« Tolkien falou sobre a tarefa mais importante do conto de fadas: criar um estado de ‘recuperação’ que faça as pessoas verem novamente com lucidez.»
(…)
« Existem apenas duas possibilidades: ou a gente se deixa empolgar pela fantasia de Tolkien, ou acha tudo uma bobagem. Se cada descrição atingisse o efeito intencionado, então seu livro se tornaria sem dúvida alguma uma das grandes obras de todos os tempos. Na primeira leitura isto acontece, porque o leitor fica tão empolgado que não percebe que algumas descrições ‘não estão com nada’. Na segunda leitura, porém, ainda se deliciando com as belas descrições de rios e florestas, o leitor nota que a personagem principal, Tom Bombadil, é um chato de galochas, Lothlorien e os elfos, uma quimera sentimental, e Minas Tirith e seus bravos guerreiros, um filme de Errol Flynn. O centro da história, que mesmo depois de muitas leituras continua interessante, é sempre a viagem de Frodo.»
(…)
« Segundo Tolkien, é dever do artista criar uma árvore tão verde e viva quanto possível. Essa árvore tem que ser uma espécie de guia num mundo cada vez mais repleto de cidades mortas e secas.»
(…)
« A fórmula do sucesso de Tolkien é evidente. Ele fala sobre viagens em terras e panoramas fantásticos, sobre aventuras repentinas, onde os anões são tocados por monstros cabeludos. O leitor adulto fica interessado porque os monstros parecem tanto com gângsteres ou carrascos nazistas que ele acha que está lendo sobre seu próprio mundo.»
(…)
[Segundo Wilson, Tolkien é muito sentimental, está mais para 1850 que 1950.] « Não podemos esperar que Tolkien, além de muitas outras coisas, seja ainda um Tolstói ou um Dostoiévski.»
(…)
[Em Tolkien há um escapismo: uma fuga para a Realidade, diz Wilson.] Numa conferência em St. Andrews (1938), intitulada “Sobre contos de fada”, J.R.R. Tolkien declarou:
« Precisamos limpar nossos vitrôs para poder enxergar perfeitamente e libertar-nos das manchas sujas do cotidiano, dos hábitos e da possessividade.»
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De um artigo de Colin Wilson, que li em algum lugar.
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Contextualizando: em 1921, o poeta mineiro Murilo Mendes inicia uma profunda amizade com o pintor Ismael Nery, católico de linhagem “essencialista”, cunhada por ele mesmo sobre bases supostamente tomistas. Quando Nery, que exercia uma influência notável sobre o amigo poeta, faleceu, Murilo passou por uma catarse religiosa em pleno velório, que o levaria a se converter definitivamente ao Catolicismo. Pedro Nava, no livro de memórias “O Círio Perfeito”, relata assim o episódio ocorrido em 6 de abril de 1934:
“O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Nery e que ficou para sempre gravado na memória do Egon foi a conversão instantânea de Murilo Mendes. (…) Todos como que cochichavam, abafados pela solenidade do momento. De repente, uma fala começou a ser percebida. Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frases tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como uma discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos.
Era o Murilo bradando no escuro. Era uma espécie de arenga, com fluxos de onda – ora recuando e baixando, ora avançando, subindo e enchendo a noite com seus rebôos graves e seus ecos mais pontudos. Os do portão foram se aproximando numa curiosidade de roda estupefata e calada em cujo centro um Murilo, pálido de espanto ou como de um alumbramento, gesticulava e se debatia como se estivesse atracado por sombras invisíveis. Só ele as via e aos anjos e arcanjos que anunciava pelos nomes indesvendáveis que têm no Peito do Eterno ocultos para todos os mais. E soltava um encadeado de frases que no princípio fora só um cicio, que tomara corpo e dera naquela berro alucinado. O José Martinho logo segredou ao Egon:
– Isto é uma crise nervosa do Murilo. Vamos dar a ele um Gardenal e obrigá-lo a encostar-se um pouco. Onde é que você deixou o vidrinho?
– Está aqui comigo, no bolso… Deixa eu ir buscar um pouco de água.
O médico correu, mas quando voltou com o copo e o comprimido já na mão, ficou tão bestificado com a expressão do Murilo que recuou, colocou num peitoril a vasilha e o remédio e voltou para acompanhar o drama que se desenrolava dentro do amigo e tomava sua alma que nem avalanche.
Seus olhos agora cintilavam e dele todo desprendia-se a luminosidade do raio que o tocara. E não parava a catadupa de suas palavras todas altas e augustas como se ele estivesse envultado pelos profetas e pelas sibilas que estão misturados nos firmamentos da capela Sistina. Ele disse primeiro, longamente, de como sentia- se penetrado pela essência do Ismael Nery e seu espírito religioso. Falava dos anjos que estavam ali com ele – já não mais como as imagens poéticas que habitavam seus versos, mas dos que se incorporavam nele, que recebia também a alma do amigo morto.
