palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Amar um escritor (ou músico, ator… hum? empreendedor?!)

Jack Kerouac

Jack Kerouac: Bonito, charmoso, mas…

Por Steven Pressfield.

¿Você está apaixonada por um escritor? ¿Tem certeza? ¿Está segura de que não quer tentar alguém mais fácil de lidar, tal como um peão de rodeio, um soldado do BOPE ou um dublê especialista em cenas com motos?

Dito isto, eis algumas orientações, nascidas da dolorosa experiência, para aquelas que tenham dado seu coração aos servidores da Musa literária. (As seguintes observações se aplicam igualmente, é claro, a atores, artistas, músicos, comediantes, empreendedores e a todos os demais membros desta espécie particularmente tumultuosa.) Caras amantes, por favor, mantenham em mente o que segue:

1) Escritores não são normais.

E.L. Doctorow considera a arte literária uma “forma socialmente aceitável de esquizofrenia”. O que ele quer dizer é que artistas e empreendedores são um pouco malucos. Eles ouvem a música que o restante de nós não consegue ouvir. E às vezes a busca dessa música os leva para longe de seu mais amável e gentil Eu. Nós devemos exercitar a paciência quando amamos artistas. Eles são conduzidos por forças que não entendem e não podem controlar.

2) Escritores vivem em suas cabeças.

O que é divertido para pessoas normais — paraquedismo, digamos; um final de semana em Aruba — não significa nada para seu escritor. A diversão dele está em sua própria cabeça. Um épico está sendo projetado dentro dela e ela está tomando ditado tão rápida e furiosamente quanto lhe é possível. “Quando trabalho, relaxo”, dizia Picasso. “Não fazer nada… me deixa cansado.”

O princípio unificador sob essa doideira artística é que escritores/artistas/empreendedores estão lutando contra a Resistência [conceito apresentado por Pressfield em seu livro A Guerra da Arte] — e com a inspiração. Eles caminham na corda-bamba sobre um desfiladeiro ardente de 300 metros de profundidade, simultaneamente duelando com o diabo e cortejando a divina oponente deste — a inspiração, a mágica, o “fluxo”.

3) Escritores não são governados pela razão.

Nós imaginamos que artistas e empreendedores são inteligentes, até mesmo brilhantes. Mas na verdade eles estão atuando por instinto e com os nervos à flor da pele. Não se deixe enganar por seu domínio da câmera Panavision 3D ou sua habilidade de dar seqüência a uma dúzia de sentenças completas. Eles estão patinando sobre gelo quebradiço. “Cada vez que escrevo um livro, todas as vezes que encaro aquele caderno de anotações”, disse Maya Angelou, “eu penso, ‘Nossa, agora eles vão me desmascarar’.”

¿Como lidar com um artista? Como um treinador trata um cavalo de corrida. Lembre-se, você é a única com a tabela de alimentação e o cronômetro. Sua montaria ficará com o coração derretido por você se ele souber que você se importa e que você o deixará, e até mesmo o ajudará a, disputar sua corrida.

4) Escritores são primitivos.

¿Você já leu Crônicas, livro de memórias de Bob Dylan? O relato sobre como Mister D junta as peças para formar um álbum soa como a saga de um xamã do Neolítico planejando para sua tribo a caça outonal a um mastodonte.  Deuses e monstros aparecem; jornadas épicas são realizadas; incensos e encantamentos são oferecidos. Comparado ao método de trabalho de Dylan, Hunter Thompson parece um modelo de ordem civilizada.

Artistas e empreendedores requerem a supervisão de adultos. Não importa o quão eloquentemente eles apresentem seu caso, por baixo eles estão numa intensa batalha, como você, para encontrar e manter seu equilíbrio emocional. Eles são inseguros, grandiosos, ciumentos, fascinantes, volúveis, românticos.

¿Você é um artista? Dê uma folga à sua parceira. Amá-lo não é um dia de sol na praia. Você é um mala, querido.

