palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Albert Camus fala sobre o absurdo e o suicídio

Albert Camus

« Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências que são sensíveis para o coração, mas é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência.

« Se me pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, respondo que é com ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, abjurou-a com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo. Em um certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou o Sol que gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante. Resumindo as coisas, é um problema fútil. Em compensação, vejo que muitas pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras que paradoxalmente se fazem matar pelas idéias ou as ilusões que lhes proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, ao mesmo tempo, uma excelente razão para morrer). Julgo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas. E como responder a isso? A respeito de todos os problemas essenciais, o que entendo como sendo os que levam ao risco de fazer morrer ou os que multiplicam por dez toda a paixão de viver, provavelmente só há dois métodos para o pensamento: o de La Palisse e o de Don Quixote. É o equilíbrio da evidência e do lirismo o único que pode nos permitir aquiescer ao mesmo tempo à emoção e à clareza. Em um assunto simultaneamente tão modesto e tão carregado de patético, a dialética clássica e mais sábia deve, pois dar lugar – convenhamos – a uma atitude intelectual mais humilde e que opera tanto o bom senso como a simpatia.

« O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma tarde ele dá um tiro ou um mergulho. De um administrador de imóveis que tinha se matado, me disseram um dia que ele perdera a filha há cinco anos, que ele mudara muito com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se acha no coração do homem. É ali que é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz.

« Há muitas causas para um suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não têm sido as mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão (embora a hipótese não se exclua). O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam freqüentemente de “profundos desgostos” ou de “doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos os rancores e todos os aborrecimentos ainda em suspensão.[i]

« Mas, se é difícil fixar o instante preciso, o procedimento sutil em que o espírito se decidiu pela morte, é mais fácil extrair do próprio gesto as conseqüências que pressupõe. Matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la. Mas não nos deixemos levar tanto por essas analogias e voltemos à linguagem corrente. É somente confessar que isso “não vale a pena”. Naturalmente, nunca é fácil viver. Continua-se a fazer gestos que a existência determina por uma série de razões entre as quais a primeira é o hábito. Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.

« Qual é, portanto, esse sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário à vida? Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade. Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.

« O assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se tomar por princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele acredita verdadeiro deve lhe pautar a ação. A crença na absurdidade da existência deve, pois, lhe dirigir o comportamento. É uma curiosidade legítima se indagar claramente, e sem falso pateticismo, se uma conclusão de tal ordem exige que se abandone o mais que depressa uma condição incompreensível. Refiro-me aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de acordo consigo mesmos.

« Apresentado em termos claros, esse problema pode parecer ao mesmo tempo simples e insolúvel. Mas se supõe erroneamente que problemas simples suscitam respostas que não o são menos e que a evidência implica evidência. A priori, e invertendo os termos da questão, assim como alguém se mata ou não se mata, parece só haver duas soluções filosóficas, a do sim e a do não. Isso seria belo demais. Mas é preciso incluir a parte daqueles que, sem consumar interrogam sempre. Mas, chego, aqui, a ironizar: se trata de maioria. De igual modo, vejo que os que respondem não podem agir como se pensassem sim. Com efeito, se concordo com o critério nietzschiano, eles pensam sim de um modo ou de outro. Ao contrário, acontece muitas vezes que aqueles que se suicidam estavam convencidos do sentido da vida. Tais contradições são constantes. Pode-se mesmo dizer que elas nunca foram tão vivas quanto neste ponto em que a lógica, inversamente, parece tão desejável. É um lugar-comum comparar as teorias filosóficas com o comportamento daqueles que as professam. Mas é preciso ressaltar que, entre os pensadores que não admitiram um sentido de vida, com exceção de Kirílov, que pertence à literatura, de Peregrinos, que se origina da lenda,[ii] e de Jules Lequier, que aventa a hipótese, nenhum conciliou sua lógica a ponto de recusar sua vida. Por zombaria , menciona-se muito Schopenhauer ao fazer o elogio do suicídio ante uma mesa bem fornida. Aí não há nenhum motivo para brincadeira. Esse modo de não levar a sério o trágico não é tão grave, mas acaba por julgar um homem.

« Diante de tais contradições e tais obscuridades, é preciso acreditar, conseqüentemente, que não há nenhuma relação entre a opinião que se pode ter sobre a vida e o gesto que se faz para deixá-la? Nada de exageros nesse sentido. No apego de um homem à vida há alguma coisa de mais forte que todas as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale tanto quanto o do espírito e o corpo recua ante o aniquilamento.

« Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nessa corrida que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem inalterável. Enfim, o essencial dessa contradição se acha no que denominarei a escapada por ser, ao mesmo tempo, um tanto menos e mais que o entretenimento no sentido pascaliano. A escapada mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança. A esperança de uma outra vida que é preciso "merecer” ou a trapaça dos que vivem não para a própria vida mas para alguma grande idéia que a ultrapassa ou a sublima, lhe dá um sentido e a atraiçoa.

« Assim, tudo contribui para embaralhar as cartas. Não é à toa que até agora fizemos trocadilhos e fingimos acreditar que recusar à vida um sentido conduz necessariamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida. Na realidade, não há nenhuma correspondência obrigatória entre esses dois julgamentos. Apenas é necessário se recusar a se deixar perder no meio das confusões, das dissociações ou inconseqüências até o momento apontadas. É preciso separar tudo e ir direto ao verdadeiro problema. Uma pessoa se mata porque a vida não vale a pena ser vivida, eis sem dúvida uma verdade – improfícua, no entanto, pois não passa de um truísmo. Mas esse insulto à existência, esse desmentido em que ela é mergulhada provém do fato de ela não ter nenhum sentido? Se sua absurdidade exige que se lhe escape pela esperança ou pelo suicídio, eis o que se precisa clarear, perseguir e ilustrar, afastando tudo o mais. É o absurdo que domina a morte: é preciso dar a este problema precedência sobre os outros, fora de todos os métodos de pensamento e dos jogos do espírito desinteressado. Os matizes, as contradições, a psicologia que um espírito "objetivo" sempre consegue introduzir em todos os problemas não têm lugar nessa pesquisa e nessa paixão. O que aí é necessário é tão-somente um pensamento injusto, isto é, lógico. Isso não é fácil. É sempre cômodo ser lógico. É quase impossível ser lógico até o fim. Os homens que morrem por suas próprias mãos seguem assim até o fim a inclinação do seu sentimento. A reflexão sobre o suicídio me dá, então, a oportunidade de tratar do único problema que me interessa: existe uma lógica até a morte? É algo que eu só posso ficar sabendo se perseguir, sem paixão desordenada, e apenas sob a luz da evidência, o raciocínio cuja origem assinalo aqui. É o que chamo um raciocínio absurdo. Muitos chegaram a começá-lo. Não sei se se contentaram com isso.

« Quando Karl Jaspers, ao mostrar que era impossível fazer do mundo uma unidade, escreve que "Essa limitação me conduz a mim mesmo, aí onde eu não tenho como me livrar, um pouco antes, de um ponto de vista objetivo que só faço representar, aí onde nem eu mesmo ou a existência de outrem já não pode se tornar objeto para mim", evoca, além de tantos outros, esses lugares desertos e sem água onde o pensamento atinge os seus confins. Além de tantos outros, sim, não há dúvida, mas sob que pressões para se livrarem disso! A essa última volta, em que o pensamento vacila, muitos homens chegaram, e entre os mais humildes. Esses, então, renunciavam ao que tinham de mais caro e que era sua vida. Outros, príncipes diante do espírito, abdicaram também, mas foi no suicídio de seu pensamento, em sua mais pura revolta que o fizeram. O verdadeiro esforço, ao contrário, é de não ceder o tanto quanto possível e examinar de perto a vegetação barroca desses lugares distantes. A perspicácia e a tenacidade são espectadores privilegiados para o jogo inumano em que o absurdo, a esperança e a morte se alternam nos seus lances. O espírito pode então analisar as imagens dessa dança ao mesmo tempo elementar e sutil, ilustrando-as e revivendo-as ele próprio antecipadamente.»


[i] Não deixemos passar a oportunidade de assinalar o caráter desse ensaio. O suicídio pode, de fato, estar ligado a considerações muito mais honrosas. Por exemplo: os suicídios políticos ditos de protesto na revolução chinesa. [A edição original de O Mito de Sísifo é de 1942: o autor, portanto, certamente ainda não tivera conhecimento do fenômeno Kamikase, que lhe despertaria a atenção para outros, análogos, na civilização japonesa. Sua nota, porém, antecipa a consideração do auto-sacrifício dos bonzos na antiga Saigon, hoje Ho Chi Minh, durante a guerra do Vietnã (N. do T.)]