Finalmente, Murilo clamou mais alto – DEUS! – e com a mão direita castigou o próprio peito e mais duramente o coração. Não, pensava o Egon, não é caso para Gardenal. O José Martinho está errado. O Murilo não está nervoso. O negócio é mais complexo… O que ele está é sendo arrebatado num êxtase e o que eu estou vendo é o que viram os acompanhantes na estrada de Damasco quando Saulo rolou do cavalo e foi fulminado pela luz suprema. É isto. Exista ou não essa luz e esse fogo – neles ou na sua impressão o Murilo acaba de encadear-se. Está se queimando todo nas chamas que descem como lavas do Coração paramonte de Jesus Cristo Nosso Senhor.
Quando subitamente calou-se, o poeta retomou o velório do amigo – sério como Moisés descendo do Sinai, e foi assim e sem dizer palavra mais que ele acompanhou o corpo ao cemitério. Deste saiu sozinho e foi direto procurar os monges nas catacumbas do Mosteiro São Bento. Quando, três dias depois, ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o homem desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e Lênin. Estava transformado no ser ponderoso, cheio de uma seriedade de pedra e no católico apostólico romano que seria até o fim de sua vida. Descrevera volta de cento e oitenta graus. Sua poesia tornara-se mais pura e trazia a mensagem secreta da face invisível dos satélites”.
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A Trama Poética de Murilo Mendes, de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Timponi Pereira Rodrigues. Editora Lacerda Editores, 2000. Páginas 88-89.
Recebi o texto acima de Rafael Guedes, que o transcreveu, e a quem muito agradeço. De fato, um registro marcante que vale a pena ser divulgado.
« Minha vida, mais do que a vida de qualquer pessoa que conheço, foi passada em solidão e peregrinações. Por que isto é verdade, ou como aconteceu, não sei dizer: mas assim é. Desde os meus quinze anos – exceto por um único intervalo –, tenho vivido uma vida tão solitária quanto é possível a um homem moderno. Quero dizer com isso que o número de horas, dias, meses e anos que passei sozinho descrevem a experiência da solidão humana exatamente como eu a conheci.
« A razão que me impele a fazer isto não é que eu considere meu conhecimento da solidão diferente, em qualidade, daquele dos outros homens. Muito pelo contrário. Toda a convicção de minha vida hoje baseia-se na crença de que a solidão, longe de ser um fenômeno raro e curioso, é o fator central e inevitável da existência humana. Quando examinamos os momentos, os atos, as afirmações de todos os tipos de pessoas – não somente a dor e o êxtase dos grandes poetas, mas também a enorme infelicidade da alma mediana, como fica evidente nas inúmeras palavras estridentes de insulto, ódio, desprezo, desconfiança e escárnio que sempre raspam nossos ouvidos quando a multidão de gente passa por nós nas ruas –, descobrimos, creio, que todas estão sofrendo pela mesma coisa. A causa final da queixa delas é a solidão.
« Se minha experiência de solidão não é diferente da de outros homens em qualidade, acho, no entanto, que ela é mais aguda em intensidade. Isto me dá, portanto, a maior autoridade do mundo para falar sobre o tema, sobre nossa queixa geral, pois acredito conhecer mais sobre isso do que qualquer pessoa de minha geração. Ao dizer isto, estou simplesmente afirmando um fato da maneira que o vejo, embora reconheça que pode soar como arrogância ou vaidade. Mas antes que alguém se precipite nessa conclusão, deixe-me considerar como seria estranho encontrar arrogância em alguém que viveu sozinho tanto quanto eu. A cura mais assegurada para a vaidade é a solidão. Pois, mais do que outros homens, nós que vivemos no cerne da solidão somos sempre vítimas do autoquestionamento. Sempre e sempre, em nossa solidão, sentimentos vergonhosos de inferioridade erguem-se de repente para nos esmagar numa torrente de horror, descrença e desolação; para adoecer e corromper nossa saúde e nossa confiança; para contaminar a própria raiz de nossa alegria forte e exultante. O eterno paradoxo disto é que, se um homem deve conhecer o trabalho triunfante da criação, ele é obrigado a resignar-se em longos períodos de solidão, e amargar a solidão que furta dele a saúde, a confiança, a crença e a alegria, que são essenciais ao trabalho criativo.