Tente visitar o planeta Terra tão frequentemente quanto possível e, quando você vier, vá acampar por uns tempos. Esteja realmente presente. Ouça de verdade. Lembre-se que sua namorada / namorado/ esposa tem de lidar com o fato de que você está servindo a Musa. Sua companheira se aflige ao sentir que é a número 2 em seu coração. Tranqüilize-a. Sexo, flores, espumantes levam a um bom caminho.

Lembre-se que sua parceira pode ser tão insegura, grandiosa, ciumenta, fascinante, volúvel e romântica quanto você.

5) Uma última palavra aos amantes de artistas.

Antes de tudo, ¿por que alguns de nós sentem-se atraídos por artistas? Buscamos nos aproximar da mágica? ¿Estamos intoxicados com o poder de nosso cônjuge para produzir maravilhas com fumaça azulada, cabelos longos e uma Fender Stratocaster?

Dois avisos: se você pretende se aproximar daquela mágica por causa do ímpeto e do burburinho, esteja pronta para pagar o preço.

Mas aqui vai o Principal. Se você é conduzida ao poder do seu artista por sentir que há um dom similar dentro de si mesma, mas você não sabe o que fazer (ou falta a coragem) para acessá-lo, pare e pense bem. Esse frio na barriga pode não ser amor. Pode ser a Resistência. Sua própria Resistência retendo, com mãos frias, seu único, autêntico e ainda-latente dom.

Neste caso, o amor pode ser, para ambos, um choque frontal de trens. Em vez disso, seja amiga do seu artista — e faça seu próprio trabalho.

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Fonte: Loving A Writer By STEVEN PRESSFIELD.
Traduzido por Yuri Vieira.

Apenas um comentário: achei bastante singular o fato de Steven Pressfield incluir na categoria de escritores/artistas a figura do entrepreneur (empreendedor, empresário). Num país como o Brasil onde 100 milhões de habitantes, por intermédio do Estado, vivem às custas dos outros cerca de 84 milhões, ser um empreendedor é como ser Vincent van Gogh. É possível até imaginar as angústias, o desespero e talvez mesmo a tragédia de tentar ser um empresário, de tentar começar de baixo e vencer pelo próprio esforço e mérito. (Bom, eu tentei, mas não o suficiente para arrancar a orelha.) Tantos impostos — para bancar essa gente toda –, tantos encargos e leis trabalhistas esdrúxulos, tudo em nome da idéia de “distribuição de renda”, que não faz senão criar uma nova elite: a elite dos que se penduram nas tetas do Estado sem nada produzir, sem nada criar, sem nada arriscar. Como se a vida não fosse, como diria Riobaldo (Grande Sertão: Veredas) como se a vida não fosse um “descuido prosseguido”. E o pior é que nem eu mesmo, por mais que tente, consigo escapar disso: quase todo trabalho que me chamam para fazer em vídeo — enquanto roteirista e diretor —  é ou para o governo ou bancado com alguma “lei de incentivo”. (É assim fora do circuito Rio-São Paulo, o qual, em época de eleições, também “lava a sua égua.”) E o pior: sempre que vou à bancarrota sou obrigado a “me virar nos trinta”. No Brasil, se você não é burocrata, se não é funcionário do Estado, no curto e médio prazos está perdido. Porque no longo prazo a pirâmide irá ceder: não é possível sugar tanto a tantos por tanto tempo.  Os empreendedores brasileiros — e aqui estão incluídos até mesmo os camelôs — dão o sangue para pintar girassóis, mas os demais querem apenas saber o quanto irão embolsar do preço do quadro…

Entrevista com o escritor e crítico literário José Castello

José Castello

Conheci José Castello na Casa do Sol, residência da escritora Hilda Hilst, em 1999, ocasião em que foi entregar, em mãos, um exemplar do seu livro O Inventário das Sombras, no qual há um capítulo dedicado à própria Hilda. O curioso é que, naquele mês, eu havia lido Qadós, conto dela, cuja descrição do protagonista — mormente sua loucura e suas vestes — me lembrou Arthur Bispo do Rosário. Eu comentara a respeito com Hilda, que nunca tinha ouvido falar dele. E aí apareceu Castello com seu livro: um outro capítulo tratava justamente de Bispo do Rosário… (Devo observar que, tal como James Joyce, Hilda também se impressionava profundamente com qualquer coincidência. Ela não conseguia esquecer-se do fato enquanto lia o que Castello escrevera sobre Rosário. Também achava ali muitas semelhanças.)

