palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Dr. Pinto Grande: quase lá

Eu já havia reescrito e revisado tantas vezes os contos do meu próximo livro que já estava com raiva deles, algo do tipo “larga d’eu, diacho!”. E por isso, nos últimos meses, passei a dar atenção mormente aos problemas encontrados pelos revisores da Record, os quais, para meu refrigério, me fizeram atentar para as partes em vez do todo. No entanto, quase um mês após tudo parecer concluído, a editora me pediu para averiguar a diagramação do texto final e apontar as derradeiras alterações. E então — com essa “ameaça” damocleana de “última chance” sobre a cabeça — respirei fundo e decidi relê-lo de cabo a rabo: e não é que ri, meditei e me emocionei com meus próprios contos? Espero que os leitores d’A Sábia Ingenuidade do Dr. João Pinto Grande sintam, no mínimo, o mesmo que eu senti nesses últimos dias. E olha que eu tinha em mente todos os spoilers possíveis e imagináveis…

O dinheiro liberta (ou O Bilionário)

De braço com sua linda namorada — uma modelo muito disputada pelas mais exclusivas passarelas européias — um bilionário entrou a largos e confiantes passos naquele bar da moda. Atrás dele, praticamente correndo para acompanhá-los, vinha um séquito formado por uma lésbica, uma feminista, um gay, uma transexual, um drogadicto, um ladrão de caixas eletrônicos, um negro, um refugiado muçulmano, um índio, um comunista, um jornalista, um cineasta, um artista plástico e um ator de novelas. Ele e sua namorada se sentaram numa pequena mesa para dois e aquela gente, à guisa de coro grego, aglomerou-se às costas do casal, permanecendo de pé. O garçom aproximou-se, indagou se aquele grupo os estava incomodando, e o bilionário disse que não, que eram seus funcionários. O garçom, pois, deu de ombros, anotou os pedidos — incluindo uma única garrafinha de água para cada “coreuta” — e se retirou.

— Nossa — exclamou a namorada, sorrindo — não sabia que você curtia esse tipo de balada. Você é mesmo cheio de surpresas.

— Eu gosto do clima, do ambiente. O único problema é que aqui… — e então, atendendo a um gesto seu, o coreuta gay se inclinou e ouviu o que ele tinha a dizer.

E o gay, assumindo a posição de corifeu à frente do coro, completou a frase:

—…é que aqui tem muito viado.

O bilionário, sem ocultar um olhar dos mais severos, virou-se ligeiramente para seu funcionário.

— O problema é que aqui tem muuuuito viado! — repetiu o gay, desta vez praticamente aos berros, estendendo em seguida a mão. O bilionário retirou então cinco cédulas de 100 reais e as depositou discretamente naquela mão de longos dedos.

Os demais frequentadores do bar, ao ouvir aquilo, encheram-se de indignação, olhando com ar de censura na direção do casal. Contudo, percebendo que quem havia proferido aquelas palavras não era senão um sujeito que poderia ser confundido com um Cauby Peixoto ou um Liberace — o paletó coberto de lantejoulas, todo cheio de trejeitos, caras e bocas — deram de ombros: e sorriram.

O garçom voltou com as bebidas, o tira-gosto e as garrafinhas de água que, a pedido do bilionário, distribuiu à socapa, como se o coro e o casal não estivessem juntos.

— Pode ser — tornou a modelo, pegando o copo. — Mas eu os adoro! Quase todos os meus amigos são gays. Sem falar no meu maquiador, no meu cabeleireiro…

O bilionário sorriu, alteroso:

— Claro, claro. Os gays são ótimos! Meu advogado é gay. Mas ele só age como um…

— …viado espalhafatoso e sem noção!… — tornou a vociferar o coreuta gay, que recebeu imediatamente mais 500 reais.

— …quando está bêbado numa festa privada — concluiu o bilionário. — Mas, no trabalho, é um lorde. Gosto dos gays. Pelo menos não tentam ser fisicamente o que não são, como esses… — e fez outro gesto, desta vez, para a esquerda, sussurrando algo em seguida.

— …como esses travestis malucos! — berrou escandalosa e comicamente a transexual. — Eles querem ser tratados como mulheres, mas não podem parar de tomar hormônios femininos, pois todas as células do seu corpo são XY! — e, com isto, provocou risadas até mesmo numa mesa ocupada por um grupo que parecia ter chegado de uma parada gay.

E o bilionário, retirando mais 500 reais do bolso, a pagou.

— Credo! Travesti e transexual nem são a mesma coisa — objetou a modelo, rindo. — Como você é mau!

— Isso é ruim?

— Não, adoro homens malvados!

— Eu sei — tornou ele, cheio de si. — Como se isso não estivesse implícito na maneira como transamos — e sorriu, deslizando o dedo pelas gotículas de água condensada na lateral do copo. — Ora, mulher gosta mesmo é de… — e fez outro gesto seguido de mais sussurros.

— Mulher gosta mesmo é de apanhar! — gritou a coreuta feminista, assumindo a tarefa de corifeu. — Essas então, que se fazem de fodonas e que se dedicam exclusivamente às suas carreiras, nem se fala! E mulher que compete com o marido precisa de mais palmadas ainda! Mulher de verdade gosta é de se submeter — prosseguiu a feminista, exaltada —, principalmente naqueles momentos mais quentes do sexo — e, ao concluir, estendeu a mão. O bilionário lhe pagou 500 reais.

De todos as partes do bar, as pessoas a olhavam, mas nada diziam. Aquela ali devia ser meio maluca. “Não era aquela colunista da Folha de São Paulo?”, perguntavam-se. Enquanto isso, a modelo, com o olhar mais lânguido do mundo, toda apaixonada, beijou o bilionário ardentemente.

— Você é incrível! — murmurou ela.

— Se você diz… deve ser verdade! — e riu, másculo. — Acredito em você. Você não é nenhum desses… — e, sempre com a discrição de um ventríloquo, fez outro gesto acompanhado de novos sussurros.

