eu ver você fazendo. Não deu pra ver olhando de cima.

— Ai, caramba… Tá bom, tá bom.

— Eba.

— Mas já vou te avisando: se você encostar um dedo em mim, eu grito; viu?

— Viu.

Ela volta ao reservado, pega um pedaço de papel, levanta a saia, arria a calcinha.

— Hum, bigodinho de Hitler, né.

— Pára com isso e presta atenção: só vou mostrar uma vez.

Ela encosta em si mesma o papel dobrado algumas vezes, pressionando de leve.

— Ah, eu sabia! Sem esfregar.

— Pois é…

Ele estende a mão e, afastando o papel de cima da xoxota, verifica se ela ficou mesmo sequinha.

— Aaaaah! — ela grita, derrubando-o com um chute no rosto e ajeitando novamente a roupa.

— Socoooorro!!! — ele berra ainda mais alto do que ela.

Uma policial uniformizada entra no banheiro: — O que está acontecendo aqui?

— Esse homem me atacou! — diz a mulher.

— Eu? — contesta ele, sentado no chão, o nariz sangrando. — Quem é que foi nocauteado aqui? Quem é a vítima? — E para a policial: — Ela não respeitou minha opção. Sou crossdresser, se a senhora não a prender agora, vou acionar a Coordenadoria Estadual de Políticas para a Diversidade Sexual. Vocês duas estarão violando a lei estadual 10.948/2001.

A policial, engolindo em seco, segura a mulher pelo braço: — A senhora está presa.

— O quê?! Ficou maluca?!! Não seja idiota, não caia na conversa desse cretino!

— Quieta! Não me desacate! — e então a algema, levando-a dali cheia de autoridade.

— Ai, ai, nada como usufruir dos meus privilégios… — suspira o crossdresser. — Qual outro bar tem umas gatas como essa mesmo? Esse aqui já era…

E, levantando-se, saiu em direção à porta, equilibrando-se como podia em seus saltos que destoavam completamente da saia fora de moda.

Ex-namoradas e desarmamento civil

 

"Ei, sua ex-namorada tá morando no mesmo prédio que eu."

"Ah, é?"

"É. E continua muito gata, a gente sempre se encontra no elevador."

"Sei."

Silêncio.

"Que cara é essa?"

"Minha cara, uê."

"Tá com ciúme, é? Pensei que você é que tinha terminado com ela."

"E foi mesmo."

"Então não pode ter ciúmes, poxa. Aliás, você nunca teve ciúme de ex-namorada…"

"A gente muda. Aprende a se deixar envolver de verdade…"

"Eu ia chamar ela pra sair. Você ficaria grilado?"

O outro vacila alguns segundos. Por fim, indaga: "Você ainda é defensor do desarmamento civil?"

"Que que isso tem a ver?"

"Responde primeiro."

"Sou a favor, sim."

"E por que é a favor?"

"Caralho, a gente já discutiu isso mil vezes…"

"Refresca minha memória, vai."

"Tá bom. Caramba… É o seguinte: eu acho que, em casos extremos, a pessoa que tem uma arma pode perder o controle emocional e fazer besteira."

"Sei. Você acha que o autodomínio é uma utopia então…"

"O completo autodomínio é."

"Você se lembra do que eu acho disso, né."

"Ah, lá vem você com aquele papo de que fez CPOR, de que é tenente da reserva, que tem arma e que sabe usar…"

"E não só."

"Ah, claro: você também se acha supercontrolado, vive repetindo que atiraria apenas na coxa ou no ombro de um assaltante e que nem uma briga de trânsito com um completo babaca iria te tirar do sério…"

"E você duvida disso."

"Duvido! Duvido meeeesmo. Acho que todo mundo tem seu limite."

"Acha mesmo?"

"Acho."

"A gente pode fazer um teste."

"Que teste?"

"Sai com minha ex-namorada e fica com ela. Juro que tentarei me controlar. Vamos ver quem tem razão."

"Por acaso isto é uma ameaça, é?"

"Claro que não — é uma experiência. Você parece acreditar muito na sua tese. Eu, por exemplo, acredito apenas que essa garota foi, ou é, sei lá… enfim, que ela foi importante pra mim."

