palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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G.K. Chesterton fala sobre o verdadeiro prazer de beber

Pieter Breughel, Detail from "The Wine of St. Martin's Day," ca.

Omar e a vinha sagrada

UMA NOVA MORALIDADE veio ao nosso encontro com certa violência e se relaciona ao problema da bebida alcoólica. Os entusiastas do assunto variam desde o homem que é posto para fora dos pubs ingleses às 00h30 até a dama que ataca os balcões dos bares com um machado. Em tais discussões, quase sempre sentimos que uma postura moderada e bastante sábia é dizer que o vinho, ou coisas do tipo, devem ser ingeridos como remédio. Atrevo-me a discordar disso com particular veemência. A forma genuinamente perigosa e imoral de tomar vinho é tomá-lo como remédio. E por esta razão: se alguém bebe vinho por prazer, está tentando obter algo excepcional, algo que não espera a qualquer hora do dia, algo que, a menos que seja um tanto louco, não tentará obter a qualquer hora do dia. Mas se alguém bebe vinho para ter saúde, está tentando obter algo natural; ou seja, algo sem o que não consegue viver; algo sem o que dificilmente passará sem consumir. Pode ser que aquele que não tenha visto o êxtase de ficar extático não fique seduzido; é mais fascinante vislumbrar o êxtase de estar normal. Se houvesse um ungüento mágico, e o mostrássemos a um homem forte e lhe disséssemos: “Isto te permitirá saltar do Monumento”,145 sem dúvida saltaria, mas não ficaria saltando durante o dia todo para alegrar o centro da cidade. Mas se mostrássemos o ungüento a um cego e lhe disséssemos, “Isto te permitirá recobrar a visão”, essa pessoa ficaria fortemente tentada. Ser-lhe-ia difícil não esfregá-lo nos olhos quando ouvisse o galopar de um nobre cavalo ou o cantar de pássaros ao alvorecer. É fácil não permitir que alguém tenha prazeres; difícil é negar a aquisição da normalidade. Por isso, e todos os médicos sabem, é sempre perigoso dar bebida alcoólica aos doentes mesmo quando precisam. Inútil dizer que não considero que dar bebida alcoólica como estimulante a um doente seja necessariamente injustificado. Mas considero o dar bebidas alcoólicas a pessoas saudáveis como divertimento um uso apropriado e muito mais coerente com a saúde.

A regra sadia nessa questão parece ser a mesma de muitas outras regras saudáveis – um paradoxo. Beba por estar feliz, mas nunca por se sentir extremamente infeliz. Nunca beba quando estiver infeliz por não ter uma bebida, ou irá parecer um triste alcoólatra caído na calçada. Mas beba quando, mesmo sem a bebida, estaria feliz, e isso o tornará parecido com um risonho camponês italiano. Nunca beba por precisar disso, pois tal ato racional é o caminho para a morte e o inferno. Mas beba por não precisar disso, pois beber irracionalmente é a antiga fonte de saúde do mundo.

Por mais de trinta anos o vulto e a glória de uma grande figura oriental têm sido impostos à literatura inglesa. A tradução de Fitzgerald dos Rubáiyát de Omar Khayyām146 concentrou, com imorredoura comoção, todo o sombrio e desnorteado hedonismo de nossa época. Seria simplesmente inútil falar do esplendor literário da obra; poucos são os livros dos homens que conseguiram combinar tão bem a alegre combatividade de um epigrama com a vaga tristeza de uma canção. Mas, sobre a influência filosófica, ética e religiosa, que é tão grande quanto o esplendor, gostaria de dar uma palavra, e tal palavra, confesso, é de uma hostilidade intransigente. Há muitas coisas que podem ser ditas contra o espírito do Rubáiyát, e contra sua enorme influência. Mas uma acusação se destaca das demais de forma nefasta – uma verdadeira desgraça para a obra, uma calamidade genuína para todos. Tal acusação seria o golpe terrível que o grande poema desferiu na sociabilidade e na alegria da vida. Alguém já chamou Omar de “o vetusto persa jubilosamente triste”.147 Triste é; mas não jubiloso, em nenhum dos sentidos da palavra. Tem sido um inimigo da alegria pior que os puritanos.