« Para viver sozinho como tenho vivido, um homem deveria ter a confiança em Deus, a fé tranqüila de um santo monástico, a invencibilidade implacável de Gibraltar. Sem isto, há épocas em que qualquer coisa, tudo, os incidentes mais triviais, as palavras mais casuais conseguem num instante privar-me de minha couraça, enfraquecer minha mão, apertar meu coração num terror gélido, encher minhas entranhas com a substância cinzenta da impotência arrepiante. Às vezes não passa de uma sombra cruzando o sol; às vezes nada é senão a luz tórrida e turva de agosto, ou a feiúra despojada e o decoro sórdido das ruas do Brooklyn, esmaecendo na paisagem enfadonha daquela luz turva, e evocando a miséria insuportável de prostitutas incontáveis e vidas indefiníveis. Às vezes é apenas o horror estéril do concreto cru, ou então o calor chispando nos milhões de carros que passam disparados pelas ruas tórridas, ou ainda os monótonos terrenos de estacionamentos, cobertos de escória de hulha, ou o estrondo violento, a balbúrdia da Ferrovia Elevada, ou a multidão de gente que caminha pela terra, avançando sempre, numa fúria exacerbada, indo apressada para lugar nenhum.
« Pode ainda ser apenas uma frase, um olhar, um gesto. Pode ser a fria e desdenhosa inclinação de cabeça que um almofadinha contido e afetado da Park Avenue dispensa quando lhe apresentam alguém, como se para dizer: “Você é um nada”. Ou pode ser também uma referência sarcástica, um repúdio por parte de um crítico, numa revista semanal da classe alta. Ou ainda uma carta de uma mulher dizendo que estou perdido e arruinado, que meu talento desapareceu, todos os meus esforços são falsos e inúteis – só porque renunciei à verdade, à visão de mundo e à realidade que tão maravilhosamente pertencem a ela.
« E às vezes é menos que tudo isso – nada que eu possa ver, tocar, escutar ou definitivamente recordar. Pode ser tão vago quanto uma espécie de horrenda atmosfera da alma, sutilmente composta de toda a fome e fúria, de todo o desejo impossível que minha vida já experimentou. Pode, também, ser uma lembrança meio esquecida do vermelho frio e pálido das tardes de domingo de inverno em Cambridge; e de um rosto lívido, estético e sensível, que despertou minha atenção por seu discurso sincero naquela mesma tarde de domingo em Cambridge, dizendo-me que todas as minhas esperanças da juventude eram ilusões lamentáveis, e que minha vida inteira resultaria em nada, enquanto o vermelho da luz pálida de março refletia-se no rosto lívido com uma impotência desoladora, extinguindo instantaneamente de meu sangue todas as paixões da juventude.
« Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa. Num momento como esse o homem solitário sente que toda a evidência de seus próprios sentidos o traiu, e que nada vive ou se move na terra a não ser criaturas da morte-em-vida – aquelas de corações frios e apertados, de rins doentios, que para sempre existem no vermelho pálido da luz de março e das tardes de domingo.»
(…)
« Então de repente, um dia, por nenhuma razão aparente, sua fé e sua confiança na vida renascem numa maré enchente. Despertam nele com uma força jubilante e invencível, escancarando uma janela na vasta parede do mundo, restaurando tudo em formas de um brilho imortal. Miraculosamente restabelecido e seguro de si mesmo, ele se lança de novo na lida triunfante da criação. Toda a sua velha força lhe pertence de novo: ele sabe o que sabe, ele é o que é, ele encontrou o que encontrou. Vai dizer a verdade que está dentro dele, vai dizê-la nem que o mundo inteiro a negue, afirmá-la nem que um milhão de homens gritem que ela é falsa.
« Num tal momento de triunfante confiança, com este sentimento dentro de mim, ouso agora afirmar que conheço a solidão tão bem quanto qualquer homem, e escreverei agora sobre ela como se ela fosse minha própria irmã, que é. Vou retratá-la para você com tanta fidelidade à sua imagem verdadeira que ninguém que leia isso duvidará de sua fisionomia quando a solidão doravante lhe aparecer.
« A mais trágica, sublime e bela expressão da solidão humana que jamais conheci é aquela que li no Livro de Jó; e a maior e mais filosófica é o Eclesiastes. Devo aqui destacar um fato que diverge tanto de tudo o que me ensinaram a respeito da solidão quando eu era criança, a respeito da tessitura trágica da vida, que quando o descobri fiquei perplexo e incrédulo, duvidando do peso opressor da evidência que se revelava a mim. Mas lá estava ele, tão sólido quanto uma rocha, para não ser removido ou negado; com o passar dos anos, a verdade desta descoberta tornou-se parte da estrutura de minha vida.