[ii] Ouvi falar de um rival de Peregrinos, escritor do pós-guerra que, depois de terminar o primeiro livro, suicidou-se com o intuito de atrair atenção para a sua obra. A atenção realmente foi atraída, mas o livro foi considerado ruim.

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O Mito de Sísifo, de Albert Camus.

“Grande Sertão: Veredas”: as pérolas de sabedoria de Riobaldo

Guimarães Rosa

«‘Que-Diga’? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!»

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« Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão ‘encosto’.»

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« Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.»

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« O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…»

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« O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que mata só para ver alguém fazer careta…»

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« Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.»

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« Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado.»

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« Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.»

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« Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei!»

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« E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!»

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« Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável.»

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« Acho proseável.»

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« Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até a hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: –‘Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…’ – ciente me respondeu.»

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« Guerra diverte – o demo acha.»

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« Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!»

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« Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dela a gente tudo vendo.»

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« Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.»

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« Viver é um descuido prosseguido.»

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« Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode.»

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« Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!»

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« O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão.»

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« O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia.»

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« Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.»

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« Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada.»

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« Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre.»

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« Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!» (Essa é do, da, ah, você sabe, da Diadorim.)

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« Nasci devagar. Sou é muito cauteloso.»

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« O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada.»

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« O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.»

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« (…) peguei saudade dos passarinhos de lá, do poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens.» (Esse trecho vai aqui apenas porque é a descrição exata da fazenda da minha avó.)

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« Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou-amigo-é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.»

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« A natureza da gente é muito segundas-e-sábados.»

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« Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar.»

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« Medo de errar é a minha paciência.»

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« Do escurão, tudo é mesmo possível.»

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« (…) mulher que não ria – esse lenho seco.»

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Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Blaise Pascal contra a Indiferença dos Ateus

Blaise Pascal

« Saibam, ao menos, que religião combatem, antes de combatê-la. Se essa religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus e de possuí-lo com clareza e sem véu, seria combatê-la dizer que não se vê nada, no mundo, que a mostre com tal evidência. Mas, como afirma, ao contrário, que os homens se acham nas trevas e afastados de Deus, que se oculta ao seu conhecimento, sendo mesmo esse Deus absconditus o nome com que se apresenta nas Escrituras, em suma, se trabalha igualmente para estabelecer duas coisas: que Deus estabeleceu na Igreja marcas sensíveis para ser reconhecido pelos que o procurarem sinceramente, e que, no entanto, as cobriu de tal forma que só será percebido pelos que o procurarem de todo o coração, que proveito podem eles tirar, quando, na negligência em que fazem profissão de estar procurando a verdade, exclamam não haver nada que a mostre, de vez que essa obscuridade em que se encontram e que objetam à Igreja não faz senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na outra, estabelecendo assim a sua doutrina, em lugar de arrumá-la?

« Para combatê-la, ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os esforços em procurá-la por toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o fim de nela se instruírem, mas sem nenhuma satisfação. Se falassem do destino, combateriam, na verdade, uma das suas pretensões. Espero mostrar aqui, porém, que não há ninguém capaz de falar razoavelmente do destino. Ouso mesmo dizer que jamais alguém o fez. Sabe-se muito bem de que maneira agem os que têm esse intuito. Acreditam ter feito grandes esforços para instruir-se, por terem empregado algumas horas na leitura de um dos livros sagrados e por terem interrogado algum eclesiástico sobre as verdades da fé. Gabam-se, depois, de terem investigado em vão nos livros e entre os homens. Mas, na verdade, não posso deixar de lhes dizer o que freqüentemente tenho dito: que essa negligência é inadmissível. Não se trata, no caso, do irrefletido interesse de um estranho, para assim proceder: trata-se de nós próprios e do nosso todo.

« A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela. Todos os nossos pensamentos e ações devem tomar caminhos tão diferentes, conforme se esperem ou não os bens eternos, que é impossível fazer uma pesquisa sensata e criteriosa sem ter em vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto.

« Assim, o nosso primeiro interesse, o nosso primeiro dever, é esclarecer bem o assunto, do qual depende toda a nossa conduta. Eis porque, dentre os que não estão persuadidos disso, eu estabeleço uma extrema diferença entre os que trabalham com todas as suas forças para instruir-se a respeito e os que vivem sem se dar a esse trabalho e sem pensar nisso.

« Só posso ter compaixão dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a última das desgraças e dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as suas principais e mais sérias ocupações.

« Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza, possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero de maneira bem diferente.

« Tal negligência numa questão em que se trata da própria pessoa, da própria eternidade, do próprio todo, não me irrita mais do que enternece: assombra-me e espanta-me, sendo para mim uma monstruosidade. Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio; é preciso não ver nisso, apenas, o que vêem as pessoas menos esclarecidas.

« É preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida; que todos os nossos prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que, finalmente, a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou infelizes.

« Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidades para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma.

« É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranqüilo e satisfeito, se disso faz profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.

« Onde se foram buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria existe quando só se esperam misérias sem remédio? Que motivo de orgulho pode haver nas obscuridades impenetráveis e como admitir que tal raciocínio seja o de um homem razoável?»

Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobre tudo e sobre si própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber por que fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue.

Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta.

Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar.

Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou. Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura”.

« Quem desejaria ter como amigo um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas intimidades? Quem recorreria a ele em suas aflições?

« Finalmente, a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo?

« Na verdade, é glorioso, para a religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas principais verdades. Com efeito; a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo. Ora, se eles não servem para mostrar a verdade da redenção pela santidade dos seus costumes, servem ao menos, admiravelmente, para mostrar a corrupção da natureza com sentimentos tão desnaturados.

« Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo, de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa tantos dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

« É um encantamento incompreensível e um adormecimento sobrenatural, marcando uma força todo-poderosa que os causa.

« É preciso haver um estranho abalo na natureza do homem para que possa vangloriar-se de se achar nesse estado em que parece incrível que uma só pessoa possa estar. No entanto, a experiência me faz ver tão grande número delas que seria de nos surpreendermos, se não soubéssemos que quase todas fingem ser assim e que na realidade não o são. São pessoas que ouviram dizer que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco. É o que chamam ter sacudido o jugo e o que experimentam imitar. Mas, não seria difícil explicar-lhes quanto se arriscam quando dessa forma procuram a estima. Não é esse o meio de grangeá-la, mesmo quando se trata de pessoas que julgam sensatamente as coisas e que sabem que o único caminho para triunfar é aparentar honestidade, fidelidade, critério e capacidade de bem servir o amigo, de vez que os homens só gostam, naturalmente, do que lhes possa ser útil. Com efeito, que vantagem temos em ouvir um homem dizer que sacudiu o jugo, que não crê na existência de um Deus que vele sobre suas ações, que se considera como único senhor de sua conduta e que não pensa em prestar contas senão a si próprio? Pensarão, por isso, que nos levarão a depositar-lhes mais confiança e a esperar seus consolos, conselhos e socorros em todas as necessidades da vida? Pretenderão alegrar-nos dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com tristeza, como sendo a mais triste do mundo?

« Se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e tão afastado em tudo dessa boa aparência que mostram, que seriam antes capazes de regenerar do que de corromper os que tivessem alguma inclinação para segui-los. E, com efeito, fazei-os prestar contas dos seus sentimentos e das razões que possuem para duvidar da religião: dirão coisas tão frívolas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. Foi o que muito a propósito lhes disse um dia alguém: "Se continuardes a discorrer dessa maneira, na verdade me convertereis". E tinha razão: de fato, quem não teria horror de se ver com sentimentos em que se têm como companheiros pessoas tão desprezíveis?

« Eis por que os que não fazem senão fingir esses sentimentos seriam bem desgraçados em contrariar seu natural para tornar-se os mais impertinentes dos homens. Se se desgostam, no fundo do coração, por não terem mais luz, não o dissimulem, pois tal declaração não será vergonhosa. Só há vergonha em não possuí-la. Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus; nada marca tanto uma disposição má de sentimentos como não desejar a verdade das promessas eternas; nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus. Deixem, pois, essas impiedades para os que são de índole bastante má para serem verdadeiramente capazes disso; sejam ao menos homens de bem, se não puderem ser cristãos; e reconheçam, finalmente, que só há duas espécies de pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o conhecem.