Um oriental pensativo e elegante repousa debaixo de uma roseira, com uma garrafa de vinho e seu rolo de poemas. Pode parecer estranho que nossos pensamentos, no momento em que visualizamos tal cena, se voltem à sombria cabeceira do leito em que o médico oferece ao doente um cálice de brandy. Pode parecer ainda mais estranho que tal pensamento possa se voltar para o trêmulo vagabundo com um copo de gim em Houndsditch.148 Contudo, uma grande unidade filosófica envolve os três elementos num elo maligno. O beberricar vinho de Omar Khayyām é mau, não porque seja um sorvo de vinho. É ruim, e muito nocivo, porque é um beber medicinal. É o beber de um homem que bebe porque não é feliz. Seu vinho é o que o exclui do universo, não aquilo que lho revela. Não é um beber poético, alegre e instintivo; é um beber racional, tão prosaico quanto um investimento, tão insípido quanto um cálice de camomila. Infinitamente superior, do ponto de vista do sentimento, embora não do estilo, surge o esplendor de uma antiga canção boêmia inglesa:

Then pass the bowl, my comrades all,
And let the zider vlow.149

Pois esta canção era entoada por homens felizes, para expressar o valor das coisas verdadeiramente valorosas, da irmandade e loquacidade, e do breve e cordial lazer do pobre. É claro que a maior parte das acusações mais disparatadas dirigidas à moralidade omariana são tão falsas e pueris quanto geralmente são tais acusações. Um crítico, cuja obra já li, teve a incrível insensatez de considerar Omar ateu e materialista.150 É quase impossível para um oriental ser uma coisa ou outra. O oriente conhece metafísica muito bem para que isso aconteça. A verdadeira objeção filosófica que um cristão poderia apresentar à religião de Omar não é, por certo, a de não conceder um lugar para Deus, mas sim a de lhe dar espaço demais. É de um teísmo terrível que não consegue imaginar nada exceto a divindade, e nega completamente os elementos da personalidade e da vontade humana.

A bola não questiona “sim” ou “não”,
Mas vai aqui e ali, conforme bate o jogador;
E ele, que a lançou neste campo,
Ele tudo sabe – ele sabe – ele sabe!151

Um pensador cristão como Agostinho ou Dante se oporia a isso porque ignora o livre-arbítrio, que é o valor e a dignidade da alma. A contenda da alta cristandade com esse tipo de ceticismo, no mínimo, não é porque o ceticismo nega a existência de Deus; é porque nega a existência do homem.

No culto dos que buscam o prazer pessimista, o Rubáiyát tem lugar de destaque em nossa época; mas não está sozinho. Muitas das inteligências mais brilhantes de hoje têm nos incitado a semelhante desfrutar súbito de prazeres excepcionais. Walter Pater152 disse que estamos todos sob sentença de morte, e o único curso possível é o desfrutar de deliciosos momentos por amor aos próprios momentos. Semelhante lição foi ensinada pela poderosa e infeliz filosofia de Oscar Wilde. É a religião do carpe diem.153 No entanto, a religião do carpe diem não é a religião das pessoas felizes, mas a das absolutamente infelizes. A grande alegria não colhe o botão de rosas quando pode;154 seus olhos estão fixos na rosa imortal vista por Dante.155 A grande alegria traz em si o sentido da imortalidade; o próprio esplendor da juventude é a sensação de que há muito espaço para esticar as pernas. Em toda a grande literatura cômica, em Tristram Shandy156 ou Pickwick,157 há um senso de espaço e incorruptibilidade; sentimos que as personagens são seres imortais numa lenda interminável.

É bem verdade, claro, que uma felicidade pungente surge, sobretudo, em alguns momentos fugazes; mas não é verdade que deveríamos pensá-los como passageiros, ou desfrutá-los simplesmente “por amor aos próprios momentos”. Fazer isso é racionalizar a felicidade e, portanto, destruí-la. A felicidade é um mistério, como a religião, e nunca deve ser racionalizada. Suponhamos que um homem experimente um esplêndido momento de prazer. Não quero dizer algo com um verniz de felicidade; falo de algo como uma violenta felicidade interior – uma felicidade quase dolorida. Alguém pode ter, por exemplo, um momento de êxtase no primeiro amor, ou um momento de vitória numa batalha. O amante desfruta o momento, mas não por causa do momento. Ele o desfruta pela mulher, ou para o próprio bem. O guerreiro desfruta o momento, mas não pelo momento; desfruta-o por causa da bandeira. A causa que a bandeira representa pode ser tola e passageira; o amor pode ser apenas um arrebatamento juvenil, e durar uma semana. Mas o patriota acredita na bandeira como eterna. O amante vê seu amor como algo que não pode terminar. Esses momentos são repletos de eternidade; esses momentos são jubilosos porque não parecem transitórios. Uma vez que os olhemos como momentos à maneira de Pater, se tornam tão frios quanto Pater e seu estilo. Os homens não podem amar coisas mortais. Só conseguem, por um instante, amar as coisas imortais.

