Tag: escritores Page 5 of 24
Em Junho de 1999, quando eu já morava na Casa do Sol havia quase nove meses, a atriz e diretora Bete Coelho e a figurinista e cenógrafa Daniela Thomas foram visitar Hilda Hilst. Ambas participavam do projeto de adaptação para teatro do livro O Caderno Rosa de Lori Lamby, cuja protagonista seria vivida por Iara Jamra. A peça, à qual assisti semanas mais tarde no Teatro N.Ex.T, no centro de São Paulo, ficou excelente, unindo na proporção ideal o humor e o horror deste que é o primeiro volume da Trilogia Erótica hilstiana. O sucesso ulterior da montagem, contudo, não impediu Hilda de indagar pela milésima vez:
— Por que ninguém se interessa em montar minhas peças? Por que só querem adaptar meus livros?
— Ai, Hilda! — suspirava ao telefone o amigo Mora Fuentes. — Quando você disser isso às moças, porque eu sei que você vai dizer, sua teimosa, não faça a reclamona, né. Você não está contente com o interesse delas pela Lori Lamby?
— Claro que sim, Zé. Elas são ótimas. Mas não é isso…
— Hilda — eu então dizia — quando suas peças forem publicadas, os diretores vão começar a montá-las. Muita gente nem sabe que você também é dramaturga.
— Faz trinta anos que as escrevi! Trinta anos!! — repetia, arregalando os olhos.
E foi mais ou menos nesse clima que, num dia frio e ensolarado, recebemos as visitas. Em ocasiões assim, Hilda fazia questão da minha presença, entre outras coisas, para ser sua memória recente auxiliar.
— Yuri, quem é mesmo o autor dessa biografia do James Joyce que estou lendo?
— Richard Ellmann, Hilda.
— É verdade. Só me vinha à cabeça Richard Francis Burton. Mas é óbvio que se tratava de outro Richard.
Ela vivia citando autores e livros e, como eu vinha organizando sua biblioteca, cabia a mim correr atrás dos mesmos, pois ela sempre queria ler um trecho ou outro para seu interlocutor. Vale lembrar também que, como toda figura pública, Hilda Hilst se transformava nesses contatos com leitores e fãs. No dia a dia, eu até me esquecia de que ela estava prestes a completar setenta anos de idade: conversávamos como se ambos tivéssemos dezesseis. Claro, não foi assim desde nosso primeiro contato. Nossa amizade foi evoluindo. Mas essa diferença entre o antes e o depois saltava aos meus olhos quando, em minha presença, outras pessoas a encontravam pela primeira vez: de repente, minha “amiga adolescente que se interessava pelas mesmas coisas que eu”, e que só vestia a carapuça de mestra quando eu dizia uma grande besteira, se transformava em quem realmente era: um colosso literário. Ninguém que a tenha conhecido em sua casa jamais esquecerá de sua presença marcante, de sua sinceridade sem papas na língua e de sua modéstia aristocrática. Quando as visitas iam embora, ela me perguntava:
— Como me saí? — e então sorria. Tinha plena consciência do teatro do mundo e de seu papel nele.
Recebemos o anúncio da portaria do condomínio e nos preparamos para recepcionar Bete Coelho e Daniela Thomas. Hilda decidiu recebê-las à mesa de jantar, diante da lareira, já que o escritório estava inusualmente frio. Chico, o caseiro, abriu o portão e o carro veio estacionar diante do alpendre. Os cães, obviamente, fizeram o escarcéu de sempre, rodeando o carro e aguardando as visitantes com todos os volumes e tons de latido. Eram cerca de quinze cães.
— Olá, tudo bem? — eu disse, recebendo Daniela à porta e lhe estendendo a mão.
— Oi — respondeu, ligeiramente ansiosa, aceitando o cumprimento e me encarando por trás das grossas armações dos óculos. Uns dez cães a rodeavam, os pequenos latiam estridentemente.
— A Bete não vai entrar? — perguntei.
— Ela não quer sair do carro! Morre de medo de cachorros.
