palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Michel de Montaigne fala sobre o estilo

Michel de Montaigne

« A linguagem deles é cheia de um vigor natural e permanente; são um verdadeiro e total epigrama, não apenas quanto à cauda, mas também à cabeça, o estômago e os pés. Nada é forçado, nada é penoso, tudo caminha com o mesmo porte. Não se trata de uma eloqüência mole e sem arestas, mas de uma eloqüência nervosa e sólida, que enche e arrebata o mais forte espírito mais do que lhe agrada. Quando me encontro diante dessas formas pujantes de se explicar, tão vivas e tão profundas, não digo que está bem dito, mas bem pensado…

« O manuseio e a freqüentação dos belos espíritos dão corpo à língua, não tanto por inová-la, porém por emprestar-lhe sentidos mais vigorosos, mais amplos e maleáveis; não lhe trazem palavras novas, mas enriquecem as já existentes, dão-lhes mais peso e significação mais profunda; e maior uso, outorgam-lhes com prudência e engenho movimentos inéditos. E que isso não é apanágio de todos, vê-se por inúmeros escritores franceses deste século. São assaz arrojados e desdenhosos para não seguir o caminho comum; mas perde-os a carência de invenção e de discrição. Neles vemos tão somente uma pobre afetação de originalidade que em lugar de elevar avilta o assunto. Conquanto chafurdem na novidade, pouco se lhes dá a eficiência; na ânsia de uma palavra nova abandonam a vulgar, não raro mais forte e nervosa.

« Na nossa língua encontro bastante estofo, porém certa falta de estilo; muito se faria com a gíria da caça e da guerra, dadivoso terreno a ser ainda lavrado; e as maneiras de falar, como as plantas, se apuram e se fortalecem no transplante…

« Quando escrevo evito a companhia e a lembrança dos livros, de medo que me modifiquem o estilo; aliás os bons autores muito me desanimam e quebram a coragem. Copio de bom grado aquele pintor que tendo pintado miseravelmente galos proibia a seus servidores trouxessem galos de verdade a seu atelier…

« Por isso mesmo, escrevo propositadamente em minha casa situada em país selvagem onde ninguém me ajuda nem me corrige, onde não freqüento em geral pessoa alguma que entenda mais do que o padre-nosso em latim e muito menos em francês. Faria melhor obra alhures, mas ela seria menos minha; ora seu fim principal e sua qualidade estão exatamente em ser ela inteiramente minha. De bom grado corrigiria nela qualquer erro acidental, de que está cheia porque corro inadvertidamente, mas as imperfeições que me são naturais e constantes fora traição extirpá-las…»

Ensaios – Livro III, Capítulo 5, de Michel de Montaigne

Elogio da Maquilagem, de Charles Baudelaire

Chales Baudelaire

« Há uma canção, tão trivial e inepta que não se deveria citá-la num trabalho com algumas pretensões de seriedade, mas que traduz muito bem, em estilo de opereta, a estética das pessoas que não pensam. A natureza embeleza a beleza! É presumível que se o poeta pudesse falar em francês, teria dito: A simplicidade embeleza a beleza!, o que equivale a esta verdade, de um gênero completamente inesperado: O nada embeleza aquilo que é.

« A maior parte dos erros relativos ao belo nasce da falsa concepção do século XVIII relativa à moral. Naquele tempo a natureza foi tomada como base, fonte e modelo de todo o bem e de todo o belo possíveis. A negação do pecado original contribuiu em boa parte para a cegueira geral daquela época. Se todavia consentirmos em fazer referência simplesmente ao fato visível, à experiência de todas as épocas e à Gazette des Tribunaux, veremos que a natureza não ensina nada, ou quase nada, que ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a defender-se, bem ou mal, contra as hostilidades da atmosfera. É ela igualmente que leva o homem a matar seu semelhante, a devorá-lo, a seqüestrá-lo e a torturá-lo; pois mal saímos da ordem das necessidades e das obrigações para entrarmos na do luxo e dos prazeres, vemos que a natureza só pode incentivar apenas o crime. É a infalível natureza que criou o parricídio e a antropofagia, e mil outras abominações que o pudor e a delicadeza nos impedem de nomear. É a filosofia (refiro-me à boa), é a religião que nos ordena alimentar nossos pais pobres e enfermos. A natureza (que é apenas a voz de nosso interesse)manda abatê-los. Passemos em revista,analisemos tudo o que é natural, todas as ações e desejos do puro homem natural, nada encontraremos senão horror. Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre na mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la. O mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte. Tudo quanto digo da natureza como má conselheira em matéria de moral, e da razão como verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a ordem do belo. Assim, sou levado a considerar os adereços como um dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As raças que nossa civilização, confusa e pervertida, trata com naturalidade de selvagens, com um orgulho e uma enfatuação absolutamente risíveis, compreendem, tanto quanto a criança, a alta espiritualidade da indumentária. O selvagem e o baby provam — por sua aspiração ingênua em relação a tudo o que é brilhante, às plumagens multicores, aos tecidos cintilantes, à majestade superlativa das formas artificiais — sua aversão pelo real, e testemunham, dessa forma, à sua revelia, a imaterialidade de sua alma. Ai daquele que, como Luís XV (que foi não o produto de uma verdadeira civilização, mas de uma recorrência de barbárie), leva a depravação ao ponto de apreciar apenas a simples natureza!