« O fato é este: o homem solitário, que é também o homem trágico, é invariavelmente o homem que mais ama a vida – ou seja, é o homem feliz. Nessas declarações não há paradoxo algum. Uma condição implica na outra, e a torna necessária. A essência da tragédia humana está na solidão, não no conflito, quaisquer que sejam os argumentos sustentados pelo teatro. Da mesma forma que o grande escritor trágico (digo “escritor trágico” para distinguir de “escritor de tragédias”, pois certas nações, a romana e a francesa entre elas, não tiveram grandes escritores trágicos; pois Virgílio e Racine não foram senão grandes escritores de tragédia), da mesma forma que o grande escritor trágico – Jó, Sófocles, Dante, Milton, Swift, Dostoiévski – sempre foi o homem solitário, assim também ele foi o homem que mais amou a vida e que teve o mais profundo senso de felicidade. A verdadeira qualidade e substância da felicidade humana encontra-se nos trabalhos desses grandes escritores trágicos como em nenhum outro lugar, em nenhum outro registro da vida do homem sobre a terra. Como prova disso, posso dar aqui uma ilustração conclusiva:
« Para nós, que pretendemos discuti-la aqui, em si mesma, sem nos ocupar de suas origens históricas, a tese de Ruskin pode ser resumida de modo bastante exato por estas palavras de Descartes, quando diz que “a leitura de todos os bons livros é como uma conversação com as pessoas mais honestas dos séculos passados e que foram seus autores”. Provavelmente Ruskin não tenha conhecido esse pensamento, aliás um pouco seco, do filósofo francês, mas é ele, na realidade, que encontramos em toda a sua conferência, apenas envolvido num ouro apolíneo no qual se dissipam as brumas inglesas, e semelhante àquele cuja glória ilumina as paisagens de seu pintor preferido. “Supondo, diz ele, que tenhamos a vontade e a inteligência de escolher bem nossos amigos, quão poucos entre nós têm o poder para fazê-lo e quanto é limitada a esfera de nossa escolha. Não podemos conhecer quem queremos… Podemos, com muita sorte, entrever um grande poeta e escutar o som de sua voz, ou fazer uma pergunta a um homem de ciência que nos responderá amavelmente. Podemos usurpar dez minutos de entrevista no gabinete de um ministro, ter uma vez na vida o privilégio de deter o olhar de uma rainha. Contudo, esses acasos fugitivos, nós os cobiçamos, dispendemos nossos anos, nossas paixões e nossas faculdades perseguindo um pouco menos que isso, enquanto, durante esse tempo, há uma sociedade que nos é sempre aberta, pessoas que nos falariam o quanto quiséssemos, seja qual for a nossa posição. Esta sociedade, porque ela é tão numerosa e tão dócil e que podemos fazê-la esperar perto de nós durante um dia inteiro — reis e homens de Estado esperam pacientemente não para dar uma audiência, mas para consegui-la — não iremos jamais procurá-la nestas antecâmaras mobiliadas de modo simples que são as prateleiras de nossas bibliotecas, não escutamos jamais uma só palavra do que teriam a nos dizer.” “Vocês me dirão talvez, continua Ruskin, que se vocês preferem conversar com os vivos é porque vocês vêem os seus rostos, etc.”, e refutando esta primeira objeção, depois uma segunda, mostra que a leitura é exatamente uma conversação com homens muito mais sábios e mais interessantes que aqueles que podemos ter a chance de conhecer à nossa volta. Procurei mostrar nas notas que se seguem a este volume que a leitura não poderia ser assimilada a uma conversação, mesmo com o mais sábio dos homens; que a diferença essencial entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menor sabedoria, mas a maneira pela qual a gente se comunica com eles, a leitura, ao contrário da conversação, consistindo para cada um de nós em receber a comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo sozinho, isto é, continuando a desfrutar do poder intelectual que se tem na solidão e que a conversação dissipa imediatamente, continuando a poder ser inspirado, a permanecer em pleno trabalho fecundo do espírito sobre si mesmo.»
(…)
« E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se “Conclusões” e para o leitor “Incitações”. Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos. Estes desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram. Aliás, se lhes fizermos perguntas, às quais não podem responder, também pedimos-lhes repostas que não nos instruirão em nada. Porque é um efeito do amor que os poetas consigam fazer com que demos uma importância literal a coisas que não são para eles mais do que significativas de emoções pessoais. Em cada quadro que nos mostram, parecem dar-nos apenas uma ligeira impressão de uma paisagem maravilhosa, diferente do resto do mundo e no coração da qual gostaríamos que eles nos fizessem penetrar.»
(…)
« Este é o preço da leitura e esta é a sua insuficiência. É dar um papel muito grande ao que não é mais que uma iniciação para uma disciplina. A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui.
« Há, contudo, certos casos patológicos, por assim dizer, de depressão espiritual para os quais a leitura pode tornar-se uma espécie de disciplina curativa e se encarregar, por incitações repetidas, de reintroduzir perpetuamente um espírito preguiçoso na vida do espírito. Os livros desempenham então um papel análogo ao dos psicoterapeutas para certos neurastênicos.