O erro de Pater é revelado em sua expressão mais famosa. Ele nos convida a “arder com o inflexível fulgor de uma pedra preciosa”.158 O brilho nunca é rijo e nunca se parece com uma jóia – não pode ser manuseado ou organizado. Do mesmo modo, as emoções humanas nunca são inflexíveis e nunca se parecem com jóias. São sempre perigosas, assim como o brilho das chamas, ao toque ou mesmo à averiguação. Há somente um modo pelo qual as paixões podem ser rijas e se assemelharem às pedras preciosas: tornarmo-nos frios como os diamantes. Até então, nenhum golpe aos amores e às gargalhadas espontâneas dos homens foi tão esterilizante quanto esse carpe diem dos estetas. Para qualquer tipo de prazer, é preciso um espírito totalmente diferente; certa timidez, certa esperança vaga, certa expectativa infantil. Pureza e simplicidade são essenciais às paixões – sim, mesmo às vis paixões. Até o vício exige uma espécie de virgindade.

O efeito de Omar (ou de Fitzgerald) sobre o outro mundo pode ser afastado, mas sua mão sobre este mundo tem sido pesada e paralisante. Os puritanos, como disse, são muito mais alegres. Os novos ascetas que seguiram Thoreau159 ou Tolstói160 são companhias mais cheias de vida; pois, embora o abandono à bebedeira e aos semelhantes luxos nos possa parecer uma negação inútil, ele pode legar ao homem inumeráveis prazeres naturais, e, acima de tudo, submetê-lo ao poder natural da felicidade. Thoreau podia apreciar o nascer do sol sem uma xícara de café. Se Tolstói não podia admirar o casamento, ao menos era bastante saudável para admirar a lama. A natureza pode ser apreciada mesmo sem a maioria dos confortos naturais. Um belo bosque não necessita de vinho. No entanto, nem a natureza nem o vinho, nem nada mais, pode ser apreciado se assumirmos uma postura errada em relação à felicidade, e Omar (ou Fitzgerald) tinha uma postura errada em relação à felicidade. Ele e aqueles a quem vem influenciando não percebem que se pretendemos ser verdadeiramente felizes, devemos acreditar que há uma felicidade eterna na natureza das coisas. Não conseguimos apreciar plenamente nem mesmo um pas-de-quatre161 num baile público a menos que acreditemos que as estrelas estejam dançando a mesma música. Ninguém pode ser realmente hilário senão o homem sério. “O vinho”, diz a Escritura, “alegra o coração do homem”,162 mas somente do homem que tem coração. O chamado espírito elevado163 é possível somente ao homem espiritual. No fim das contas, um homem não pode se alegrar com nada, a não ser com a natureza das coisas. No fim das contas, um homem não pode se alegrar com nada, a não ser com a religião.

Outrora, na história do mundo, os homens realmente acreditaram que as estrelas dançavam ao som da música dos templos, e dançaram como nunca se dançara desde então. A respeito desse antigo eudaimonismo164 pagão, o sábio do Rubáiyát tem tão pouca relação quanto a tem com um cristão de qualquer denominação. Não é um adorador de Baco nem um santo. A igreja de Dionísio era fundada num sério joie-de-vivre como a de Walt Whitman.165 Dionísio fez do vinho não um remédio, mas um sacramento. Jesus Cristo também fez do vinho não um remédio, mas um sacramento. Mas Omar o fez não um sacramento, mas um remédio. Festeja não porque a vida é prazerosa; diverte-se porque não está feliz. Diz: “Bebei, pois não sabeis de onde vindes nem por quê. Bebei, pois não sabeis quando nem aonde ireis”.166 Bebei, porque as estrelas são cruéis e o mundo é tão sem propósito quanto um pião. Bebei, porque não há nada em que valha a pena crer, nada por que lutar. Bebei, porque todas as coisas se passam numa regularidade ignóbil e numa paz nociva. Dessa maneira, o poeta nos oferece a taça que está em suas mãos. E no altar-mor da cristandade se encontra outra personagem, em cujas mãos também há um cálice de vinho. Ele diz: “Bebei, pois todo o mundo é tão vermelho quanto o vinho, tão carmesim quanto o amor e a ira de Deus. Bebei, pois já soam as trombetas da batalha e esta é a taça transbordante. Bebei, pois este é o meu sangue, o sangue da nova aliança que é derramado por vós. Bebei, pois Eu sei de onde vindes e por quê. Bebei, pois Eu sei aonde ireis e quando”.
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FONTE:  Hereges (Cap. VII), de G.K. Chesterton. Ed. Ecclesiae. Tradução:  Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito.