Ah, sim: O Inventário das Sombras é um ótimo livro. O capítulo sobre Clarice Lispector é bizarro, sua histeria diante do gravador linda simultaneamente com o cômico e o patético, fica difícil concluir se ela era adepta do happining da pegadinha (digamos) –, ou se era de fato doida de pedra…

Primeira parte:

Segunda parte:

Ryūnosuke Akutagawa e o escritor que se sente medíocre

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« Depois que Kazan se retirou, Bakin sentou-se à mesa, como de hábito, com o intuito de continuar o manuscrito do Hakkenden, aproveitando a emoção que ainda sentia. Era seu costume, desde há muito, reler o que produzira no dia anterior, antes de continuar a escrever. Então, também nesse dia, leu com vagar e atenção as folhas do manuscrito, cheias de correções em vermelho entre as linhas cerradas.

« Mas, por que seria? Aquilo que estava escrito não sintonizava com seu espírito. Ocultas dissonâncias entre as palavras rompiam a harmonia do conjunto. No início, ele interpretou isso como efeito do seu nervosismo.

« — O problema, hoje, é meu estado de espírito. Pois o que está escrito, escrevi da melhor forma que pude.

« Assim pensando, retomou uma vez mais a leitura. Mas a tonalidade dissonante continuava inalterada. Ele começou a ser tomado pelo pavor, apesar de sua idade avançada.

« Como estará a outra parte?

« Passou os olhos pela parte que escrevera antes. Também ali via frases cruas e inúteis, espalhadas em desordem. Leu a parte anterior àquela. E depois leu a parte anterior a essa.

« Mas, à medida que as lia, a composição imatura e a redação caótica iam se desenrolando frente a seus olhos. Havia descrições de cenas que não sugeriam imagem alguma. Havia exclamações que não continham qualquer entusiasmo. E havia, ainda, uma retórica que não seguia nenhuma lógica. Todos aqueles manuscritos que lhe custaram muitos dias de trabalho, de seu ponto de vista atual, não passavam de uma inútil tagarelice. Ele sentiu de súbito uma dor lancinante a lhe penetrar a alma.

« — Não há outra solução senão reescrever desde o começo! — gritando assim com toda a alma, afastou para o lado os manuscritos, como que enojado, e deitou-se pesadamente, apoiado num dos cotovelos. Mas, talvez ainda preocupado, não desviava os olhos da mesa. Sobre aquela mesa, ele havia escrito o Yumiharizuki (Lua crescente), o Nankano yume (Sonhos de Nanka) e agora trabalhava no Hakkenden. Todos os objetos que estavam sobre a mesa — a pedra de tinta de Tankei, o peso de papel com formato de sonri, a garrafinha de bronze para água modelada em forma de sapo, o pára-vento de porcelana azul ultramar ornada de leão chinês e peônias e o pórta-pincéis grosso de bambu com orquídeas cinzeladas —, todos esses objetos de escritório desde há tempos estavam familiarizados com a dor que neles acompanhava a criação. Ao olhá-los, Bakin não podia reprimir uma inquietação abominável, como se o fracasso daquele momento projetasse uma sombra escura sobre as obras de sua vida inteira e como se sua própria competência estivesse dramaticamente sendo posta em questão.

« — Até há pouco, eu tinha a intenção de escrever uma grande obra-prima, sem igual no país. Mas pode ser que esta seja, quem sabe, uma pretensão banal.