« Sabe-se que, em certas afecções do sistema nervoso, o doente, sem que tenha nenhum de seus órgãos atingidos, é mergulhado numa espécie de impossibilidade de querer, como numa rotina profunda da qual não pode escapar sozinho e na qual acabará por perecer se uma mão poderosa e segura não lhe for estendida. Seu cérebro, suas pernas, seus pulmões, seu estômago continuam intactos. Não têm nenhuma incapacidade real de trabalhar, de andar, de expor-se ao frio, de comer. Mas estes diferentes atos, que ele seria absolutamente capaz de realizar, ele é incapaz de querer realizá-los. E uma degradação orgânica, que terminaria por tornar-se equivalente a uma doença que ele não tem, seria a conseqüência irremediável da inércia de sua vontade, se o estímulo que ele não pode encontrar em si mesmo não lhe viesse de fora, de um médico que queira por ele, até o dia em que sejam pouco a pouco reeducadas suas diversas vontades orgânicas. Ora, existem certos espíritos que poderiam ser comparados a esses doentes e que uma espécie de preguiça ou de frivolidade impedem de descer espontaneamente às regiões mais profundas de si mesmos onde começa a verdadeira vida do espírito. Não basta que sejam conduzidos uma vez para que sejam capazes de descobrir e de explorar as verdadeiras riquezas, que lá subjazem, mas, sem essa intervenção estrangeira, eles vivem na superfície num perpétuo esquecimento de si mesmos, numa espécie de passividade que os torna o brinquedo de todos os prazeres, os diminui até o tamanho dos que os cercam e os agitam, e, semelhantes a este cavalheiro que, convivendo desde a sua infância com salteadores de estrada, não se lembrava mais de seu nome, por ter há muito cessado de utilizá-lo, eles terminariam por abolir em si próprios todo sentimento e toda lembrança de sua nobreza espiritual, se um estímulo exterior não viesse, de alguma forma, reintroduzir força na vida do espírito, no qual subitamente reencontram o poder de pensar por si mesmos e de criar. Ora, este estímulo que o espírito preguiçoso não pode encontrar em si próprio e que deve vir de outrem, é claro que deve recebê-lo no seio da solidão fora da qual, como vimos, não se pode produzir esta atividade criativa que é preciso ressuscitar. Da pura solidão o espírito preguiçoso não pode tirar nada, pois é incapaz de, sozinho, pôr em movimento sua atividade criativa. Mas a mais elevada conversação, os conselhos mais profundos também de nada serviriam, já que essa atividade original, eles não a podem produzir diretamente. O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro, se produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo de um outro espírito, mas recebido no seio da solidão. Ora, vimos que essa era precisamente a definição de leitura e que não era conveniente senão à leitura. A única disciplina que pode exercer uma influência favorável sobre estes espíritos é, portanto, a leitura: como queríamos demonstrar, à maneira do que dizem os geômetras. Mas ainda aqui a leitura não age senão sob a forma de um estímulo que não pode de modo algum substituir-se à nossa atividade pessoal; ela se contenta em nos devolver o seu uso como nas afecções nervosas às quais aludimos há pouco, o psicoterapeuta não faz mais que restituir ao doente a vontade de se servir de seu estômago, de suas pernas, de seu cérebro, que permaneceram intactos. Aliás, seja porque todos os espíritos participam mais ou menos dessa preguiça, dessa estagnação nos níveis mais baixos, seja porque, sem que lhe seja necessária, a exaltação que acompanha certas leituras tem uma influência propícia sobre o trabalho pessoal, cita-se mais de um escritor que amava ler uma bela página antes de se pôr a trabalhar. Emerson raramente começava a escrever sem reler algumas páginas de Platão. E Dante não é o único poeta que Virgílio conduziu às portas do Paraíso.
« Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigosa, ao contrário, quando, em lugar de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela, quando a verdade não aparece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço do nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros como um mel todo preparado pelos outros e que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras das bibliotecas e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito.»
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Sobre a Leitura, de Marcel Proust (trad. de Carlos Vogt).
« Esta é, até onde posso alcançar, a suprema realização da vida artística. Pois ela é simples autodesenvolvimento. A humildade, num artista, é a sua franca aceitação de todas as experiências, assim como o amor para o artista é simplesmente o sentido da beleza que revela ao mundo seu corpo e sua alma. Em Marius, o Epicurista, Pater tenta reconciliar a vida artística com a vida religiosa no sentido profundo, doce e austero do termo. Mas Marius é pouco mais que um mero espectador. Um espectador ideal, é verdade, ao qual foi concedido o dom de “contemplar o espetáculo da vida com as emoções apropriadas”, que Wordsworth define como sendo o verdadeiro objetivo do poeta, mas ainda assim um simples espectador e talvez por demais ocupado em contemplar a beleza dos bancos do santuário para perceber que contemplava apenas o refúgio do sofrimento.