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NOTAS:

145 Referência ao monumento ao grande incêndio de Londres, construída por Sir Christopher Wren (1632–1723) entre 1671 e 1677. O monumento, erigido próximo ao local onde iniciou o grande incêndio de Londres em 1666, é uma coluna de pedra em estilo dórico e tem cerca de 60 metros de altura.
146 Edward Fitzgerald (1809–1883) publicou, em 1859, a versão poética traduzida para o inglês da obra Rubáiyát do poeta iraniano Omar Khayyām (1048–1131) e tal trabalho se tornou imensamente popular, embora a obra guarde pouca relação com o texto original.
147 Chesterton, sem dar crédito, cita o livre-pensador secularista e editor George William Foote (1850–1915), anteriormente mencionado no capítulo II, que se refere ao autor persa como “the sad-glad old persian” no ensaio “Rose-water Religion” de 1894.
148 Rua de Londres que seguia o mesmo trajeto do antigo fosso romano, construído fora dos muros de Londres. No século XIX era o local onde se aglomeravam miseráveis e bêbados.
149 Algo como: “Então passem a taça, camaradas, / E deixem a sidra rolar”. A graça está no último verso, que reproduz a fala de bêbado: “and let the zider vlow” ao invés de “and let the cider flow”.
150 Provável referência à obra de John M. Robertson (1859–1933), jornalista inglês, defensor do racionalismo e do secularismo. Foi membro do parlamento pelo Partido Liberal e discípulo de Charles Bradlaugh (1833–1891). Em A Short History of Freethought Ancient and Modern, cujo primeiro volume apareceu em 1899, há um capítulo “Freethought under Islam” onde o autor se refere ao persa nesses termos.
151 A presente estrofe é uma tradução literal (e livre) da quadra LXX de Fitzgerald que diz: “The Ball no Question makes of Ayes and Noes, / But Right or Left as strikes the Player goes; / And He that toss’d Thee down into the Field, / He knows about it all–HE knows–HE knows!”. Atualmente, vários estudiosos já contestaram a seriedade desta tradução, dentre eles, Jorge Luis Borges (1899–1986) que, num ensaio chamado “O enigma de Edward Fitzgerald”, atribuiu ao inglês a “invenção” dos Rubáiyát. A presente estrofe, se confrontada com várias traduções para o português da mesma obra, parece não corresponder a nenhuma passagem. Se fizermos uma tradução mais literal do poema diretamente do persa o trecho ficaria da seguinte forma: “No jogo cósmico de polo és a bola / À direita e à esquerda do bastão fica a tua vocação / É ele quem te move, levanta ou faz cair / Ele é aquele, o único, que tudo sabe”.
152 Walter Horatio Pater (1839–1894) foi um ensaísta, crítico de arte e escritor de ficção inglês. Neste e nos parágrafos seguintes, Chesterton está fazendo referência à famosa conclusão de Pater na obra Studies in the History of Renaissance de 1873, chamado a partir da segunda edição de The Renaissance: Studies in Art and Poetry. Sobre o lema e filosofia de Pater, ver capítulo XVII.
153 Expressão tirada de um verso do poeta Horácio (65 a.C.–8 a.C.) em Odes, Livro I, 11, 8 que diz: “Carpe diem quam minimum credula postero” [Colhe o instante, sem confiar no amanhã]. Interpretada como “aproveite o momento” ou “desfrute o dia”.
154 Referência aos versos de abertura do poema “To the Virgins, to Make Much of Time” de Robert Herrick (1591–1674): “Gather ye rosebuds while ye may / Old Time is still a-flying; / And this same flower that smiles today, / Tomorrow will be dying”.
155 Referência à visão que o poeta tem da rosa mística ao centro da rosa dos beatos como luz, fulgurante, no Empíreo. Ver canto XXX e XXXI do “Paraíso” na Divina Comédia de Dante Alighieri (1265–1321).
156 Referência ao romance The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman de Laurence Sterne (1713–1768), fortemente influenciado por François Rabelais (1494–1553) e Miguel de Cervantes (1547–1616). A obra compreende nove volumes e influenciou muitos escritores modernistas como Virginia Woolf (1882–1941) e James Joyce (1882–1941).
157 Referência ao romance de Charles Dickens (1812–1870), The Pickwick Papers, lançado em formato de folhetim de 1836 a 1837, em que o autor faz várias críticas à sociedade vitoriana.
158 A expressão aparece na conclusão da já citada obra de Walter Pater sobre a Renascença.
159 Henry David Thoreau (1812–1862) foi um poeta, historiador e filósofo norte-americano, cuja tese da desobediência civil influenciou o pensamento político de muitos filósofos e ativistas como seu contemporâneo russo, Liev Tolstói, e posteriormente, Gandhi (1869–1948) e Martin Luther King, Jr. (1929–1968). Também defendia a volta à natureza, o abandono do desperdício e da ilusão para descobrir as necessidades essenciais da vida.
160 Liev Nikoláievich Tolstói (1828–1910) foi um dos grandes escritores russos. No fim da vida se tornou um pacifista e pregou uma vida simples em contato com a natureza. Chesterton discorrerá sobre o autor, neste livro, no capítulo X.
161 Um divertissement de balé com quatro bailarinos, cuja primeira coreografia ocorreu em 1845, em Londres, e alcançou enorme sucesso.
162 Sl 103, 15.
163 Há, nesta passagem, um duplo sentido intraduzível, pois o termo spirits, além de indicar disposição, temperamento, vigor ou vivacidade, em inglês pode significar bebida alcoólica.
164 Doutrina segundo a qual a felicidade é o valor supremo, critério último da razão e objetivo da vida humana.
165 Walt Whitman (1819–1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado “o pai do verso livre”. Embora fosse defensor de um estilo de vida “vagabundo”, propunha a abstinência alcoólica. Em termos de religião era bastante cético em relação às igrejas; politicamente, propunha uma visão igualitária das raças. Na principal obra, Leaves of Grass, de 1855, podem ser vistos traços de homossexualismo, fato que escandalizou seus contemporâneos.
166 Quadra LXXIV da tradução de Fitzgerald. Em inglês: “Drink, for you know not whence you come nor why. / Drink, for you know not when you go nor where”.

