Posfácio da versão digital
Caro(a) leitor(a)
Este livro que você acaba de ler é a pontinha da pontinha do iceberg que é a obra literária de Hilda Hilst. Não pense que agora já conhece seu estilo ou quem afinal é essa tar de “Hirda Rist”. Quando publicou este livrinho, ela já tinha um trabalho sólido e respeitado, seja em poesia, prosa ou teatro. Mas, à época, era pouco lida ou, pelo menos, assim parecia. Na verdade, o problema era outro…
Quando Gutenberg criou a imprensa com tipos móveis, criou implicitamente a clássica e complicada relação autor/editor. Como sempre, a culpa era do mordomo. (Nos últimos anos de sua vida, Gutenberg foi nomeado mordomo da casa do bispo de Mogúncia, Conde Adolfo de Nassau.) Pois é, a possibilidade de imprimir de forma rápida, econômica (risos) e sistemática uma série limitada de livros, mais conhecida como edição, permitiu ao autor expandir seu campo de leitores. Agora os livros já não se limitavam ao restrito e letrado círculo de iniciados, a esses senhores que, anteriormente, monopolizavam o acesso aos parcos volumes copiados à mão ou gravados em matrizes, como dizia o outro, de tipos “imexíveis”. Mas o autor seguia tendo um intermediário entre si e o leitor. (E assim seguirá, se a internet não se democratizar.) Claro que esta situação veio para o bem… e, inevitavelmente, não direi para o mal mas para sacanear mesmo certos autores. “Certos”, aqui, significa muitos. Pois se o editor é a figura que, apostando no escritor, tira do próprio bolso para bancar a edição, é ele também o cara que, consciente ou inconscientemente, retira da jogada muito trigo misturado ao joio. Sem falar na censura sistemática a que muitos autores ficam submetidos, já que ouro e poder são amiguinhos de infância, e, se as palavras do escritor não batem com as do editor e confrades, é ele então carta fora do baralho.
Mas… “a internet chegooou, e o ebook tambééémm, pra alegrar o leitoooor, e o autor tambééémm…” (Favor cantar com a melodia daquele jingle do Sílvio Santos.)
Calma. Enquanto existirem livros de papel, haverá editores. E sempre existirão. Um livro sempre será uma coisa boa de se ter entre os dedos. Mas, no futuro, será artigo de luxo. Porque quem realmente gosta de ler não se importará se as letras estão num papel ou numa tela qualquer, importa que o texto tenha qualidade ou que pelo menos seja agradável. E se não fosse pela internet, caro(a) leitor(a), você não teria tido acesso tão fácil ao livro que tem agora diante dos olhos. (Há anos totalmente esgotado e, pior, ausente dos empoeirados sebos.) Neste, entre outras coisas, Hilda satiriza com perfeição a relação autor-editor. Lalau – Massao?? – é o editor que sugere ao genial pai de Lori a escrita de uma “bandalheira”, ¿pois não é disso que as pessoas gostam? ¿Tchans, silicones, boquinha da garrafa e afins? Sim, a Hilda escreveu essa trilogia erótica – O Caderno rosa de Lori Lamby, Contos D’Escárnio/Textos grotescos e Cartas de um sedutor – para ganhar, pela primeira vez, algum dinheiro com seus livros. Mas, coitada, ela não conseguiu deixar de ser genial e escreveu uma literatura erótica que, se escandaliza, assim o faz no sentido bíblico e não no comum. Ou seja, no caso de Lori Lamby, é a súbita verdade da inocência infantil, por traz de tantas aparências sórdidas, que nos faz arregalar os olhos e ficar sem saber onde colocar as mãos. A verdade espanta.
Se o livro não é encontrado em qualquer parte do país, a culpa, apesar de tudo, não é do Massao Ohno. Ele, amigo de anos de Hilda, é um artista gráfico, avesso às sutilezas do mercado livreiro com seus intricados esquemas de distribuição e de pagamento de direitos autorais. E seu trabalho, praticamente conservado nesta edição, fala por si. (Hilda diz que ninguém encontra seus livros para comprar porque Massao a ama tanto que guarda-os todos debaixo da cama.) Quanto às ilustrações de Millôr Fernandes então, sem comentários.
Talvez você não saiba que um escritor, em média, recebe apenas 10% do preço de capa. Isto faz com que qualquer um que não seja um best-seller fique sem ter como se dedicar ao trabalho que a vida lhe impôs. (Nenhum verdadeiro escritor decidiu sê-lo simplesmente, o buraco é mais embaixo.) Precisa arranjar bicos. Tem que matar a própria fome. Imagine então quando, além da própria, há a fome de oitenta cães. O número atual, aqui na chácara de Hilda, é este. Há sessenta nos canis, vinte dentro de casa. Parece maluquice, mas todo aquele que decide receber e ajudar seres carentes passa por doido. Sem falar no sonho de Hilda, que gostaria de criar a Fundação Apolônio de Almeida Prado Hilst (em homenagem ao pai, também poeta). Queria construir, no terreno vago que há diante da Casa do Sol (sua residência), uma biblioteca pública e um anfiteatro. Queria possibilitar, aqui na casa, a reunião de pessoas ligadas à ciência, literatura, filosofia, etc., que juntas quisessem estudar a Imortalidade da alma humana. Só que…
Só que a Hilda deve mais de R$250.000,00 de IPTU, será aposentada pela UNICAMP – já que, após duas isquemias, está impossibilitada de ministrar aulas – e passará a receber oitocentos e poucos reais por mês. Só de ração para cães gasta-se R$790,00 por mês. E quase me esqueço: por enquanto nenhuma editora se interessou por suas obras completas. Logo, portanto, então… Vou citar uma fábula fabulosa do Millôr: um cara tá perdido num deserto, acompanhado apenas por seu cãozinho de estimação. Depois de horas, dias e tal sem comer nem beber, está próximo do desespero. Até que, olhando bem seu cão, no auge de seu delírio famélico, mata-o e o devora. Quando, enfim, já está a roer os ossos, começa a chorar comovido: “ah, tadinho do Lulu, ele ia gostar tanto de roer esses ossinhos…” E o Millôr é demais, a história tem moral: “O despertar dos belos sentimentos uma vez satisfeitas as necessidades básicas”. Pois é, caro(a) leitor(a), depois de Outubro/2000, quando a grana parar de entrar e estivermos no mato com oitenta cachorros, sei não…
Agora que criei o clima apropriado, atiro-me à questão: se você gostou deste livro, pode contribuir com a Hilda. Não é obrigatório, evidentemente, uma vez que você o adquiriu de graça. Também fica a seu critério o valor que quiser remeter. (Caso não esteja em condições – apesar de um livro digital custar em média R$4,00 – pode pelo menos enviar uma cópia do livro a seus amigos.) A conta corrente de Hilda Hilst é:
Banespa
Agência 0207
Conta 01-018330-3
Em nome de Hilda, agradeço a Millôr Fernandes, Massao Ohno, Luís Bogo (Livro Acesso), Teotonio (ebooksbrasil.com) e Jaime Mendonça (VirtualBooks Online). Agradeço também a Bete Coelho, Reinaldo Moraes e Iara Jamra que adaptaram O caderno rosa de Lori Lamby para teatro, atingindo indiscutível qualidade expressiva. E, claro, a você, caro(a) leitor(a), pólo complementar dessa relação mágica autor-leitor chamada literatura.
Abraço cordial
Yuri V. Santos
Casa do Sol – Setembro/2000
P.S.: Vale lembrar que a escritora Hilda Hilst faleceu em 2004 e que essa conta bancária já não existe…