"Hum."

"E então? Topa ver qual de nós tem razão sobre o autodomínio?"

O outro deu um sorriso amarelo. No dia seguinte, mal cumprimentou a garota ao vê-la na portaria do prédio…

Um papo estranho

 

"Meus velhos amigos estão no Facebook, mas nunca conversam comigo."

"Os meus tampouco, na verdade, nem respondem minhas mensagens diretas."

"Os meus respondem no máximo com um ‘sim’, um ‘não’ ou um ‘talvez’."

"Por que será?"

"Ah, deve ser por causa de política ou de religião. Com o tempo as pessoas vão notando as diferenças de opinião e vão se afastando. Cada macaco no seu galho."

"Muito chato isso."

"Nem me fala."

"Mas acho que comigo isso acontece por outras razões…"

"Por exemplo?"

"Ah, a maioria parou de falar comigo depois que entrei numa festa armado, atirando em todo mundo."

"Como é?!"

"Sério, mas não matei ninguém não. Era um revólver de espoleta."

"Ah, bom…"

"Mas ninguém achou graça. Com a paranóia geral, ficaram foi putos, pensando que era de verdade. Teve gente que se jogou debaixo da mesa; muito engraçado. A namorada de um amigo meu me xingou pra caramba, aí chamei ela de puta e tal."

"Credo."

"Ah, mas era uma vagabundinha mesmo. Já tinha dado pra todo mundo, só ele não sabia. Até aquele momento, claro. E sobrou pra mim: o cara me encheu de porrada."

"Puts…"

"Pelo menos não foi como numa outra festa, onde servi um space cake pra galera."

"Que que é isso?"

"Um bolo feito de maconha, porra."

"Ah, tá…"

"Aí sim quiseram me matar… Todo mundo alucinando e tal. Chamaram a polícia, imagine. Esse pessoal careta, quando finalmente fica louco, perde as estribeiras…"

"Você parece ser meio psico, né."

"Psico? Só eu?"

"Bom, eu nunca fiz esse tipo de coisa. No máximo declaro abertamente minhas posições sobre política, religião…"

"E só eu sou psicótico?"

"E o que há de psicótico em assumir minhas idéias numa rede social?"

"Bom, nisso não há nada de psicótico, mas, se você já se esqueceu, estamos ambos com o pau de fora conversando no Chatroulette.com…"

"Hum, é verdade. Já tinha até abstraído. Mas é que, caramba, só tem pau de fora aqui e as garotas nunca conversam com a gente."

"Tá, mas é injusto, numa situação como essa, eu ser o único psicótico…"

"Ok, ok, me desculpa."

"Pelo menos a gente consegue conversar, ao contrário do que ocorre com nossos antigos amigos."

"Isso é verdade."

"A gente podia se adicionar no Facebook…"

"Tá louco, meu! Você acha que vou adicionar um cara de quem só vi o pau! Tá achando que sou bicha? Vai se ferrar, cara!"

"Ah, vai você, seu idiota!"

E então ambos apertaram no "Next".

Márcia e o desconhecido do MSN

 

 

Márcia iniciou o MSN e a janela com o convite se abriu: um certo Alessandro queria adicioná-la. Era bonito na foto e, no texto do convite — “Oi, te achei interessante. Posso te adicionar?”—, havia o endereço do perfil dele no Facebook. Decidiu, pois, dar uma checada antes. Viu que ele tinha apenas uns quarenta amigos — o que lhe pareceu pouco, talvez estivesse há pouco tempo naquela rede social —, notou que ele morava e trabalhava na mesma cidade, que tinham muitos interesses em comum e o principal: pelas demais fotos via-se que era realmente um homem muito bonito, um sujeito a exalar um ar de confiança dos mais impressionantes. Claro, um piloto de helicóptero — uau! — não podia ser alguém sem auto-estima. O aparelho pode até preferir o combustível, mas os passageiros querem mesmo é alguém que lhes transmita segurança.

“Ok”, pensou ela, “vou dar uma chance pra esse cara”, e aprovou o convite. Ele, que já estava online, iniciou o contato imediatamente.