Um sujeito grisalho, parecido com um conhecido apresentador da TV, deu um passo adiante e começou a berrar:

— Você merece confiança pois não é um desses jornalistas cheios de interesses escusos! Não é como um desses escravos de ideologias assassinas! — e, tendo dito isso, estendeu a mão. O bilionário o pagou e, antes de retomar a conversa com a namorada, pensou um pouco. Por fim, retirando mais 1000 reais do bolso, tornou a pagá-lo.

— Fale bem de mim no seu blog.

— Sim, senhor — sussurrou servilmente o jornalista que, por ter se esquecido de iniciar a fala com “olá, tudo bem?”, acabara não atraindo a atenção de ninguém.

O bilionário voltou-se novamente para a namorada.

— Onde estávamos?

— Você dizia que confiava em mim — e ela piscou repetidamente os grandes e belos olhos.

— Ah, é verdade — disse ele, bebendo em seguida mais um gole do drink. — E confio mesmo.

Ela apertou a mão dele:

— Amor, posso então te perguntar uma coisa?

— Claro. O que é?

— Por que você é tão rico? O que você faz da vida? Sempre quis saber…

— Ué, nunca te contei?

— Não.

— Que coisa — e franziu a testa, pensativo. — Acho tão normal ser rico que nunca penso nisso.

— Mas diz, vai.

— Uê, vivo de renda. Tenho cerca de dois bilhões de dólares investidos. Boa parte do meu dinheiro está em hedge funds. Também tenho carteiras de ações, que geram grandes dividendos. O restante eu mesmo invisto em startups e coisas assim.

Ela caiu na gargalhada.

— O que foi? — perguntou ele, rindo também.

— É que eu não entendi nada!

— Posso explicar se você…

— Não, não precisa — e continuou rindo. — Só me diz se não tem nada de ilegal nessas coisas.

— Não tem, é tudo legal. Você sabe: sou uma pessoa correta. Não lido com bandidos. Quer dizer… a não ser temporariamente com esse aí… — e moveu o queixo, indicando o ladrão de caixas eletrônicos ali no coro. — E sou assim simplesmente porque nunca me esqueço do meu avô paterno. De tanto que repetiu, acho que foi ele o inventor desse ditado popular que anda pela boca do povo.

— Que ditado?

O bilionário tornou a fazer o gesto e o ladrão, com uma meia feminina enfiada na cabeça e algemas nos braços, se adiantou para ouvir seu sussurro.

— Bandido bom é bandido morto! — vociferou o ladrão que, graças à sua suposta “fantasia”, arrancou risadas dos presentes. E o bilionário, naquelas mãos unidas por algemas, depositou 500 reais.

— Caraca! — tornou a modelo. — Seu avô também era malvadão, hem. Era gostoso como você?

— Mais bonito. Ao menos nas fotos, claro. Ele parecia um ator de cinema.

Ela arregalou os olhos:

— Você bem que podia ser ator! — e exaltou-se. — Eu conheço um diretor de novela! Se quiser…

— Deus me livre! — interrompeu-a, alegremente. — Imagine, de jeito nenhum. Tá, eu sei que há atores legais. Mas a maioria deles, principalmente os de novela… — e emitiu mais um gesto e mais sussurros.

O ator de novela assumiu a posição de corifeu e, num volume de trovão, deu voz ao pensamento do patrão:

— …a maioria dos atores de novela não passa, como dizia Hitchcock, de gado e por isso, quando não está sendo tocada pelos diretores e pelos roteiristas, está pastando na conversa fiada de algum teórico marxista, a quem essa maioria de atores só conhece de ouvir falar! — E o bilionário lhe murmurou mais algumas palavras. — Ou então esses atores estão pastando em alguma outra porcaria desse tipo, como a defesa das minorias, do meio-ambiente, dos traficantes, a multiplicação dos gêneros sexuais e assim por diante — e, ao final, o ator estendeu a mão.

Enquanto o bilionário o pagava, os circunstantes, cheios de curiosidade, dirigiam o olhar para o estranho coro:

— Aquele não é o ator que trabalhou na novela A Favorita?

— Não, não. É aquele figura da Caminho das Índias. Tava sumido, né?

— Bom, pelo menos ele ainda faz happenings. Acho chato e sem graça, mas já é alguma coisa.

E, com esse reconhecimento se espalhando pelo bar, surgiram mais risadas e comentários.

A modelo não desistia:

— Então você podia trabalhar no cinema!

— Já trabalhei, gata. Quer dizer, fui produtor de filmes. Financiei três longas-metragens.

— Sério? E vai fazer mais algum?

— Não, nem ferrando. O problema é que… — e lá veio mais um gesto e mais sussurros.

O cineasta se adiantou, assumindo a função de corifeu:

— …é que a maioria dos cineastas brasileiros ou só quer saber de dinheiro ou não sabe sequer escrever um roteiro coerente! — O bilionário sussurrou mais coisas. — Um dos diretores que financiei — prosseguiu o cineasta corifeu — morava num muquifo lá no centro da cidade. Ele sumiu por uns seis meses! Quando reapareceu, dirigia um carro zero quilômetro, morava num apartamento que comprara num bairro nobre e o filme… — e se inclinou para ouvir mais sussurros — … e o filme que me entregou foi feito com aquelas câmeras digitais antigas, aquelas miniDV, e com atores péssimos. Sem falar na trama sem pé nem cabeça e no roteiro sem começo, meio e fim. E o diretor se justificou dizendo que era um filme de arte! — O bilionário lhe soprou mais coisas ao ouvido. — Um grande filho da puta! — continuou o cineasta, aprumando-se. — Essa gente do cinema nacional está acostumada a receber dinheiro do Estado a fundo perdido e acha que pode fazer a mesma coisa com um financiador privado! Estão viciados nesse sistema, não valem nada! Estão se lixando para a fruição do público. Dos espectadores, eles só querem uma presença minimamente razoável para justificar mais um projeto. Os cineastas ligam o “foda-se” para o bom gosto e para as necessidades estéticas que todos temos. Eles se negam a alimentar de forma sadia a nossa imaginação!

— Nossa, amor, não sabia que aqui era sempre assim.

O bilionário pagou o cineasta, que voltou para o coro.

— Também, linda, quer o quê? Você passa a maior parte do tempo ou na Europa ou em Nova Iorque…

— É, tem isso.