Ih, lascou-se!, pensei com meus botões. Hilda jamais sairia de casa para conversar com alguém pela janela de um automóvel. Ela simplesmente não confiava em quem não se dava com animais. Meu lado diplomático começou a se preocupar: e se isso fizesse Hilda não dar sua benção à peça? Não, ela não cancelaria sua autorização, mas aquela situação poderia azedar o trabalho de alguma forma. Talvez até aproveitasse o episódio como desculpa para não ir assistir à montagem. Embora estivesse mantendo um bom diálogo com Iara Jamra, por quem sentia grande simpatia, antipatizar com a diretora, por causa dos cães, não resultaria em nada de bom.
Entramos e Daniela cumprimentou Hilda com efusão. Após os salamaleques, indiquei a cadeira para que se sentasse.
— Cadê a Bete? — perguntou Hilda, que até então exalava pura simpatia. Pronto, pensei, vai começar.
— Ela não quer sair do carro — respondeu Daniela. — Está com medo dos cachorros. Não imaginava que se agitariam tanto.
O semblante de Hilda anuviou-se:
— Ué. Pensei que ela quisesse muito conversar comigo.
— E quer. Mas…
— Eles só ficam agitados no início, Daniela — atalhei. — Olha só como eles já se acalmaram. Bastou você se sentar.
— Eu vou lá falar com ela — respondeu, levantando-se e pressentindo nuvens de tempestade.
Daniela saiu e Hilda me encarou, uma expressão desgostosa nos lábios.
— Era só o que faltava — resmungou.
Infelizmente os cães acompanharam Daniela e retomaram a balbúrdia, o que, claro, só iria contradizer seus argumentos. Bete Coelho certamente não estaria disposta a ser um coelho numa caçada inglesa. Hilda, concentrada e já visivelmente irritada, fumava seu Chanceller. Aguardamos em silêncio. Ao cabo de dois ou três minutos, Daniela retornou: sozinha!
— Desculpa, Hilda — começou, embaraçada. — Não adianta. Ela está mesmo com medo.
Como Hilda nada respondesse, e pelo andar da carruagem talvez já não dissesse mais nada, decidi ir testar meus próprios argumentos.
— Eu falo com ela.
Fui até o carro e dei umas duas batidinhas no vidro. Bete Coelho abriu a janela. Os cabelos curtos e muito negros deixavam sua pele ainda mais pálida.
— Oi, Bete. Meu nome é Yuri. Sou secretário da Hilda.
— Oi, Yuri. Ela está muito chateada comigo?
— Um pouco. Mas você não precisa ficar com medo dos cachorros. Eles latem muito apenas quando vêem a pessoa pela primeira vez. Depois se acostumam e ficam quietos. Nunca morderam ninguém.
— Eu sei. Eu entendo que seja assim. Mas é involuntário! Juro! Estou em conflito aqui. Quero sair, mas não consigo.
Seu olhar comprovava sua angústia. Ela chegara à Casa do Sol e não veria Hilda Hilst? Como era possível?
— Olha — propus — você pode vir comigo. Vem segurando no meu braço. Você vai confirmar que cão que late não morde.
— Obrigada, Yuri — retrucou, desconsolada. — Mas não vai dar. É um problema que tenho. Estou até tratando essa fobia com meu psicanalista.