Evelyn Waugh: sobre comes e bebes…

 Evelyn Waugh

Os dois trechos abaixo foram retirados do romance A Volta à Velha Mansão (Brideshead Revisited), de Evelyn Waugh. Veja o que ele diz a respeito desse livro em sua entrevista à Paris Review:

INTERVIEWER

Can you say something about the germination of Brideshead Revisited? [Você pode dizer algo sobre a gênese de A Volta à Velha Mansão?]

WAUGH

It is very much a child of its time. Had it not been written when it was, at a very bad time in the war when there was nothing to eat, it would have been a different book. The fact that it is rich in evocative description—in gluttonous writing—is a direct result of the privations and austerity of the times. [É em grande parte um filho de sua época. Se não tivesse sido escrito quando o foi, num momento muito difícil da guerra em que não havia nada para comer, teria sido um livro diferente. O fato de ser rico em sua descrição evocativa — numa escrita glutona — é um resultado direto das privações e da austeridade daqueles tempos.]

PRIMEIRO TRECHO:

Certo dia, descemos à adega com Wilcox, vimos os escaninhos vazios, onde em tempos idos havia muito vinho armazenado; uma ala apenas se encontrava bem abastecida; alguns vinhos ali tinham cinquenta anos de idade.

— Não houve nenhum acréscimo desde que Sua Senhoria partiu para o estrangeiro — disse Wilcox. — Uma boa parte desse vinho antigo vai se estragar se não for bebido. Deveríamos ter desistido das colheitas de 18 e 20. Tenho recebido várias cartas de comerciantes de vinhos a esse respeito, mas a duquesa diz que Lorde Brideshead é que deve decidir, e ele diz que é o duque, e Sua Senhoria manda falar com os advogados. E assim, nossas reservas vão minguando. Na proporção que isso vai, teremos suprimento para dez anos, mas onde estaremos nós?

Wilcox apreciou nosso interesse; experimentamos garrafas de todos os escaninhos, datadas desses serões tranqüilos passados na companhia de Sebastian; minha momentosa iniciação na arte de beber, ali eu semeei para a abundante colheita que me serviria de arrimo em muitos anos vazios de minha vida. Ficávamos os dois sentados no “parlatório pintado”, com as garrafas de vinho abertas em cima da mesa e três copos diante de cada um de nós; Sebastian descobrira um livro sobre a arte de degustar o vinho e nós seguíamos as instruções nos menores detalhes. Aquecíamos ligeiramente o copo até um terço, no calor da chama de uma vela, fazíamos o líquido girar, amornando-o com o calor de nossas mãos, erguendo-o de encontro à luz, aspirando-o, sorvendo-o, enchendo a boca de vinho, estalando a língua de encontro à abóbada palatina, fazendo-o tinir como uma moeda lançada sobre um balcão; jogávamos então a cabeça para trás, deixando-o descer gota a gota pela garganta.

Enquanto discutíamos suas qualidades, íamos mordiscando biscoitos Bath Oliver, depois passávamos para outra marca, voltávamos ao primeiro, pulávamos para outro, até misturar os três e confundir a ordem dos copos; perdendo a noção das coisas, trocávamos nossos copos, e afinal os seis ficavam enfileirados; muitas vezes a troca de garrafas ocasionava uma mistura de vinhos, por isso éramos obrigados a recomeçar tendo três copos limpos diante de cada um de nós, enquanto as garrafas se esvaziavam e nossos elogios se tornavam cada vez mais malucos e exóticos.