— Uma coisa que eu não esqueço é um dos cenários do filme — continuou o bilionário. — O diretorzinho disse que um amigo dele, artista plástico, foi o responsável. Mas você sabe como eles são. Os artistas hoje… — e gesticulou novamente. O artista, pois, destacou-se do coro e sorveu-lhe as frases murmuradas.

— … os artistas hoje não têm a menor idéia do que seja a beleza nem sabem retratar a realidade ou mesmo expressar a contento as suas impressões — discursou aos berros o artista, que todos no bar conheciam. — Só querem saber de chocar e de serem originais! O problema é que não fazem nem uma coisa nem outra: querem apenas dinheiro, fama e sexo!

No bar, havia muitos murmúrios: “mas esse não é a estrela da Bienal de cinco anos atrás? Terá perdido o juízo?”

O bilionário, com seu jeitão entre o prestidigitador e o ventríloquo, lhe sussurrou mais coisas.

— Os artistas — prosseguiu o artista plástico — não chocam e não esfregam na cara de ninguém sequer um vislumbre das verdades que apenas um artista real seria capaz de intuir. A sociedade, aliás, já está muito mais chocante do que qualquer besteira que possam inventar. Quanto à originalidade… — e o artista voltou a aproximar o ouvido da boca do bilionário. — Quanto à originalidade, há por acaso gente mais original que nossos deputados e senadores? — e, de mão estendida, recebeu o dinheiro.

O bilionário deu continuidade ao raciocínio:

— Os políticos inventam as leis mais absurdas, meu amor! Que artista pode se equiparar a eles? — e gesticulou, promovendo novamente a corifeu o coreuta ladrão:

— Os políticos é que são criativos! — berrou o bandido. — Ao promover o desarmamento, proíbem os cidadãos de se defender por conta própria: um procedimento típico dos países totalitários! É assim em Cuba, na Venezuela, na Coréia do Norte! — O bilionário lhe soprou mais coisas. — No fundo — prosseguiu —, os governantes não se importam com acidentes caseiros ou com brigas nas ruas entre cidadãos armados. Seu medo das armas não é esse. Eles têm medo é de serem depostos dos seus palácios e gabinetes à força!

Quase começou um tumulto numa mesa próxima, mas os amigos daquele sujeito que vestia uma camiseta do Che Guevara convenceram-no de que se tratava de uma performance, talvez até de uma pegadinha.

— Pô, velho, o cara tá de algema e com uma meia na cabeça! É palhaçada, deixa pra lá.

O bilionário pagou novamente o ladrão e, simultaneamente, acenou tanto para o coreuta negro quanto para alguém que estava fora do bar, na calçada. Enquanto o coreuta negro se adiantava para ouvir suas palavras, dois policiais entraram e levaram o bandido. O bilionário fazia tudo isso com tão grande destreza, e de modo tão sorrateiro, que muitos fregueses acreditavam que aquele grupo estava ali justamente para provocá-lo e que ele apenas tentava convencê-los a deixarem-no em paz. Não viam que era ele o comandante da coisa toda. Pelo contrário: pareciam aguardar uma reação mais drástica da sua parte e se admiravam da sua paciência. Em momento algum notaram os diversos pagamentos.

— Vossas excremências, os deputados e senadores — gritou o funcionário negro, à frente do coro —, são tão originais, tão criativas, que criam cotas para negros a pretexto de qualquer besteira, como se os negros fossem café-com-leite em tudo e para sempre! Em breve, haverá cotas até mesmo para a fila do supermercado!

Aquelas palavras, vindas de um negro, chocaram os presentes, mas ninguém disse nada. Estaria doido? Ou também participava de uma performance? Seria aquilo um flash mob? Mas afinal… que estranho grupo era aquele? Quem eram aquelas figuras? Coitado daquele casal à frente delas!…

Obedecendo a novo gesto, o drogadicto substituiu o coreuta negro, que já embolsara seus 500 reais:

— Os políticos estão loucos de vontade é de liberar as drogas! — esbravejou ele, baseado entre os dedos, os olhos injetados como os de um vampiro. — Eles parecem ter saído daquele livro do Aldous… Aldous… Do que eu tava falando mesmo? — e deu mais um tapa no beque. O bilionário tornou a lhe sussurrar. — Livro do Huxley! Admirável… é… — e começou a tossir, quase soltando fumaça pelas orelhas. Ao fim de uns vinte segundos, recuperou o fôlego. — O que era mesmo? Ah, claro, vocês sabem, aquele livro em que todo mundo fica doidão, transa loucamente e não se importa de ser dominado pelos tiranos. — O bilionário insistiu. — Isso, véio! Então… É… E, com a venda de drogas, quem vai encher as mulas… hum? Ah, sim. Quem vai encher as burras de dinheiro será… — e se calou, pegando seu dinheiro.

O bilionário já havia alertado o comunista, que, parecendo um clone de Lênin, retomou o fio da meada:

— Quem vai faturar com as drogas, camaradas, será a narco-guerrilha comunista do continente, como as FARC, como os bolivarianos!

O rapaz da camiseta do Che Guevara voltou a se irritar, mas os amigos o seguraram mais uma vez.

Nesse entretempo, o bilionário já havia pago o comunista, que então deixou sua função de corifeu misturando-se aos demais coreutas.

A modelo não parava de encarar o namorado.

— Amor, você tá tão falante hoje. É tão inteligente! Me deixa arrepiada.

— Hum, muito bom saber disso. Gosto de te deixar arrepiada.

— Ainda bem que já me acostumei com seus Assistentes de Liberdade-de-Expressão. Antes eu tinha receio de que você os levasse até para o quarto! Achei que você fosse doido.

Ele riu:

— Doido? Eu? Doida está a sociedade, linda. Ninguém pode mais falar o que pensa. Ou o que é pior: não pode falar nem o que lhe passa aleatoriamente pela cabeça num momento inocente qualquer. Ora bolas, a gente não expressa apenas nossas convicções e crenças! A gente faz brainstorm o tempo inteiro! A gente fala o que assimilou automaticamente dos amigos, da família, dos colegas, dos livros, dos filmes. E é por isso que, de repente, num lapso, às vezes solta uma palavra-bomba! Isso não significa que a gente seja criminosa, racista ou intolerante. São palavras ao vento! Forças de expressão! Figuras de linguagem! Somos modernos: nossa diversão é conversar! Somos humanos: nosso traço comum é a imperfeição!