« A moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo, como uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza. Assim, observou-se judiciosamente (sem se descobrir a razão) que todas as modas são encantadoras, ou seja, relativamente encantadoras, cada uma sendo um esforço novo, mais ou menos bem-sucedido, em direção ao belo, uma aproximação qualquer a um ideal cujo desejo lisonjeia incessantemente o espírito humano insatisfeito. Mas, para serem verdadeiramente apreciadas, as modas não devem ser consideradas como coisas mortas; seria o mesmo que admirar os trapos pendurados, frouxos e inertes como a pele de São Bartolomeu, no armário de um vendedor de roupas usadas. É preciso imaginá-los vitalizados, vivificados pelas belas mulheres que os vestiram. Somente assim compreenderemos seu sentido e espírito. Se, por conseguinte, o aforismo Todas as modas são encantadoras o escandaliza como excessivamente absoluto, diga e estará certo de não se enganar: todas foram legitimamente encantadoras.

« A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é preciso que desperte admiração e que fascine; ídolo, deve dourar-se para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os corações e surpreender os espíritos. Pouco importa que a astúcia e o artifício sejam conhecidos de todos, se o sucesso está assegurado e o efeito é sempre irresistível. O artista-filósofo encontrará facilmente nessas considerações a legitimação de todas as práticas empregadas em todos os tempos pelas mulheres para consolidarem e divinizarem, por assim dizer, sua frágil beleza. O catálogo dessas práticas seria inumerável; mas, para nos limitarmos àquilo que nossa época chama vulgarmente de maquilagem, ¿quem não vê que o uso do pó-de-arroz, tão tolamente anatematizado pelos filósofos cândidos, tem por objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que a natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior? Quanto ao preto artificial que circunda o olho e ao vermelho que marca a parte superior da face,embora o uso provenha do mesmo princípio, da necessidade de suplantar a natureza, o resultado deve satisfazer a uma necessidade completamente oposta. O vermelho e o preto representam a vida, uma vida sobrenatural e excessiva; essa moldura negra torna o olhar mais profundo e singular, dá aos olhos uma aparência mais decidida de janela aberta para o infinito; o vermelho, que inflama as maçãs do rosto, aumenta ainda a claridade da pupila e acrescenta a um belo rosto feminino a paixão misteriosa da sacerdotisa.

« Assim, se sou bem compreendido, a pintura do rosto não deve ser usada com a intenção vulgar, inconfessável, de imitar a bela natureza e de rivalizar com a juventude. Aliás, observou-se que o artifício não embelezava a feiúra e só podia servir a beleza. Quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza? A maquilagem não tem por que se dissimular nem por que evitar se entrever; pode, ao contrário, exibir-se, se não com afetação, ao menos com uma espécie de candura.

« Aqueles a quem uma pesada gravidade impede buscar o belo mesmo em suas mais minuciosas manifestações, autorizo de boa vontade a rirem de minhas reflexões e a assinalarem nelas a pueril solenidade; nada em seus julgamentos austeros me afeta; contento-me em me remeter aos verdadeiros artistas, assim como às mulheres que receberam ao nascer uma centelha desse jogo sagrado com que gostariam de iluminar-se por inteiro.»

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Charles Baudelaire (1821-1867), in Sobre a Modernidade.

Novo livro: A Bacante da Boca do Lixo

A Bacante da Boca do Lixo

Quero anunciar o lançamento do meu livro A Bacante da Boca do Lixo e Outros Escritos da Virada do Milênio. Trata-se de uma coletânea de contos, crônicas e um ensaio escritos entre 1993 e 2008. Todos os textos trazem – seja de modo explícito ou implícito – um pouco do clima apocalíptico que contagiou aqueles anos. (Em breve lançarei outro volume, no mesmo tom, de título O Exorcista na Casa do Sol e Outros Escritos da Virada do Milênio.)

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