— …É um vinho leve e recatado como uma gazela.

— Parece um gnomo.

— Uma corça malhada na paisagem de uma tapeçaria.

— Como o som de uma flauta às margens de um lago.
— … Este aqui é um vinho que possui a sabedoria de um velho.
— Um profeta em uma gruta.

— …Um colar de pérolas num colo alvo.

— Como um cisne.

— Como o último dos unicórnios.

E, deixando a luz dourada das velas na sala de jantar, íamos nos sentar à beira da fonte, à luz das estrelas, mergulhando as mãos na água, ouvindo, embriagados, a água espadanando e cascateando nas rochas.

— Será preciso nos embriagarmos todas as noites? — perguntou Sebastian certo dia.

— Creio que sim.

— Eu também acho.

* * *

SEGUNDO TRECHO:

— Escute aqui, tenho muita coisa para contar, e prometi a um cara no Travellers uma revanche hoje à tarde. Quer jantar comigo?

— Está bem. Onde?

— Costumo ir ao Ciro.

— Por que não o Paillard?

— Não conheço. O convite é meu.

— Eu sei. Deixe-me escolher o jantar.

— Muito bem. Como é mesmo o nome do lugar? — Escrevi o nome para ele. — É um desses lugares típicos?

— Sim, pode ser incluído nessa categoria.

— Bem, será uma novidade. Encomende uma comida gostosa.

— É o que pretendo fazer.

Cheguei vinte minutos antes de Rex. Já que teria de passar a noite em sua companhia, pelo menos seria à minha moda. Lembro-me bem desse jantar, sopa de oseille, um linguado feito de maneira simples num molho de vinho branco, caneton à la presse, um soufflé de limão. À última hora, temendo que fosse simples demais para Rex, acrescentei caviar aux blinis. Quanto aos vinhos, incluí por conta dele uma garrafa de Montrachet de 1906, que naquela ocasião tinha atingido todo o seu bouquet, e um Cios de Bèze de 1904 para acompanhar o pato.

Naquela época a vida era fácil na França; ao câmbio da época, minha mesada dava para muita coisa e eu vivia folgadamente. Contudo, raramente jantava assim, e meus sentimentos para com Rex eram de boa paz, quando finalmente ele chegou e entregou seu casaco e seu chapéu com o ar de quem nunca mais esperava vê-los. Passeou o olhar desconfiado pela pequena sala escura, como se esperasse encontrar apaches ou um bando de estudantes bêbados. Mas havia apenas quatro senadores comendo no mais completo silêncio com os guardanapos amarrados por baixo das barbas, já o via contando mais tarde na roda de seus amigos do comércio: ” … um conhecido meu, sujeito interessante; estudando pintura em Paris. Levou-me a uma tasca, uma’espécie de restaurante, um desses lugares por que a gente passa sem reparar, mas onde comi como poucas vezes em minha vida. Encontrei lá uma meia dúzia de senadores; como vocês vêem, o lugar era bem freqüentado. Nada barato, também”.

— Alguma notícia de Sebastian? — perguntou ele.

— Só dará sinal de si — disse eu — quando precisar de dinheiro.

— Foi um azar dar um fora desses. Tinha esperanças de ser bem sucedido nesse caso, e assim melhorar minha posição noutro setor.

Era evidente que ele desejava falar de seus próprios problemas; mas o assunto podia esperar, pensei eu, a hora do conhaque, aquele instante de tolerância e satisfação, quando a atenção fica embotada, e o espírito funciona apenas pela metade. Mas no momento culminante em que o maitre d’hotel virava os blinis na frigideira, e dois empregados menos graduados preparavam as grelhas, falaríamos sobre minha pessoa.

— Você ficou muito tempo em Brideshead? Falaram de mim depois que eu parti?

— Se falaram de você? Meu velho, fiquei saturado. A marquesa dizia ter “remorsos” da maneira como o tratara. Ela não o poupou, segundo me consta, no momento da despedida.

— Chamou-me mau e cínico.

— Palavras duras.

— Desde que não me chamem de empadão de pombo, e me comam, que me importa?

— Quê?

— É um ditado.

— Ah! — A mistura do creme e da manteiga quente parecia transbordar, e as contas verde-mar do caviar nadavam naquele molho branco salpicado de manchas douradas de manteiga.

— Gostaria de um pouquinho de cebola picada com isso — disse Rex. — Um sujeito entendido falou-me que dá mais gosto.

— Experimente primeiro sem — disse eu. — E conte-me o que falaram de mim.

— Bem, naturalmente, Greenacre, ou coisa que o valha, aquele professor infecto, caiu no ostracismo. A satisfação foi geral. Depois que você foi embora, ele ficou sendo o favorito. Desconfio que foi ele quem levou nossa castelã a dar-lhe o bilhetinho azul. Nós tínhamos de agüentá-lo, mas Julia acabou ficando tão saturada que o desmascarou.