— Eu sei, amor, eu sei, você já me explicou — e sorriu, o olhar transbordando de ternura e admiração. — Acho sua idéia genial. Meio cara, né, quase ninguém teria condições de fazer a mesma coisa. Imagine, andar com esse monte de gente por aí só para poder falar o que quiser…

Ele a encarou com um olhar cômico:

— Você devia ter me visto no dia em que fui à comemoração de vinte anos de formatura dos meus ex-colegas de faculdade: entrei na festa com cento e três assistentes! Gente para tudo quanto é assunto!

O casal riu gostosamente e depois se abraçou.

— Amor, você é muito engraçado! E sabe se safar de qualquer situação.

— Fazer o quê, né, gata? O dinheiro liberta.

Chamaram o garçom e pediram mais bebidas. Depois que o bilionário devolveu o cardápio à mesa, a namorada lhe disse ao ouvido:

— Tem uma garota muito bonita naquela mesa ali perto da parede que não pára de me encarar. Se quiser, eu dou um jeito de levá-la com a gente.

Ele fez uma careta de enfado.

— Uê, amor, não quer? Eu sei que você curte. Daquela vez foi demais, não foi?

— Foi demais naquela única tarde de sábado. Os três meses seguintes — nos quais sua amiga lésbica, sentindo-se excluída, ficou com ciumeira, me mandando ameaças de morte pelo celular e pelo Facebook — não foram nada legais. Essas “brincadeiras”, no final das contas, não valem a pena.

— Nossa, não sabia disso! Pensei que ela tinha apenas te trollado um pouco no WhatsApp.

— Trollado o quê! — retrucou ele. — A mulher tava pirada! No final das contas, essas lésbicas com atitude masculina são apenas… — e fez novo gesto seguido de novos sussurros.

A coreuta lésbica, que de relance parecia a Cássia Eller, se postou à frente do grupo e gritou:

— Lésbicas com atitude masculina são apenas homens sem bolas, homens estéreis! Não passam de homens que sofrem de TPM!

Olhares silenciosos e exasperados, vindos de todos os cantos do bar, pousaram nela. Mais uma doida autodestrutiva?

— E se vocês, meu amor — tornou o bilionário, passando o dinheiro para a coreuta —, já dizem que homem não presta, imagine então um homem que tem TPM?

A modelo gargalhou uma linda gargalhada. Ao fim de uns dez segundos, sentindo a ficha lhe cair, refreou-se:

— Ué. Você sabe que já transei com mulheres. Fui eu que levei a Cláudia na sua casa. Então por acaso eu também sou um homem que sofre de TPM?

Ele sorriu:

— Não, boba. Você é feminina demais. E toda suposta lésbica, quando feminina, não é senão… — e voltou a agitar a mão e a rumorejar instruções.

A lésbica voltou a gritar com sua voz grave:

— Toda suposta lésbica feminina não passa de uma hedonista cansada de esbarrar em homens frouxos ou grosseiros! E então se apega a uma outra lésbica dominadora e, claro, sem bolas!

— E você, gata — continuou o bilionário, pagando mais 500 reais à coreuta —, você não passa de uma safada que adora ser saciada. Se eu não a satisfizesse, quem o faria? Os homens de hoje tomam muito leite de soja…

Ela não estava muito satisfeita:

— Caraca, você é todo cheio de opinião, hem. Não acho que seja por aí.

— Tudo bem, minha linda — disse ele, beijando-a. — Você sabe que estou apenas conversando. E quero conversar livremente. Não estou num palanque ou no Congresso Nacional. Quando falam mal dos ricos ou dos machos alfas, eu nem me importo. E tampouco vou sair por aí tentando mudar a cabeça das pessoas ou impondo meu ponto de vista.

— Ah, é? — retrucou ela num tom infantil, mas indignado. — E essa sua turma gritando aí atrás não está impondo o ‘teu’ ponto de vista?

— Claro que não, gatinha! O problema é que, hoje em dia, nós não temos mais liberdade de falar uns dos outros. Antes de contratar essas pessoas, fui processado cinco vezes! E simplesmente por emitir, em público, algo que era apenas uma brincadeira, uma piada! Não tenho tempo de ficar meditando sobre todo assunto. Porra, todo mundo vive gravando e filmando o outro no celular! Somos todos espiões! É um horror!

— Hum.

— Então, quando quero falar de uma minoria específica, contrato alguém dessa minoria para falar por mim. Ninguém os leva a sério! Ninguém se importa com o que alguém fala sobre a minoria da qual faz parte. Se eles criticam seu próprio nicho, se criticam, digamos, os seus “mais iguais que outros”, esses “mais iguais” apenas pensam que estão ouvindo malucos. Não os rotulam imediatamente de fascistas, de nazistas ou de sei lá o quê. Mas cá entre nós: são malucos, sim; mas por dinheiro!

Ela riu:

— Bobo!

— Mas é assim mesmo, gatinha! Se eu tivesse feito pessoalmente uma única dessas declarações de hoje, alguém já teria se aproximado para tomar satisfação ou me ameaçar. Toda essa patrulha à livre-expressão é obra de intelectuais e professores enlouquecidos que piram as cabeças dos estudantes universitários. Estes, por sua vez, espalham a loucura pelos quatro cantos do mundo, principalmente quando se formam e vão trabalhar na mídia, na imprensa e nas artes. E, claro, a loucura é obra também de políticos estúpidos que adoram criar leis bizarras para fomentar a divisão na sociedade: dividem para nos conquistar. Colocam todos contra todos! E então se entocam no poder, não saem de lá nunca mais! Não há mais povo unido para nada. Esses políticos parecem… sabe o quê?

— Hum.

E o bilionário chamou outro coreuta, desta vez o índio que, vestindo apenas shorts Adidas vermelho, e tendo o restante do corpo pintado de urucum e jenipapo, se aproximou. E o patrão lhe sussurrou dissimuladamente mais um discurso.