« Vejo uma conexão bem mais íntima e imediata entre a verdadeira vida de Cristo e a verdadeira vida do artista e sinto um intenso prazer ao pensar que muito antes que o sofrimento tivesse se apossado dos meus dias e me prendido à roda do suplício, eu já tinha escrito em A Alma do Homem sob o Socialismo que aquele que vivesse uma vida semelhante à de Cristo deveria ser inteira e absolutamente fiel a si mesmo, e tinha escolhido como meus modelos não apenas o pastor na vertente da colina ou o prisioneiro em sua cela mas o pintor e o poeta, para os quais o mundo é um espetáculo brilhante, ou uma canção. Lembro que uma vez disse a André Gide, quando conversávamos sentados num café qualquer de Paris, que, embora a metafísica tivesse muito pouco interesse para mim e a moral absolutamente nenhum, não havia nada que Platão ou Cristo tivessem dito que não pudesse ser transposto imediatamente para o âmbito da arte e ali encontrar completa realização.»
(…)
« No seu livro A Vida de Jesus – o Quinto Evangelho, o Evangelho segundo São Tomás, como poderíamos chamá-lo -, Renan nos diz que a maior realização de Cristo foi ter se feito amar depois de morto tanto quanto fora amado em vida. E não há dúvida de que, se o seu lugar está entre os poetas, ele é o maior de todos os amantes. Ele percebeu que o amor era o primeiro segredo do mundo, o segredo que os homens sábios procuravam e que só através do amor era possível chegar ao coração do leproso ou aos pés de Deus.
« E, acima de tudo, Cristo é o supremo individualista. A humildade como a aceitação artística de todas as formas de experiência é apenas um tipo de manifestação. O que Cristo procura sempre é a alma do homem. Ele a chama de “Reino de Deus” e a encontra em todos nós. Ele a compara às pequenas coisas, a uma sementinha, um punhado de levedo, uma pérola. Isto porque só podemos perceber a nossa alma se nos libertarmos de todas as paixões estranhas, toda a cultura adquirida, todas as possessões externas, quer sejam elas boas ou más.
« Eu resisti a tudo com uma certa dose de teimosia e um espírito rebelde, até que nada mais me restava no mundo, salvo uma coisa. Havia perdido meu nome, minha posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza. Era um prisioneiro e um mendigo. Mas ainda tinha meus filhos. De repente, eles me foram tomados por força da lei. Foi um golpe tão terrível que fiquei sem saber o que fazer e prostrei-me de joelhos, curvei a cabeça e chorei, exclamando: “O corpo de uma criança é como o corpo do Senhor, eu não mereço nenhum dos dois”. Aquele momento pareceu salvar-me. Percebi então que a única coisa a fazer seria aceitar tudo. Desde então – embora possa sem dúvida parecer estranho – sou mais feliz. Naturalmente, naquele instante eu conseguira alcançar a própria essência da minha alma. Quando conhecemos a nossa alma, tornamo-nos simples como crianças, tal Como Cristo ensinou que deveríamos ser.
« É trágico ver quão poucas pessoas chegam a “possuir suas próprias almas” antes de morrer. “Nada é mais raro num homem” – diz Emerson – “do que um ato independente”. E é verdade. A maior parte das pessoas são outras pessoas. Seus pensamentos são os pensamentos dos outros, suas vidas são uma imitação de outras vidas, suas paixões, citações de um texto já lido. Cristo não foi apenas o supremo individualista, mas o primeiro individualista da História. Tentaram fazer dele um filantropo vulgar igual a tantos outros, ou colocá-lo ao lado dos sentimentais e dos espíritos não-científicos, como se tivesse sido apenas um simples altruísta. Mas na verdade ele não era nem uma coisa nem outra. Sentia compaixão pelos pobres, por aqueles que viviam encarcerados nas prisões, pelos humildes, pelos miseráveis, mas tinha muito mais pena dos ricos, dos hedonistas, daqueles que perdem a liberdade, escravos das coisas materiais, dos que usam ricas vestes e vivem em casas dignas de reis. Para ele, riqueza e prazer pareciam tragédias bem maiores do que a pobreza e o sofrimento. E quanto ao altruísmo, quem melhor do que ele sabia que não é a vontade e sim a vocação que nos define e que é impossível colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos?