« Essa inquietação lhe provocou um sentimento quase insuportável de solitude e desolação. Ele não era de esquecer jamais a modéstia que devia ter diante dos gênios da China e de seu país, a quem respeitava. Mas, por outro lado, acontecia de se mostrar orgulhoso e até mesmo insolente em relação aos escritores insignificantes de seu tempo. Naquele momento, ¿poderia reconhecer facilmente que também ele, afinal de contas, era tão pouco competente quanto os outros ou que, como eles, não passava de um desprezível “porco de Ryôtô”*? Além disso, o seu poderoso “ego” fervilhava demais, de emoção, para se refugiar dentro da “iluminação” e da “resignação”.»

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Trecho do conto Devoção à Literatura Popular, do livro Rashômon e Outros Contos (Editora Hedra), de Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927).

[* “Porco de Ryôtô”: História narrada na China, onde um porco de cabeça branca, tido como raro, foi levado como oferenda ao Imperador; ao chegar lá, perceberam que muitos porcos ali também tinham a cabeça branca.]

P.S.: Hoje, 24 de Julho de 2010, é aniversário de 83 anos da morte de Akutagawa.

Vintila Horia fala sobre a psicanálise

Vintila Horia

« É evidente que a psicologia, sobretudo a freudiana — e Jung pressentiu-o logo desde o primeiro encontro com Freud — se transformou, com o tempo, numa filosofia, no sentido mais vulgar do termo. O homem para quem “Deus morreu”, como reza o desespero contemporâneo, tem que se refugiar numa algaravia. E aquele que não se quer politizar, ou vender a alma ao diabo, põe-se a acreditar na psicanálise ou nos seus sacerdotes. É todo um culto laico, engendrado por um profeta do século XX, de cuja propaganda se encarregaram, pelo menos ao princípio, as mulheres, como acontece na fase inicial de todas as religiões.»

Vintila Horia, em Viagem aos Centros da Terra.

Virginia Woolf fala sobre a experiência de escrever romances

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« Mas para continuar a história das minhas experiências profissionais, eu ganhei uma libra, dez shillings e seis pence pela minha primeira resenha, e comprei um gato persa com os ganhos. Então tornei-me ambiciosa. Um gato persa até serve – eu disse –, mas um gato persa não é suficiente. E tenho que ter um carro. E foi assim portanto que me tornei romancista – porque é muito estranho que as pessoas dêem a você um carro se você lhes contar uma história. É uma coisa ainda mais estranha que não haja nada tão prazeroso no mundo quanto contar histórias. É muito mais prazeroso que escrever resenhas de romances famosos. E ainda, se for obedecer sua secretária e contar a vocês minhas experiências profissionais como romancista, devo contar-lhes uma experiência muito estranha que me aconteceu. E para entendê-la vocês devem primeiro tentar imaginar o estado de espírito de um romancista. Eu espero não estar revelando segredos profissionais ao dizer que o maior desejo de um romancista é ser tão inconsciente quanto possível. Ele quer induzir a si mesmo a um estado de perpétua letargia. Ele quer que a vida continue com a máxima quietude e regularidade. Ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas dia após dia, mês após mês, enquanto ele está escrevendo, de forma que nada deve quebrar a ilusão em que ele está vivendo – de forma que nada deve perturbar ou inquietar as misteriosas bisbilhotices, impressões, tiros, golpes e descobertas súbitas daquele mesmo espírito tímido e ilusivo, a imaginação. Suspeito que esse estado seja o mesmo para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocês me imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocês figurem uma menina sentada com uma caneta na mão, que por minutos, e na verdade por horas, ela nunca molha no pote de tinta. A imagem que me vem à mente quando penso nessa menina é a de um pescador imerso em sonhos à beira de um lago profundo, segurando um caniço sobre a água. Ela estava deixando sua imaginação disparar desenfreada por entre todas as rochas e fendas do mundo que ficam submersas nas profundezas do nosso ser inconsciente. Agora veio a experiência, a experiência que acredito ser realmente mais comum com as mulheres escritoras que com homens. A linha correu pelos dedos da menina. Sua imaginação disparou. Buscou as lagoas, as profundezas, os lugares escuros onde cochila o maior peixe. E de repente, um estrondo. Uma explosão. Espuma e confusão. A imaginação havia se lançado contra algo duro. A garota foi despertada de seu sonho. Ela estava na verdade no estado de mais aguda e difícil aflição. Para falar se meias-palavras, ela tinha pensado em algo, algo sobre o corpo, sobre as paixões que para ela, como mulher, não seria apropriado dizer. Os homens, sua razão dizia, ficariam chocados. A consciência do que os homens diriam de uma mulher que falasse a verdade sobre suas paixões havia a despertado do estado de inconsciência da artista. Ela não podia mais escrever. O transe tinha acabado. Sua imaginação não podia mais funcionar. Eu acredito que isto seja uma experiência de fato comum com as mulheres escritoras – elas são impelidas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Porque apesar de os homens sensatamente se permitirem grande liberdade neste aspecto, eu duvido que eles percebam ou possam controlar a extrema severidade com que condenam tal liberdade nas mulheres.»