— Os políticos — gritou o novo corifeu a plenos pulmões — são como os índios: não querem trabalhar, só querem é garantir a posse de um território que não lhes pertence, vendendo depois tudo o que encontram nele! — O bilionário lhe soprou mais coisas. — No caso dos políticos, esse território é a sua fatia das coisas públicas, é sua fatia de poder. Querem apenas é deitar e rolar no dinheiro extorquido do povo mediante impostos e desviar as verbas das estatais!

Desta vez, o rapaz da camiseta de Che Guevara notou tudo o que acontecera: e não se segurou! Levantou-se subitamente com uma garrafa de cerveja em punho, quebrou-a pela metade na beirada da mesa e avançou para cima do bilionário:

— Seu cão imperialista! Eu sei o que você tá fazendo!

O casal arregalou os olhos e, paralisado, não pareceu mover um músculo sequer. Quando o rapaz já ia metendo a garrafa no pescoço do bilionário, o coreuta comunista se adiantou à frente do espantado coro, sacou um revólver da cintura e atirou à queima-roupa bem na estampa do Che Guevara: o agressor caiu primeiro sobre a mesa e, em seguida, escorregou para o chão. Enquanto as pessoas se jogavam ao chão ou corriam em desespero, o comunista se inclinou para frente e disse:

— Não vai me pagar? Acabei de salvar sua vida.

O bilionário não se comoveu:

— Eu não pago matador de aluguel e nem preciso de seguranças — e então, fazendo um movimento com o queixo, indicou para o coreuta a pistola que mantinha sobre o colo. — Se você não tivesse feito nada, eu o teria feito.

— Mas… e agora?

— Bom, você pode fazer o seguinte… — e lhe sussurrou ao ouvido.

O coreuta comunista se aprumou e começou a esbravejar:

— Vocês viram? Comunista adora matar comunista! Ninguém mata mais comunistas do que os próprios comunistas! Em todas essas ditaduras, milhões de comunistas dissidentes foram executados ou morreram em campos de concentração. Dezenas e dezenas de milhões! — e, tendo dito isso, estendeu a mão, recebendo mais 500 reais. E então fugiu.

Os demais coreutas estavam confusos e dispersos, não sabiam se permaneciam no local ou se iam embora. A modelo estava em estado de choque, sem atinar se devia manter-se sentada, se devia se jogar ao chão como muitos haviam feito, ou então correr para a rua. Claro que, para ela, nada mais fazia sentido.

— Gatinha do meu coração, você tá bem?

— Amor… amor… — ela chorava.

— Calma, meu bem, não aconteceu nada com a gente. E meu funcionário apenas nos defendeu.

Ela o encarou:

— Mas eu nunca tinha visto isso na minha vida! Toda essa violência, esse ódio…

Ele fez uma cara de espanto:

— Gatinha! Você mora em Nova Iorque, onde os terroristas derrubaram duas torres gigantescas, e comprou um apartamento em Paris perto do Bataclan, onde aconteceu aquela outra chacina. Que conversa é essa?

— Mas eu não tava nesses lugares em nenhuma dessas ocasiões!

— Bom, meu bem, é melhor então você já ir se acostumando. A Europa está se enchendo de refugiados — e moveu os dedos em ambos os lados da cabeça, sugerindo aspas para o termo: “refugiados”. — Essas cenas de violência vão continuar acontecendo aqui e ali. Porque esses caras… — e fez um gesto para os remanescentes do coro, finalmente convidando o coreuta islâmico a se adiantar. E lhe sussurrou algumas palavras.

— Esses refugiados — berrou o novo corifeu para os poucos ouvintes restantes — deviam ser obrigados a comer meio quilo de bacon antes de poder receber o visto para entrar num país! — E o bilionário lhe cochichou mais alguma coisa. — Somente um muçulmano fundamentalista se recusaria. E fundamentalistas são perigosos! — E o corifeu islâmico permaneceu em sua posição, sem se retirar para junto dos demais coreutas.

— Era só isso — disse-lhe o bilionário, levantando-se da cadeira. — Pode ir. Aqui o seu dinheiro.

— O senhor sabe o que é táqiya? — perguntou o empregado.

— Não faço idéia — respondeu, considerando aquela intervenção inconveniente. Não os contratara para que emitissem suas próprias palavras.

— É o direito que temos de ocultar nossa fé para enganar nossos inimigos. Você é um idiota materialista se acredita que o dinheiro pode comprar um muçulmano. Não é porque comi seu bacon que não sou um verdadeiro fiel — e, tendo dito isso, agarrou fortemente o braço esquerdo do bilionário. Em sua outra mão, havia uma granada, já sem o pino de segurança. — Allahu akbar!! — gritou com todo o ar que tinha nos pulmões.

— Corre, amor! Corre! — berrou o ingênuo bilionário que, tentando desvencilhar-se do terrorista, teve tempo apenas de colocar-se diante da namorada, protegendo-a: e a granada explodiu.

Com a explosão, os dois homens foram jogados para lados opostos. A modelo, afora o trauma e algumas escoriações, nada sofreu de grave, assim como tampouco se feriu qualquer outro frequentador daquele conhecido bar. O muçulmano permanecia estirado a um canto, o peito e o rosto esburacado por estilhaços; e o bilionário jazia de costas com um estranho ricto nos lábios: estava finalmente liberto deste mundo.

Dando o troco

— Funerária Blablablá, bom dia.

— Bom dia. São vocês que ficam ligando aqui em casa com uma gravação automática, não é?

— Sim, faz parte da nossa estratégia de marketing.

— E devo dizer que funciona, viu. Vocês costumam ligar justamente quando estou super concentrado, escrevendo ou lendo alguma coisa, totalmente esquecido de que a vida tem um fim.

— Ah, desculpe, não era nossa intenção incomodá-lo, se o senhor…

— Não, não. Está tudo bem. Eu realmente queria contratar o seu serviço.

— Ah, pois não. É uma precaução ou… ou o senhor precisa dos nossos serviços imediatamente?

— Pra já.

— Ah, sinto muito. Meus pêsames.

— Obrigado.

— De quem se trata?

— Do meu gato.