« Sua doutrina não exigia que vivêssemos para os outros como um objetivo definido e consciente. Não era essa a sua característica básica. Quando ele nos diz: “Perdoa os teus inimigos”, não está pensando no bem do inimigo mas no nosso próprio bem, porque o amor é mais belo do que o ódio. Mesmo quando disse ao jovem: “Vende tudo aquilo que possuis e distribui o dinheiro entre os pobres”, não era nos pobres que pensava mas na alma do jovem, naquela alma que a riqueza estava destruindo. Na sua visão da vida ele se iguala ao artista, pois ambos sabem que, pela inevitável lei do autodesenvolvimento, o poeta deve cantar, o escultor exprimir-se no bronze e o pintor fazer do mundo um espelho dos seus estados de alma, assim como o espinheiro deve florescer na primavera, o milho dourar na época da colheita e a lua, em suas peregrinações, passar de foice a escudo e de escudo a foice.
« Mas embora não tenha jamais dito aos homens “Vivam para os outros”, Cristo nos fez entender que não há a menor diferença entre a vida do outro e a nossa própria vida. Por esse meio, ele ampliou a personalidade do homem, dando-lhe as dimensões de um Titã. Desde a sua vinda, a história de cada indivíduo isolado é – ou pode vir a ser – a história do mundo. É claro que a cultura intensificou também a personalidade do homem. A arte deu mil novas facetas à nossa mente. Aqueles que possuem um temperamento artístico vão para o exílio com Dante e aprendem como o sal pode ser o pão dos outros e quão mais íngremes podem ser os degraus que eles são obrigados a subir, eles captam por um instante a serenidade e a calma de Goethe e no entanto conseguem entender até bem demais o que Baudelaire gritou para Deus:
“O Seigneur , donnez-moi la force et le courage De contempler mon corps et mon coeur sans dégoût”.
[Oh, Senhor, dai-me a força e a coragem para contemplar meu corpo e meu coração sem desgosto.] »
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De Profundis, de Oscar Wilde.
Entrevista de Antony Sutton a Stanley Monteith, 1980: “Wall Street and the Rise of Hitler” (legendas em português) from midiaamais on Vimeo.
Transcrição e tradução: Henrique Dmyterko
“O argumento que permeia todos os meus livros: nos altos escalões, não há diferença entre um grande capitalista e um grande comunista — eles estão entrelaçados.” ~ Antony Sutton
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« Carece ainda de elucidação o fenômeno individual do Lobo da Estepe, e principalmente suas relações singulares com a burguesia, de modo que tais sintomas devem ser perscrutados em sua fonte de origem. Tomemos como ponto de partida, já que se nos apresenta por si mesma, precisamente aquela sua relação com o "burguês"!
« O Lobo da Estepe vivia, segundo seu próprio entendimento, inteiramente à margem do mundo convencional, pois não conhecera nem a vida de família nem as ambições sociais. Sentia-se isolado ora como um esquisitão e doentio eremita, ora como um indivíduo superiormente dotado, que por seu gênio se sobressaía do comum dos mortais. Desprezava conscientemente a burguesia e vivia orgulhoso de não pertencer a ela. Contudo, sob muitos aspectos, vivia inteiramente como burguês, tinha dinheiro no banco, ajudava alguns parentes pobres, vestia-se sem cuidados particulares mas de maneira decente e sem chamar a atenção; procurava viver em paz com a polícia, os coletores de impostos e outros poderes semelhantes. Mas além disso sentia forte e secreta atração pela vida burguesa, pelas tranqüilas e decentes residências familiares com seus bem cuidados jardins, suas escadas reluzentes e sua modesta atmosfera de ordem e decoro. Agradava-lhe ter pequenos vícios e extravagâncias, sentir-se antiburguês, esquisitão ou gênio, mas nunca fixava residência onde não existisse nenhuma classe de burguesia. Não se encontrava à vontade em meio de pessoas violentas e atrabiliárias, nem entre delinqüentes e criminosos, mas antes procurava sempre viver em meio à classe média, com cujos hábitos, normas e atmosfera estava bem familiarizado, embora pudesse ter contra elas revolta e oposição. Além disso, fora educado em meio à pequena burguesia e dela conservara um grande número de idéias e noções. Teoricamente nada tinha em contrário à prostituição, mas na prática não seria capaz de levar uma prostituta a sério ou considerá-la realmente sua igual. Aos criminosos políticos, aos revolucionários ou aos sedutores espirituais, podia amá-los como se fossem seus irmãos, ou respeitar o estado e a sociedade, mas não saberia como tratar um ladrão, um criminoso ou sádico, a não ser demonstrando por eles uma compaixão eminentemente burguesa.
« Dessa forma sempre reconhecia e afirmava com uma parte de seu ser, por pensamentos ou atos, o que com a outra parte negava e combatia. Criado num lar burguês e culto, de moral firme, nunca chegara a libertar parte de sua alma desses convencionalismos, mesmo depois de haver-se individualizado na medida do possível dentro da burguesia e haver-se divorciado do conteúdo dos ideais e das crenças burguesas.