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Trecho de Profissões para mulheres, discurso proferido por Virginia Woolf na National Society for Women’s Service, em 21 de Janeiro de 1931, disponível neste livro.

Elogio da Maquilagem, de Charles Baudelaire

Chales Baudelaire

« Há uma canção, tão trivial e inepta que não se deveria citá-la num trabalho com algumas pretensões de seriedade, mas que traduz muito bem, em estilo de opereta, a estética das pessoas que não pensam. A natureza embeleza a beleza! É presumível que se o poeta pudesse falar em francês, teria dito: A simplicidade embeleza a beleza!, o que equivale a esta verdade, de um gênero completamente inesperado: O nada embeleza aquilo que é.

« A maior parte dos erros relativos ao belo nasce da falsa concepção do século XVIII relativa à moral. Naquele tempo a natureza foi tomada como base, fonte e modelo de todo o bem e de todo o belo possíveis. A negação do pecado original contribuiu em boa parte para a cegueira geral daquela época. Se todavia consentirmos em fazer referência simplesmente ao fato visível, à experiência de todas as épocas e à Gazette des Tribunaux, veremos que a natureza não ensina nada, ou quase nada, que ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a defender-se, bem ou mal, contra as hostilidades da atmosfera. É ela igualmente que leva o homem a matar seu semelhante, a devorá-lo, a seqüestrá-lo e a torturá-lo; pois mal saímos da ordem das necessidades e das obrigações para entrarmos na do luxo e dos prazeres, vemos que a natureza só pode incentivar apenas o crime. É a infalível natureza que criou o parricídio e a antropofagia, e mil outras abominações que o pudor e a delicadeza nos impedem de nomear. É a filosofia (refiro-me à boa), é a religião que nos ordena alimentar nossos pais pobres e enfermos. A natureza (que é apenas a voz de nosso interesse)manda abatê-los. Passemos em revista,analisemos tudo o que é natural, todas as ações e desejos do puro homem natural, nada encontraremos senão horror. Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre na mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la. O mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte. Tudo quanto digo da natureza como má conselheira em matéria de moral, e da razão como verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a ordem do belo. Assim, sou levado a considerar os adereços como um dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As raças que nossa civilização, confusa e pervertida, trata com naturalidade de selvagens, com um orgulho e uma enfatuação absolutamente risíveis, compreendem, tanto quanto a criança, a alta espiritualidade da indumentária. O selvagem e o baby provam — por sua aspiração ingênua em relação a tudo o que é brilhante, às plumagens multicores, aos tecidos cintilantes, à majestade superlativa das formas artificiais — sua aversão pelo real, e testemunham, dessa forma, à sua revelia, a imaterialidade de sua alma. Ai daquele que, como Luís XV (que foi não o produto de uma verdadeira civilização, mas de uma recorrência de barbárie), leva a depravação ao ponto de apreciar apenas a simples natureza!