— Um animal?

— Sim, um gato, um felino, um siamês filho-da-puta.

Pausa.

— Desculpe, senhor, mas nós não lidamos com funerais de animais domésticos.

— Tem certeza? Porque eu já estava me preparando para matá-lo agorinha.

— Como? Ele está muito doente?

— Não, não. Ele só é chato demais. Era da minha irmã, sabe. Aí ela se casou, mudou e largou esse pentelho aqui. Eu gosto de bichos, mas gosto de bichos grandes, tipo um cavalo ou um cão de caça, desses que não ficam se esfregando na gente o tempo todo, querendo companhia, esse mimimi infernal. Porra, isso é bicho de mulherzinha sem filhos! Não tenho paciência maternal. A carência dele me irrita profundamente. Por isso, quero me livrar do maledeto e preciso da sua ajuda.

— Mas, senhor, eu… eu nem sei o que…

— Poxa, vocês ficam me enchendo o saco todo santo dia com esse negócio de morte, morte, morte, acabam me dando essa grande idéia, e agora não podem me ajudar? Eu moro num apartamento, não tenho onde enterrá-lo e não pretendo jogá-lo pela janela.

— Por que o senhor não o dá para alguém?

— E você acha que já não fiz isso? Essa porra desse bicho tem algum tipo de GPS. Quando vejo, já está lá na portaria me esperando. Parece um encosto peludo.

— Bom, senhor, não sei o que dizer. Não posso fazer nada.

— Pode, sim!

— Mas o que eu poderia fazer?

— Para resumir, por que vocês não enfiam essa tal de morte no rabo? Podem começar pelos caixões. E parem de me encher o saco! Já tenho este merda aqui para fazer isso. Preciso terminar meu livro.

“Desligou. Bom, vamos ver se esse pentelho está lambendo a água da torneira da cozinha de novo. Bicho nojento…”

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Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


Tá maluca?

A mulher fritava os bifes enquanto o marido xeretava as postagens dos amigos numa rede social:
 
— Roberto, você não acha que a gente já pode pintar a casa no mês que vem?
 
— Pintar a casa? Tá maluca? A gente não vai pintar casa nenhuma.
 
— Ué, e por que não? A gente já tem dinheiro.
 
— Você nunca percebe, né, Marisa? Fica reparando nas casas dos vizinhos, mas não repara no que acontece com eles.
 
— Claro que reparo! Eles tem as casas conservadas, bonitas. Já a nossa tá parecendo é uma casa assombrada. O que acontece com eles é que eles se sentem bem e a gente, não.
 
— Não, senhora: o que acontece com eles é que todo mês um deles é assaltado. Nossa casa não é feia: ela está é camuflada de casa de pobre, de casa de quem faliu e perdeu tudo.
 
— Que idéia!
 
— Mas é verdade! Você fica na sua, não conversa com nenhum vizinho e nunca sabe o que está acontecendo. O Ferreira, por exemplo, foi assaltado no começo do ano. O Antônio e a Janete uma semana depois. No final do ano passado foi a casa do André e da Renata. O seu Souza, que é viúvo, foi assaltado ontem! Você não viu o carro da polícia aí na rua?
 
Ela arregalou os olhos:
 
— Não, não vi!
 
— Pois é.
 
— Coitado! Machucaram ele?
 
— Não, mas limparam a casa inteira! Levaram as duas TVs de tela plana, dinheiro, celular, as jóias da falecida, até a máquina de café os safados levaram.
 
— Nossa!
 
— E sabe como carregaram isso tudo? No carro dele! Pois é, até o carro levaram. E com o Ferreira foi a mesma coisa.
 
— É por isso que…
 
— Sim, é por isso que não troco de carro há dez anos! Os malandros passam na rua e devem ficar com dó da gente. Esses assaltos acontecem por aqui o tempo todo há anos! Os que te contei não foram os primeiros.
 
— Poxa, mas será que não tem outro jeito? Nossa casa tá muito largada…
 
— Não sei por que você tá reclamando. Aqui dentro não falta nada e temos mais coisas do que eles. E sempre sobra dinheiro pra gente viajar, pra comer em restaurantes, pra ajudar os meninos… Enfim, sem essa de pintar casa ou de comprar carro novo. Aliás, quem mandou você entregar meu revólver pro governo sem me avisar? Agora agüenta a feiúra. Pelo menos estamos seguros.
 
— Daqui a pouco você vai querer que eu fique feia e me vista igual a uma mendiga só pra não ser assaltada na rua.
 
— Ué, pensei que você já fizesse isso.
 
Foi a última frase dita por Roberto. Com a frigideira que a mulher lhe deu na cabeça, desabou instantaneamente. Desesperada, chamou a ambulância. No hospital, os médicos do pronto-socorro disseram que ele havia sofrido um traumatismo craniano. Faleceu três dias depois. A viúva foi presa por homicídio.
 
— Não disse que eles eram estranhos? — perguntou Renata ao marido. — Aquela casa tenebrosa, em ruínas, só podia ser de gente doente, psicótica. Quando encontrava a dona Marisa na rua, eu sempre me lembrava daquele filme “Meus vizinhos são um terror”. Ela gaguejava o tempo inteiro e nunca me olhava nos olhos.
 
— Você tá exagerando, meu amor — tornou André. — Eles eram gente boa. Deve ter sido um crime passional.
 
— Hum. Se bem que é uma casa enorme, né. Bastava uma reforminha… A gente podia dar uma olhada. Vai que os filhos a colocam à venda…
 
— Tá maluca? Eu é que não moro num lugar onde alguém já foi assassinado.

A Síndrome do Salvador

Assim que o garçom se retirou, fitou o amigo nos olhos e lhe disse à queima roupa: — Conheci uma garota incrível! Tô apaixonado.

— Sério? Eu a conheço?

— Não, não. Não costuma freqüentar os mesmos lugares que a gente.

— E onde você a conheceu? Pelo Tinder?

— Quase. Foi pelo Happn.

— Nunca ouvi falar.

— É um aplicativo parecido. Mas não tem tantas barangas nele.

Os dois riram.

— E ela? — tornou o amigo. — Também gostou de você?