“Oi, tudo bem?”

“Tudo, e com você?”, devolveu ela.

E iniciaram um longo diálogo que durou mais de três horas. Descobriram gostos em comum, falaram de livros, filmes, viagens, esportes radicais, gastronomia e até de astrologia tradicional, que a ela nunca interessou muito, mas que, em vista das descrições que ele lhe fazia com base apenas na data de nascimento dela, muito a tocou. Não era um homem qualquer. Via-se que conhecia os mais diversos temas. E como escrevia bem! Transmitia maturidade. Muito diferente de outros homens a quem ela dera uma brecha pela internet e que apenas a deixaram constrangida e irritada.

“Acho que estou prestes a cometer uma loucura”, escreveu ela, por fim.

“E que loucura seria essa?”

“Acho que vou aceitar seu convite para esse passeio de helicóptero.”

“Mesmo?”

“Mesmo.”

“Isso não é tão louco assim. Eu piloto muito bem. Estará em boas mãos.”

Ela hesitou alguns instantes. Mas preferiu abrir o jogo: “O problema é que sou casada”.

“Hum, entendo. Mas não se preocupe, vou respeitar você.”

“Rsrsrsrsrsrs”, digitou ela. “Mas é que estou pensando em me separar do meu marido. A loucura que estou falando é a seguinte: você consegue pilotar enquanto uma mulher chupa seu pau?”

Ele demorou segundos demais para responder. Ela quase se arrependeu da ousadia. Então ela viu que ele digitava algo. E leu: “Bom, como profissional, acho que seria uma péssima idéia e realmente não deixaria você fazer isso comigo em pleno vôo. Mas podemos, antes ou depois do passeio — você escolhe a ordem — podemos passar uma tarde num motel”.

“Perfeito!”, disse ela. “Quando?”

Marcaram o encontro. E desconectaram. Ela estava decidida a ter essa aventura. Estava cansada da distância que o marido deixara crescer entre eles, cansada da sua falta de iniciativa, do seu desânimo, das suas reclamações e de sua eterna depressão. Ele vivia colocando a culpa dessa vida atolada no governo, nos ex-sócios, na falta de visão do brasileiro comum, enfim, a culpa era sempre de um outro, ele jamais assumia sua falta de atitude. Ele, que fora um homem cheio de sonhos e planos, uma pessoa criativa e muito inteligente, depois que se tornara Fiscal Federal na fronteira, costumava agora passar metade do mês noutra cidade, sempre se comunicando de uma forma amargurada, seca, como se não gostasse mais da vida ou, quem sabe, como se não gostasse mais dela. Já Rafael, o marido, não sabia o que pensar. Para não perder sua esposa, que tanto amava, de fato trocara seus sonhos por um emprego estável que pagava bem. Quantas vezes ouvira os amigos a lhe dizer que precisava deixar de viver no mundo da Lua? Quantas vezes lhe disseram que uma família precisa de segurança material e não de viagens na maionese artística? Mas agora estava fora de si. Não sabia se matava a si próprio, se matava Márcia, ou se as duas coisas. Desde o casamento, quatro anos antes, ele vivia criando perfis e contas de MSN falsos para testar a fidelidade da esposa. Mas essa estranha mania se acentuara com esse novo emprego, que o mantinha longe, numa cidade aborrecida, cultivando meramente os ciúmes e a preocupação. Sua imaginação não o abandonava, vivia martirizando-o. Imaginava a esposa sozinha, ainda jovem, bonita, sem filhos, sem ter o que fazer na capital… Entrava então no Flickr, copiava mil fotos de diversos estranhos, ficava dias preparando um perfil no Facebook, convidando pessoas aleatoriamente para dar uma certa credibilidade àquela vida falsa sem amigos reais, e até aquele momento, por mais que tivesse tentado, na pele de um outro, seduzi-la com palavras, promessas, lascívia e até dinheiro, a esposa sempre se esquivara, alegando amar o marido e afirmando enfaticamente que havia aceitado o convite apenas por achar que se tratava de algum contato profissional. Desta vez, porém, ela não passou no seu teste.

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