« A moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo, como uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza. Assim, observou-se judiciosamente (sem se descobrir a razão) que todas as modas são encantadoras, ou seja, relativamente encantadoras, cada uma sendo um esforço novo, mais ou menos bem-sucedido, em direção ao belo, uma aproximação qualquer a um ideal cujo desejo lisonjeia incessantemente o espírito humano insatisfeito. Mas, para serem verdadeiramente apreciadas, as modas não devem ser consideradas como coisas mortas; seria o mesmo que admirar os trapos pendurados, frouxos e inertes como a pele de São Bartolomeu, no armário de um vendedor de roupas usadas. É preciso imaginá-los vitalizados, vivificados pelas belas mulheres que os vestiram. Somente assim compreenderemos seu sentido e espírito. Se, por conseguinte, o aforismo Todas as modas são encantadoras o escandaliza como excessivamente absoluto, diga e estará certo de não se enganar: todas foram legitimamente encantadoras.

« A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é preciso que desperte admiração e que fascine; ídolo, deve dourar-se para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os corações e surpreender os espíritos. Pouco importa que a astúcia e o artifício sejam conhecidos de todos, se o sucesso está assegurado e o efeito é sempre irresistível. O artista-filósofo encontrará facilmente nessas considerações a legitimação de todas as práticas empregadas em todos os tempos pelas mulheres para consolidarem e divinizarem, por assim dizer, sua frágil beleza. O catálogo dessas práticas seria inumerável; mas, para nos limitarmos àquilo que nossa época chama vulgarmente de maquilagem, ¿quem não vê que o uso do pó-de-arroz, tão tolamente anatematizado pelos filósofos cândidos, tem por objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que a natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior? Quanto ao preto artificial que circunda o olho e ao vermelho que marca a parte superior da face,embora o uso provenha do mesmo princípio, da necessidade de suplantar a natureza, o resultado deve satisfazer a uma necessidade completamente oposta. O vermelho e o preto representam a vida, uma vida sobrenatural e excessiva; essa moldura negra torna o olhar mais profundo e singular, dá aos olhos uma aparência mais decidida de janela aberta para o infinito; o vermelho, que inflama as maçãs do rosto, aumenta ainda a claridade da pupila e acrescenta a um belo rosto feminino a paixão misteriosa da sacerdotisa.

« Assim, se sou bem compreendido, a pintura do rosto não deve ser usada com a intenção vulgar, inconfessável, de imitar a bela natureza e de rivalizar com a juventude. Aliás, observou-se que o artifício não embelezava a feiúra e só podia servir a beleza. Quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza? A maquilagem não tem por que se dissimular nem por que evitar se entrever; pode, ao contrário, exibir-se, se não com afetação, ao menos com uma espécie de candura.

« Aqueles a quem uma pesada gravidade impede buscar o belo mesmo em suas mais minuciosas manifestações, autorizo de boa vontade a rirem de minhas reflexões e a assinalarem nelas a pueril solenidade; nada em seus julgamentos austeros me afeta; contento-me em me remeter aos verdadeiros artistas, assim como às mulheres que receberam ao nascer uma centelha desse jogo sagrado com que gostariam de iluminar-se por inteiro.»

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Charles Baudelaire (1821-1867), in Sobre a Modernidade.

De um conto de James Joyce

James Joyce em 1904, aos 22 anos.

« A cada passo, aproximava-se de Londres, distanciava-se da vida antiartística e medíocre que levava. Uma luz começou a brilhar no fundo da sua alma. Não era muito velho — tinha trinta e dois anos. Podia-se dizer que seu espírito apenas alcançava a maturidade. Havia tantos sofrimentos e impressões que desejava expressar em versos. Sentia-o dentro de si. Procurou analisar-se para ver se possuía uma alma de poeta. Melancolia era a nota predominante em seu temperamento. Mas essa melancolia, pensou, era moderada por acessos de fé, resignação e alegria singela. Se conseguisse expressar isso num livro de poemas, talvez o ouvissem. Jamais seria popular, ele o sabia. Não atingiria as multidões, mas poderia atrair um pequeno círculo de espíritos afins.»

Trecho de Uma pequena nuvem, um dos contos mais patéticos (no melhor sentido do termo) do livro Dublinenses, de James Joyce.

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