— Cara… A gente saiu, rolou o maior clima, ficamos…

— Porra, será que agora sai casório? A gente tá ficando velho, Marcelo. Eu pelo menos acabei de noivar. Você precisa ver como é bom ter alguém ao nosso lado.

O outro fez uma careta: — Calma, né. A gente acabou de se conhecer. Não quero assustar a figura. Ela só tem vinte e um anos.

— E daí? Minha mãe se casou com vinte e dois.

— Outra época, uê. Antigamente nego se casava porque, do contrário, só comeria putas. Se o Vinícius de Moraes fosse jovem hoje, não teria se casado tantas vezes.

— Sei. Antigamente na época dos nossos avós, você quer dizer. Nos anos setenta e oitenta já era quase como hoje. E, se o Vinícius estivesse na ativa hoje, seria como a gente: teria um monte de ex-namoradas e nenhuma estrutura, nenhum filho, necas de pitibiriba. Ele pelo menos, por se casar, se reproduzia. Mas é também por causa desse bando de pós-Vinícius que andam por aí que os islâmicos estão dominando tudo, multiplicando-se feito coelhos.

— Caraca! Suas conversas sempre terminam nos islâmicos! Quando a gente se conheceu, terminavam em Deus. Será que a gente pode voltar ao assunto?

— Ok, ok. Foi mal — e depois de tomar um gole da cerveja: — Então me fala da garota.

— Bom — e os olhos de Marcelo brilharam. — Ela é linda, inteligente, divertida, carinhosa, tem uma voz hipnotizante… e é gostosa, claro.

— Claro — e Tiago devolveu o sorriso.

— Só tem um problema…

— Ai ai… — fez o amigo, suspirando. — Lá vem: não me diga que se meteu de novo com outra garota de programa? Pelo amor de Deus, véio, você tem de parar com isso! Esse papo de salvar putas não dá certo não.

— Mas eu já convenci duas a largarem essa onda errada.

— Eu sei. Mas elas se casaram com você? Não, porque você foi apenas o… digamos assim, o terapeuta! Elas não iam querer ficar com um cara que conhecia o passado delas e que as atormentou tanto por conta disso. Ainda não entendeu? Vai repetir a dose?

— Mas eu não disse que essa figura de agora é garota de programa, cacete! E vê se fala baixo!

Tiago arqueou as sobrancelhas, curioso: — Ah, não? Qual é o problema então?

— Véio… — e fez um muxoxo. — Ela é uma esquerdista roxa! Adora a Dilma até hoje e acha que estão fazendo uma injustiça com o Lula…

O amigo abriu os abraços, rindo: — Uê! Mas você disse que ela era inteligente!

— Não começa, Tiago. Você sabe que não é uma questão de inteligência. É uma questão de valores! Ela submete a inteligência dela a valores equivocados, só isso.

— Ou seja, ela é burra.

— Puta merda! Por acaso o Graciliano Ramos era burro? O Jorge Amado era burro? O José Saramago era? Claro que não! Eles tinham era um problema de cognição, uma dificuldade de avaliar os fatos e reconhecer os verdadeiros valores, cada qual à sua escala, uns mais, outros menos. Isso nada tem a ver com inteligência. E a Andréia é super inteligente, tem um ótimo senso de humor… Ela logo logo vai entender que…

Tiago, sacudindo a cabeça, interrompeu-o: — Que bosta, véio! Você tá fodido.

— Ué, por quê?

— Agora tô achando que seria melhor mesmo você se apaixonar por uma puta de esquina.

— Ai, meu saco. Que papo é esse, Tiago? Deixe de ser radical!

— Não estou sendo radical: estou sendo é realista.

— Como assim?

— Marcelo, você não percebe que vai acontecer tudo de novo?

— Tudo o quê?

— Essa sua mania de salvar as garotas do mau caminho, velho! Vai ser como aconteceu com as duas garotas de programa: você vai torrar o saco da figura, vai falar um monte de coisas com as quais ela não concorda, vai desafiá-la, vai lhe provocar muitas dores de consciência, enfim, vai apenas deixá-la ferida e puta da vida. É como se você pegasse um pedaço de terra improdutiva, arrancasse suas ervas daninhas e suas pragas, a arasse, lhe revolvesse o solo e… seu talento principal… lhe jogasse as sementes. Só que você a machucará tanto nesse processo que ela não vai mais querer saber de você. O arado machuca, cara! Por orgulho, mesmo que mais tarde ela comece a mudar de valores, ela não aceitará permanecer com o sujeito que a fez cair das nuvens. Já disse, é como preparar a terra para o plantio: você poderá semeá-la, mas quem irá colher os frutos do seu labor não será você, mas, sim, um outro reaça dotado de uma colheitadeira. Você só tem as ferramentas de aragem e de semeadura. Se soubesse colher alguma coisa, não estaria nesse perene estado de busca. Eu pelo menos estou noivo da garota que namoro há três anos. Já você, fica pulando de galho em galho, preparando-os para outros passarinhos. Estou errado?

Marcelo ficou em silêncio, pensativo. Não queria dar o braço a torcer, mas tampouco sentiu que havia inverdades naquela observação. Voltou a bebericar da cerveja, o olhar distante.

— Bom, parece que você me entendeu, né — tornou Tiago, depois de um minuto. — Tome cuidado, hem.

— Cara… quer saber? Eu vou é arriscar!

— Porra, bicho! Não vacila!

— Bom, eu tenho um ótimo argumento. Quer ver?

— Ver? Eu quero é ouvir. Qual é o argumento?

Marcelo tomou o celular sobre a mesa, destravou-o e entrou na galeria de imagens. Por fim, estendeu o braço ao amigo: — Dá uma olhada na figura! Já pegou alguma garota assim na sua vida?

Tiago, de olhos esbugalhados, ia admirando as imagens que Marcelo lhe exibia: — Nã… não… — gaguejou.

Andréia era deslumbrante. Parecia uma super-modelo: esguia mas dotada das necessárias e imprescindíveis curvas, seio farto, a clavícula conspícua, os braços delgados e frágeis, a cabeça altiva, os cabelos longos, lisos e brilhantes, os olhos grandes de boneca, lábios deliciosos… e se vestia como uma princesa, extremamente feminina.