« O "burguês, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tente plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
« É compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios. Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê?
« A resposta é a seguinte: Por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders que, em conseqüência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. Convivem sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens. Nosso Lobo Estepe, Harry, é um exemplo característico. Ele que se desenvolveu muito mais do que se espera de um burguês, ele que conhece as delícias da meditação e também as sombrias alegrias do ódio e do ódio contra si mesmo, ele que despreza a lei, a virtude, o senso comum, é, no entanto, um prisioneiro forçado da burguesia e não pode escapar a ela. E assim em torno do núcleo da burguesia se sobrepõem amplas camadas de Humanidade, muitos milhares de vidas e inteligências, cada uma das quais surgida certamente da burguesia e disposta a uma vida sem reservas, mas que continua dependente da burguesia por sentimentos infantis e um tanto contagiada em sua debilidade pela intensidade vital; e embora desterradas da burguesia, continuam de certo modo pertencendo a ela, obrigadas a ela e a seu serviço, pois à burguesia assenta perfeitamente o contrário da máxima do Grande: "Quem não está contra mim, está comigo". Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda a individualização superior se orienta para o egotismo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos e seu número é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com freqüência grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Aos inquietos lobos da estepe, a esses contínuos e terríveis pacientes, aos que está negado o apoio necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver; para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor, abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal intrincado e multifacetado de todos os lobos da estepe; aqui é possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio-termo fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica descoberta dos que foram detidos em seu vôo para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade) atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana nos raios de seu prisma. Viver no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima dela, possuir uma coisa "como se não a possuísse", renunciar como se não tratasse de uma renúncia, todas essas proposições favoritas e formuladas com freqüência, todas essas exigências de uma alta ciência da vida somente pode realizá-las o humor.
« E no caso do Lobo da Estepe, a quem não faltam faculdades e disposições para tanto, se lograsse, no labirinto de seu inferno, absorver e transpirar essa bebida mágica, então estaria salvo. Ainda lhe falta muito para isso, mas a possibilidade, a esperança existem. Quem o ama, quem se interessa por ele, pode desejar-lhe esta salvação. Ela iria, é verdade, mantê-lo preso ao mundo burguês, mas seu padecimento seria suportável e produtivo. Suas relações com o mundo burguês quer no amor ou no ódio perderiam seu sentimentalismo e sua sujeição a ele cessaria de atormentá-lo continuamente como um opróbio.
« Para alcançar isto, ou para, afinal, ser capaz de tentar o salto no desconhecido, teria um lobo da estepe de defrontar-se algumas vezes consigo mesmo, olhar profundamente o caos de sua própria alma e chegar à plena consciência de si mesmo. Sua existência enigmática revelar-se-ia então para ele em toda sua invariabilidade e ser-lhe-ia impossível para sempre no futuro escapar do inferno de seus impulsos e refugiar-se em consolos filosóficos e sentimentais. Seria necessário que o homem e o lobo se conhecessem mutuamente sem falsas máscaras sentimentais, que se fitassem nos olhos em toda a sua nudez. Então explodiriam ou se separariam para sempre, de modo que não voltariam a existir lobos da estepe ou chegariam a bons termos à luz nascente do humor.
« É possível que Harry tenha um dia esta última possibilidade. É possível que um dia aprenda a conhecer-se, seja porque receberá nas mãos um dos nossos espelhinhos, seja porque alcance o Imortal ou talvez encontre num dos nossos teatros mágicos aquilo de que necessita para libertar sua alma desgarrada. Mil possibilidades o esperam, seu destino as atrai irremediavelmente, pois todos esses solitários da burguesia vivem na atmosfera dessas mágicas possibilidades. Basta apenas um nada para que se produza a centelha.»
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Tenho ótimas lembranças da leitura de Hermann Hesse, de quem li uns cinco ou seis livros. (Meu preferido é Narciso e Goldmund.) Mas cuidado com o senhor Hesse: pode ser uma espécie de “chá de cogumelo literário”. Verdade. Cheio de grandes vislumbres, digressões brilhantes, que, no final das contas, não levam a quase nada… Evidentemente me refiro à sua metafísica, a seu “misticismo”, ao seu “budismo”, não à sua qualidade narrativa, que é excelente. O cara é um ótimo contador de histórias e mereceu o Nobel. Mas sua visão de mundo, sua análise da realidade, suas soluções… sei não. (Todos os suicidas que conheci, por exemplo, tinham ótimo senso de humor. Por si só, o humor não salva nada.) Como certa vez me disse Bruno Tolentino: “Hermann Hesse é Paulo Coelho de intelectual…”
Sacou? B^)