Nesse momento, trinta milhões de neurônios modificaram suas sinapses em meu cérebro e uma lâmpada, que só eu vi, acendeu sobre minha cabeça. Justamente naquele mês, eu e Hilda estávamos lendo e discutindo o livro “A Negação da Morte”, de Ernest Becker. Nele, através principalmente de Otto Rank e Kierkegaard, Becker busca provar que só há uma maneira de escapar à neurose causada pela verdade de que todos morreremos um dia: voltar à transferência original. Na psicanálise, grosso modo, transferência seria o processo pelo qual confiamos nossa segurança psíquica a algo que nos ultrapassa, que nos transcende, a algo que esteja fora e acima de nós mesmos. Quando o bebê está mamando, sua mãe é a fonte e a mantenedora de toda a sua saúde mental. Ele transfere suas necessidades mais profundas para ela. Ali, em seus braços, não há neurose, não há medo, não há ameaças de destruição. Conforme a criança vai crescendo e se tornando um adulto, sua transferência vai sendo dirigida para outras pessoas ou coisas: para o pai, para um namorado, para um trabalho, para uma crença, para uma ideologia e assim por diante. Quanto mais incerto, mortal ou volúvel for o alvo de sua transferência, mais neurótica se tornará a pessoa e, por isso, de mais mentiras existenciais necessitará para não mergulhar na loucura de se ver apenas como um animal que em breve irá morrer. E não há ninguém que viva sem estar preso a esse processo, por mais inconsciente que seja, por mais que seja oculto o alvo de sua transferência. Daí o estado de verdadeiro “escândalo”, no sentido bíblico, isto é, de abalo da fé, quando tal alvo se desfaz no ar ou cai em desgraça. Nada explica melhor um crime passional, quando o marido, traído pela esposa, mata-a e em seguida dá um tiro na cabeça. Nada explica melhor o suicídio de nazistas que, de repente, descobrem que o Führer está morto. Becker, portanto, desenvolve seu pensamento até nos mostrar que a única transferência perene, indestrutível e legítima é aquela que tem Deus por alvo. Seria essa a transferência original. Enfim, eu olhava para Bete Coelho e me vinham à cabeça todas essas coisas. Mas é claro que eu não iria lhe dizer: “Tenha fé em Deus, Bete, e nada vai lhe acontecer”. Não. Vestida com roupas escuras e pálida como uma freqüentadora do Hell’s Club, que eu também freqüentei — sempre curti música eletrônica —, essa não parecia de modo algum a abordagem correta. O fato é que eu também sabia que, numa psicanálise, a terapia torna-se muito mais efetiva quando, entre paciente e psicanalista, ocorre a transferência, quando o psicanalista se torna a salvaguarda do equilíbrio psíquico do paciente. Portanto, eu me inclinei em sua direção, sorri e lhe disse:
— Bete, tenho certeza de que, se você conseguisse enfrentar essa fobia agora e, apesar de todos esses cachorros, fosse até a sala conversar com a Hilda, seu psicanalista ficaria muito orgulhoso de você… — e, tendo dito isso, dei-lhe as costas e voltei à sala.
— Cadê ela, Yuri? — perguntou Hilda.
— Já está vindo.
— Sério?
— Sério.
E, de fato, em menos de dois minutos, Bete Coelho surgiu à porta por si só, os olhos vidrados, direcionados para frente, evitando olhar para baixo. Os cães, que haviam me acompanhado, cercaram-na latindo muitíssimo, mas ela, rígida, corajosa, permaneceu como uma estátua, os braços colados ao corpo. Com passos curtos e cuidadosos, mais parecia se deslocar sobre rodinhas do que caminhar. Dirigiu-se então até Hilda, que se levantou e a abraçou.
— É um prazer, Hilda. Me desculpa.
— Não entendi esse pânico todo — repreendeu-a Hilda, num tom bem humorado. — Você por acaso também tem medo de homem? Homem também tem pêlo. Sabia?
Todos riram dessa observação e Bete Coelho se sentou na cadeira que lhe indiquei. As conversas prosseguiram de forma amena e, graças à bravura da atriz-diretora, que confirmou Sócrates, segundo o qual corajoso não é quem não sente medo, mas, sim, quem o sente e o enfrenta, semanas mais tarde a própria Hilda foi assistir à montagem de O caderno Rosa de Lori Lamby. Porque, sinceramente, caso a autora tivesse antipatizado com Bete, teria sido muito difícil para Mora Fuentes arrastá-la da Casa do Sol até o teatro. (Ah, vale lembrar que, além de pêlos, alguns homens também têm boas idéias.)
Há quem observe a roubalheira da Petrobrás — entre várias outras ladroagens governamentais — e fique quietinho, impassível, acreditando-se um monge zen-budista: “ah, essas coisas materiais não me atingem”. Quem reflete assim não entendeu o zen direito. A ver.
Quando certo mestre zen se deparou com dois grupos de monges brigando a chutes e ponta-pés, perguntou: “O que está acontecendo? Por que estão lutando desse jeito?”. Um deles respondeu: “Mestre, eles estão dizendo que este gato é deles, mas não é verdade, este gato pertence ao nosso mosteiro”. “Que mentira!”, retrucou um outro, “nós já cuidávamos desse gato no ano passado! Vocês o roubaram!”. E a porrada já ia voltar a comer quando o mestre gritou: “Chega!!!! Parem com isso!”, e então se aproximou do monge que mantinha o gato no colo: “Deixe-me vê-lo”. E o outro, de cabeça baixa, deu o gato para o mestre, que, após depositá-lo ao chão, retirou a espada da cintura e — ZAZ! — cortou o gato ao meio: “Pronto, agora cada mosteiro pode levar seu pedaço de gato”.