— Julia fez isso?

— Bem, você compreende, ele começou a se intrometer em nossa vida. Julia descobriu que ele era um impostor, e, uma tarde em que Sebastian estava alto, aliás, era esse seu estado habitual, ela conseguiu arrancar-lhe toda a história da tal viagem. E foi esse o fim de Mr. Samgrass. Depois disso, a marquesa começou a achar que talvez tivesse sido injusta com você.

— E a encrenca com Cordélia?

— Isso eclipsou tudo o mais. Aquela pirralha é um fenômeno. Havia uma semana que ela vinha arranjando uísque para Sebastian debaixo do nosso nariz. Ninguém conseguia descobrir aonde ele ia buscá-lo. Foi aí que a marquesa entregou os pontos.

Depois dos blinis, a sopa estava uma delícia, quente, magra, picante, leve.

— Charles, vou contar-lhe uma coisa que mamãe Marchmain ainda não disse a ninguém. Ela está muito doente. Pode empacotar a qualquer momento. George Anstruther a examinou no outono e deu-lhe dois anos de vida.

— Como é que você sabe?

— Por ouvir dizer. Mas nas trapalhadas atuais em que a família dela anda metida, eu não lhe daria um ano. Conheço em Viena o homem indicado para o caso dela. Ele pôs Sônia Bamfshire de pé, quando todos, inclusive Anstruther, tinham dado o caso como perdido. Mas mamãe Marchmain não quer tomar providências. Deve ser por causa de sua maluquice religiosa, não quer cuidar do corpo.

O linguado fora preparado com tão rara simplicidade, que passou despercebido de Rex. Comemos ao som do chiar da grelha, dos ossos roídos, do gotejar do sangue e do tutano, do bater da colher ao regar as fatias finas de peito. Fizemos então uma pausa de um quarto de hora, enquanto eu bebia meu primeiro cálice de Cios de Bèze e Rex fumava seu primeiro cigarro. Recostando-se, ele soprou a fumaça por cima da mesa e observou: — Você sabe, a comida aqui é bem regular; era o caso de alguém patrocinar o lugar e transformá-lo.

Depois, voltou a falar dos Marchmain:

— Vou contar-lhe outra coisa também; se não tomarem cuidado, não tardarão a ficar com as finanças abaladas.

— Julguei que fossem riquíssimos.

— Bem, são ricos, mas o dinheiro deles está parado. O dinheiro se desvaloriza, gente nessas condições está mais pobre agora que em 1914, e os Flyte não compreendem isso. Os advogados que administram os bens da família parecem achar mais prático dar todo o dinheiro que eles pedem, e calarem-se. Veja a vida que levam: mantendo Brideshead e Marchmain House com todo o luxo; matilhas de cães de caça, os aluguéis não são aumentados, não despedem ninguém, empregados antigos às dúzias sem fazer nada, tendo por sua vez criados para servi-los, e, além disso, o velho mantendo outra casa, e com o mesmo estadão.

“Você sabe quanto eles devem?”
— Claro que não.

— Só em Londres vai a perto de cem mil. Ignoro o montante de suas dívidas em outros lugares. Bem, você compreende, é um bocado de dinheiro para quem não sabe empregá-lo. Em novembro passado subia a noventa e oito mil. São essas as histórias que eu ouço contar.

Era isso que ele ouvia, pensei eu, falar de doenças mortais e dívidas. Deliciei-me com o borgonha.

Lembrava-me o que Rex parecia ignorar, a idade e beleza do universo, a sabedoria adquirida pela humanidade em luta contra suas paixões. Por acaso, tornei a encontrar esse mesmo vinho durante o primeiro outono da guerra, quando almoçava com meu importador de vinhos na St. James Street; com o passar dos anos ficara mais suave e mais fraco, mas conservava ainda a pureza e o sabor dos tempos áureos, e transmitia ainda a mesma mensagem de esperança.

— Não quero dizer com isso que eles venham a ficar na miséria; o velho terá sempre uma renda de seus trinta e tantos milhões por ano, mas o negócio está para estourar, e quando a alta sociedade resolve fazer economias, são as moças que pagam. Gostaria de resolver a questão do dote antes de isso acontecer.

Ainda não chegáramos ao conhaque, e já estávamos falando a respeito dele. Eu me dispunha a ouvi-lo, mas queria uma trégua de uns vinte minutos ainda. Por isso, procurei dar-lhe o mínimo de atenção possível, e preparei-me para apreciar a comida; mas frases esparsas vinham atrapalhar meu bem-estar, fazendo-me voltar a esse mundo cruel e ganancioso em que Rex vivia. Em resumo, ele desejava uma mulher, mas queria o melhor partido que pudesse encontrar, e não estava disposto a pagar um preço muito alto.