— Cara, você tem certeza que ela é petista? — indagou Tiago, muito impressionado.

— Ela tem uma foto abraçada com o Lula e outra com o José Dirceu no Facebook dela.

— Puts!… Queria ver isso. Qual o nome dela?

Marcelo lhe deu o nome completo.

— Vou pesquisar depois — tornou Tiago.

O outro sorriu, vitorioso: — Não disse que meu argumento era lacrador? Vai me dizer que não tenho razão em arriscar?

— Rapaz, eu acho que você deve ir com tudo! Faça a maior limpeza na cabeça dela! Eu sempre recomendo, antes de sugerir autores conservadores, que um esquerdista deve primeiro ler Krishnamurti, porque esse doido indiano é um ácido corrosivo que não deixa ilusão sobre ilusão na cabeça do sujeito. Depois literatura da boa: Dostoiévski, Wassermann, Bernanos, Chesterton… Só então você deve fazê-la ler o Olavo de Carvalho, o Mário Ferreira, o Scruton, o Voegelin… enfim, os de alto calibre filosófico. E aí… — e Tiago sorriu, maquiavélico.

— E aí o quê?

— Aí, daqui uns seis meses, depois que vocês terminarem, vou ficar espiando o Facebook dela. Vai levar um ou dois anos, imagino, para ela começar a frutificar e a postar umas coisas reaças. A essa altura, eu já terei rompido meu noivado e já terei comprado uma colheitadeira!

Marcelo deu um tapão na mesa: — Ah, véio, vá se foder!

Tiago deu uma gargalhada: — Vamo beber! Vamo beber!

Por que Bruno Tolentino chateava Hilda Hilst

Conforme escrevi n’O Garganta de Fogo em 2003, devido às “fofocas literárias” que eu andava postando, um amigo falecido em 2009, o escritor José Luis Mora Fuentes, me disse ao telefone que eu estava parecendo “a Hebe Camargo da literatura”. Bem, um dos temas de conversação mais apreciados pela Hilda Hilst — mediante a qual conheci Mora Fuentes — era justamente os detalhes bizarros e picantes da vida de autores consagrados já falecidos. Sim, é óbvio que essas informações não levam a nada, são futilidades e de nada ajudam na compreensão das respectivas obras, que muitas vezes permanecem além da compreensão do próprio autor. Contudo, se essas conversas não elevavam nossas almas, ao menos nos faziam dar muitas risadas. E todo esse preâmbulo é apenas para explicar por que, a certa altura da estada de Bruno Tolentino na Casa do Sol — residência de Hilda —, ela começou a se chatear com a presença dele.

Os amigos esquerdistas dela podem jurar de pés juntos que foi por causa da ligação dele com Olavo de Carvalho, ou porque ele, sozinho, já era muito reaça, ou então porque Bruno gostava de discorrer interminavelmente sobre o cânone literário e sobre o verdadeiro significado de cada escritor na história da literatura, coisa que, em seus últimos anos, aborrecia Hilda grandemente. Enfim, eu estava lá e não foi nada disso. O fato é que toda noite Hilda se punha diante da TV para assistir às suas novelas e, ainda de ir dormir, a um filme qualquer. Antes da chegada de Bruno, de modo geral, apenas eu e Hilda participávamos dessas sessões cinéfilas, recorrendo a um velho aparelho VHS. Noutras ocasiões, estavam também presentes o próprio Mora Fuentes, Edson Costa Duarte (amigo dela, mais conhecido pelo apelido de “Vivo”) e Chico, o caseiro. Hilda tinha grande intimidade conosco e se comportava como bem queria, sentada na sua poltrona, bebericando o seu uísque ou o seu vinho, entre os dedos o cigarro Chanceller (“o fino que satisfaz”) e assim por diante. E é nesse “assim por diante” que estava o busílis…

Uma noite, durante um dos muitos filmes a que assistíamos juntos, já acompanhados por Bruno Tolentino e por Antônio Ramos, seu secretário ex-morador de rua, Hilda permaneceu num silêncio constrangedor, evitando responder às perguntas e aos comentários feitos por Bruno ou por qualquer um de nós, tanto ao longo quanto ao final do filme.

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ATENÇÃO: Devido a contrato assinado com a Editora José Olympio (Grupo Editorial Record), este relato não está mais disponível online. Você poderá lê-lo no livro O Exorcista na Casa do Sol, a ser lançado em Julho de 2018.

¿Até tu, Satanás?

No final do dia, Satanás preparou seu uísque — cowboy, porque ali não havia gelo que resistisse —, ligou a TV e, refestelado em sua confortável poltrona de couro humano, se preparou para assistir a mais um episódio da série Breaking Bad. Estava entusiasmado, já que a vontade de poder aprisionava cada vez mais a alma do protagonista.

— É hoje que ele se entrega totalmente a mim!

Três bicadas de uísque e quatro minutos de episódio mais tarde, soou a campainha da frente.

— ¿Logo agora? ¿Quem será? — e, entre resmungos, já preparando uma bronca para o infeliz demônio subalterno que certamente o estava a buscar, levantou-se e foi abrir a porta. Soltava fogo escocês pelas ventas.

— ¿Senhor Satanás? — indagou um sujeito alto, moreno, vestido de colete preto e seguido por vários outros paramentados à mesma maneira.

— Sim. ¿Quem quer saber? — devolveu surpreso.

— Sou o delegado Luciano Flores da Polícia Federal do Brasil. Eis o mandado de prisão. O senhor vem conosco. Não resista.

Satanás arregalou os olhos: — Mas o que foi que eu fiz?!

— O senhor saberá assim que chamar um de seus inumeráveis advogados — e o delegado, com um gesto da cabeça, ordenou que o algemassem.

Nos dias seguintes, a imprensa se deleitou: com a prisão recente de Luiz Inácio Lula da Silva, que havia aceitado a delação premiada, finalmente chegaram a Satanás. Tratava-se da 666ª fase da Operação Lava Jato, apelidada de “Chefe do Lula”. Sim, afora o Príncipe dos Infernos, não havia sobrado mais ninguém para o bandido petista denunciar.

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