Quando Monteiro Lobato viajava pelo país com seus sócios, vendendo ações de sua companhia de petróleo a brasileiros comuns, era isso o que ocorria: o gato era distribuído entre todos. Mas, assim que o primeiro poço de petróleo jorrou, Getúlio Vargas o encampou (eufemismo estatal para roubar) e criou o Conselho Nacional do Petróleo, cujo corolário ainda de pé hoje se chama Petrobrás. Repito: Getúlio estatizou todos os poços de petróleo da época. Ou seja: a Petrobrás já nasceu de um roubo, trata-se de um gato morto, uma colagem de pedaços mortos. O melhor a fazer seria privatizar essa merda de uma vez por todas e parar com esse “o petróleo é nosso! o petróleo é nosso!”. Esse slogan foi criado na época de Vargas para justificar a mesmíssima pilhagem, uma vez que boa parte dos brasileiros que vinham comprando ações de empresas de petróleo privadas era imigrante e, por isso, tinha sobrenomes estrangeiros. Se você se tivesse um sobrenome italiano, japonês, alemão, polonês, etc. e tal, já não estaria incluído nesse “é nosso!”. Enfim, cortem logo a porra desse gato e deixem os empreendedores fazer o que sabem: alcançar e distribuir a prosperidade com eficiência e proporcionalidade.
Às vezes me vêm à lembrança algumas conversas marcantes que tive com o poeta Bruno Tolentino. Ele tinha o costume de pilheriar no tom mais sério e, caso o interlocutor não percebesse o humor clandestino, seguia em frente, como se nada tivesse acontecido. Sempre com a ironia mais fina, inglesa. E era assim com qualquer um, uma espécie de teste instantâneo de QI para conversações: se a pessoa risse, ele aprofundava a conversa; se não risse, ele ficava no raso. Contudo, quando tinha maior confiança no interlocutor, quando já havia amizade, Bruno levava seu ferrão escorpiano direto ao alvo. E eu, escorpiano mirim, dava gargalhadas com suas tiradas. Sim, em geral porque revelavam a mim mesmo meus próprios pensamentos não verbalizados — como quando, certa feita, na Casa do Sol, conversamos sobre um escritor que conhecíamos pessoalmente, o qual o havia presenteado com seu livro de contos.
— E então, Bruno? — indaguei, curioso. — Você gostou do livro? Ele escreve bem?
— Você já viu a cara da mulher dele? — replicou de pronto, causando-me um sorriso prévio de quem tenta adivinhar o que vem em seguida.
— Claro que já. Por quê?
— O ar de bruxa doida… Os olhos vazios… Sempre descabelada… Aqueles gritinhos à guisa de risos… O jeito de se sentar com as pernas abertas, o tronco encurvado… Reparou?
Eu ria: — Aham.
— E você já conversou com ela, Yuri?
— Já. Por quê?
— É uma tortura! Uma mesmice sem fim, um monte de chavões e besteiras. A mulher é a frivolidade em pessoa. Os olhos dela só brilham quando alguém fala em dinheiro.
— A Hilda me disse a mesma coisa — e ri novamente.
— Pois é — e calou-se. Ficou lá, concentrado, retirando os livros duma caixa de papelão. Eu ainda aguardava a resposta à minha pergunta inicial e… e nada. Ele havia se esquecido dela.
— Bruno — observei, ao fim de um longo minuto — você acabou não me dizendo se ele escreve bem ou não.
Ele então me encarou e sorriu escorpianamente:
— E você acha, Yuri, que alguém que escolhe se casar com uma mulher dessas saberia escolher as palavras certas para formar sequer uma boa frase?
(Estou rindo de novo.)
Esta aula do Olavo sobre literatura é excelente. (A excelência deve explicar o ter sido tão pouco vista.)
Caso goste dela, sugiro também o trecho de um de nossos bate-papos, gravado em 2006, no qual conversamos sobre o papel do escritor e a função da literatura.