— …Mamãe Marchmain não vai comigo. Não me interessa. Não é com ela que eu quero casar. Ela não tem coragem de dizer abertamente: “Você não é um gentil-homem, mas apenas um aventureiro das colônias”. Diz que vivemos em mundos diferentes. Está certo, mas Julia gosta do meio em que eu vivo… Depois vem com essa história de religião. Nada tenho contra a dela; no Canadá não ligamos muito aos católicos, mas isso é diferente; aqui na Europa há católicos muito prosas. Está bem, Julia pode ir à igreja sempre que quiser. Não serei eu a impedi-la. Aliás, ela não liga dois caracóis, mas eu acho bom uma moça ter princípios religiosos. E eu ainda concordo que ela eduque os filhos na religião católica. Farei todas as “promessas” que eles quiserem… Depois vem com essa história de meu passado. “Mal o conhecemos.” Aliás, ela sabe até demais. Você talvez saiba que eu tenho um caso já há uns dois anos.

Eu não o ignorava. Aliás, quem conhecia Rex ficava logo a par de sua ligação com Brenda Champion. Essa era a explicação para a diferença que existia entre a carreira de Rex e a dos outros corretores; a razão de ser de suas partidas de golfe com o príncipe de Gales, do seu título de sócio do Bratt, e de suas relações cordiais com membros da Câmara dos Comuns. Em sua primeira aparição, os chefes de seu partido não se referiram a ele como: “Olhe, aquele ali é o jovem e futuroso representante de North Gridlev, que fez um discurso tão brilhante sobre congelamento de aluguéis”, mas: “Lá vai o último caso de Brenda Champion”. Isso contribuiu muito para aumentar-lhe o prestígio entre os representantes de seu sexo; quanto ao sexo frágil, ele não tinha dificuldade em conquistá- lo com seu encanto pessoal.

— Bem, está tudo acabado. Mamãe Marchmain muito delicadamente não tocou no assunto, limitou-se a dizer que “falavam de mim”. Que espécie de genro queria ela? Um monge de fancaria como Brideshead? Julia sabe de tudo e não se importa; logo, ninguém tem nada a ver com isso.

Depois do pato, veio uma salada de agrião e chicórea, com um leve tempero de alho verde. Procurei concentrar minha atenção na salada. Consegui durante algum tempo pensar apenas no soufflé. Chegou enfim a hora do conhaque, o momento apropriado para confidências. — … Julia está com quase vinte anos. Não quero esperar pela maioridade. De qualquer maneira, pretendo fazer a coisa às direitas… um casamento em grande estilo… Tenho de defender os interesses dela na questão do dote. Por isso, se a marquesa se fizer de tola, eu vou catequizar o velho. Segundo dizem, ele estará de acordo com tudo que possa vir a aborrecê-la. No momento, ele está em Monte Carlo. Tinha planejado ir até lá depois de deixar Sebastian em Zurique. Por isso é que estou danado com seu desaparecimento.

Rex não gostou do conhaque. Era transparente e claro, e a garrafa não veio suja nem tinha algarismos da era napoleônica. Devia ser um ou dois anos mais velho que Rex, e fora engarrafado há pouco tempo. Serviram-no em cálices muito finos do feitio de tulipas, de proporções modestas.

— Sou entendido em conhaque — disse Rex. — Este não tem boa cor. Além disso, não consigo sentir o gosto neste dedal.

Trouxeram-lhe um balão do tamanho de sua cabeça. Ele fez com que o aquecessem sobre uma lamparina de álcool. Depois rodou o vinho delicioso, mergulhou o rosto no vapor e declarou que em casa dele poria soda num conhaque daquela marca.

Então, envergonhados, trouxeram num carrinho lá de seu esconderijo um garrafão mofado reservado para clientes do tipo de Rex.

— Isto sim — disse ele, despejando o conteúdo até deixar marcas escuras na borda do copo. — Eles têm sempre uma reservazinha escondida, que mostram apenas quando a gente faz barulho. Sirva-se.

— Estou satisfeito com este aqui.

— Se você não é mesmo apreciador, seria um crime bebê-lo.

Acendeu o charuto, e refestelou-se na cadeira com um ar de profunda satisfação; eu também estava satisfeito, mas por motivos diferentes. Estávamos ambos contentes. Ele falava de Julia, sua voz parecia vir de muito longe, confusa, como o latido de um cão perdido na distância numa noite silenciosa.

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Fonte: A Volta à Velha Mansão, de Evelyn Waugh.

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