Começa hoje o ConaLit (Congresso de Literatura e História Pessoal). Organizado por Aramís Pereira, o evento ocorrerá online e contará com diversos palestrantes, tais como Rodrigo Gurgel, Ângelo Monteiro, Márcio Umberto Bragaglia, Carlos Nadalim, José Carlos Zamboni, Martim Vasques da Cunha, Eduardo Dipp, Fábio Silvestre Cardoso, Antônio Emílio Angueth de Araújo, Bernardo Souto, Marcos Pasche, Lorena Miranda Cutlak, Tiago Amorim e, pasme, até mesmo o autor deste blog.
A inscrição é gratuita e a página do evento no Facebook está aqui. O tema é “o que a literatura pode fazer por você”.
Minha palestra será hoje às 20 horas.
No Facebook, foi lançada este ano uma página chamada Musas Olavettes. Sim, há mulheres lindas ali. (Já imaginou? Mulheres lindas, inteligentes e imunes a idiotas úteis? Pois é.) Até possuo um caminhão para semelhantes areias, mas ele está sem óleo diesel e eu moro longe, o que me torna, em comparação com outros homens, praticamente um rato. E gatas não dão atenção a ratos. Por isso, a única coisa que eu poderia oferecer a uma daquelas musas seria uma cantada (quase) irresistível.
Imagine a cena:
Ela estará sentada no balcão de um bar de hotel cinco estrelas, compenetrada, tomando um cappuccino enquanto lê O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Embevecido, tímido, mas me fazendo de abestalhado, eu me aproximarei e direi:
— Oi, baby — e lhe darei uma piscadela bem cafajeste.
Ela, claro, levantará uma única sobrancelha e me disparará um olhar de direita, fatal e congelante, sem mover a cabeça e sem emitir qualquer palavra. Em seguida, dará um discreto e belo suspiro de indiferença, voltando a encarar o livro e prosseguindo com a leitura. Conhecedor do meu trunfo, puxarei um banquinho e então me sentarei ao lado dela, pedindo um uísque ao barman, que obviamente me entregará a bebida com um sorriso de piedade. Aquela beldade, acreditará ele, é muito livro para minha estante.
— ¿Você não é amiga da Carolina? — perguntarei, voltando à carga.
— Não — responderá ela, num murmúrio cheio de enfado.
Eu voltarei ao silêncio, contemplando o exterior do hotel, o lindo jardim, as árvores, as palmeiras dançantes, os hóspedes que se refrescam à beira da piscina. Não deixarei o mote passar em branco.
— Você já conheceu a piscina?
Ela permanecerá muda, talvez concentrada, talvez irritada, mas plenamente decidida a me ignorar e a tomar conhecimento de coisas muito mais importantes.
Eu insistirei em puxar assunto:
— O hotel é muito chique, né. ¿Mas você notou que não tinha manteiga no café da manhã?
E ela nada, nem tchuns.
— Os caras só me trouxeram margarina — prosseguirei, com um esgar de nojo. — ¿Você sabe quais são os ingredientes da margarina?
Incapaz de conter-se, e dando vazão a seu agastamento, ela me dirá:
— Acho que você ainda não notou, mas… ¿você sabia que está me incomodando?
Vitorioso, darei meu sorriso másculo e irônico de Jim Carrey cheirado, e retrucarei:
— ¿E você sabia que Olavo de Carvalho fala de mim à página 320 do livro que você está lendo?
Ela arregalará os olhos cheia de espanto.
— Sim — continuarei — e ele nem está me detonando: está me elogiando! Verdade. E isso significa que, para você não ser uma idiota, baby, além da Carolina, da piscina e da margarina — e começarei a cantarolar —, você também precisa saber de mim! Baaaby! Baaaaby! Eu sei que é assim!! Baaaby! Baaaby! Há quanto tempo!! — E para arrematar a cantada, direi: — Veja aí meu nome, baby: página 320! E depois me mande um recado pela portaria, isto é, caso queira jantar comigo esta noite…
E, triunfante, sairei do bar, sem atentar para o fato de que será assim que conseguirei uma namorada brasileira para o João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo, hospedado no mesmo hotel, e citado pelo Olavo no mesmo parágrafo do mesmíssimo artigo. E eu obviamente ficarei a ver navios… Mas, ora bolas, ¿que poderei fazer? Deus sabe que sou apenas um rato, um liteRato…