« Mas, quanto aos que vivem sem conhecê-lo e sem procurá-lo, estes se julgam tão pouco dignos do seu próprio cuidado que não são dignos do cuidado dos outros, sendo preciso ter toda a caridade da religião que eles desprezam para não os desprezar até abandoná-los em sua loucura. Mas, como essa religião nos obriga a observá-los sempre, enquanto estiverem nesta vida, como capazes da graça que pode esclarecê-los, e a acreditar que podem em pouco tempo tornar-se mais cheios de fé do que nós o somos, podendo nós, ao contrário, cair na cegueira em que eles se acham, é preciso fazer por eles o que desejaríamos que se fizesse por nós se estivéssemos em seu lugar, e chamá-los a ter piedade de si próprios e a dar ao menos alguns passos para tentar descobrir luzes. Dediquem a esta leitura algumas das horas que tão inutilmente empregam fora: se alguma aversão experimentarem, talvez reconheçam ainda assim alguma coisa ou, pelo menos, não perderão muito. Quanto aos que nisso usarem de toda a sinceridade e mostrarem um verdadeiro desejo de descobrir a verdade, espero que se satisfarão e ficarão convencidos das provas de uma religião tão divina por mim coligidas aqui.»

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Pensamentos, de Blaise Pascal.

Li Pascal, pela primeira vez, da biblioteca de Dona Edith, viúva do Dr. Gilson de Mendonça Henriques, enquanto me hospedava com seus netos em Jacaraípe, Espírito Santo, numas férias de 1993 ou 1994. (Lembra, Míriam?) Ler Pascal, sentado no jardim fronteiro da casa, encarando o mar…

Lao Tsé e o governo (citado por Octavio Paz)

Lao Tsé

« Tzu Kung, discípulo de Confúcio, disse a Lao-Tsé: “Dizes que não deve haver governo. Mas, se não há governo, ¿como se purificará o coração dos homens?”. O mestre respondeu: “O único que não devemos fazer é intrometermo-nos com o coração dos homens. O homem é como uma fonte de água; se a tocas, se turva; se pretendes imobilizá-la, seu jorro irá mais alto… Pode ser tão ardente como o fogo mais ardente; tão frio, como o próprio gelo. Tão rápido que, num piscar de olhos, pode dar a volta ao mundo; em repouso, é como o leito de um tanque; ativo, é poderoso como o céu. Um cavalo selvagem que ninguém doma: isso é o homem”.»

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Citado por Octavio Paz, no livro Chuang-Tzu. (A traição tradução é minha.)

O Mestre e Margarida: Mikhail Bulgakov narra o diálogo, em plena União Soviética, entre o Diabo e dois escritores comunistas sobre a existência de Deus

Mikhail Bulgakov

Por Mikhail Bulgakov.

Essa conversa, como depois se soube, era sobre Jesus Cristo. O editor tinha encomendado ao poeta um longo poema anti-religioso para o próximo número da revista. Ivan Nikolaevitch tinha composto o poema, e até com muita rapidez, mas infelizmente o editor não tinha ficado nada satisfeito com ele. Bezdomni pintara a principal personagem do seu poema, ou seja, Jesus, com cores muito sombrias, e, no entanto, na opinião do redator, era preciso reescrever todo o poema. E agora o redator fazia ao poeta uma espécie de conferência sobre Jesus, a fim de sublinhar o erro fundamental do poeta.

Era difícil dizer o que é que precisamente traíra o poeta: se o poder imaginativo do seu talento ou o completo desconhecimento do assunto sobre o qual escrevia. Mas o Jesus que ele retratara era, digamos, como que uma personagem viva, embora não muito atraente. E Berlioz queria provar ao poeta que o mais importante não era como tinha sido Jesus, mau ou bom, mas que esse Jesus, como indivíduo, nunca existira e que todas as histórias sobre ele eram pura invenção, o mais vulgar dos mitos.

Devemos assinalar que o redator era um homem de muitas leituras e citava habilidosamente no seu discurso os historiadores antigos, por exemplo o célebre Fílon de Alexandria, o brilhante erudito Flávio Josefo, que nunca disseram nem uma palavra acerca da existência de Jesus. Mostrando uma sólida erudição, Mikhail Alexandrovitch informou o poeta, entre outras coisas, de que a passagem do Livro Quinze, no Capítulo 44 dos famosos Anais de Tácito, onde se fala de Jesus, não é mais que uma interpolação posterior e falsa.

O poeta, para quem tudo aquilo que o redator dizia era novidade, escutava atentamente Mikhail Alexandrovitch, fixando nele os seus olhos verdes, vivos e desenvoltos, e só de vez em quando soluçava, amaldiçoando em voz baixa o refresco de alperce.

– Não há uma única religião oriental – dizia Berlioz – em que, como regra, uma virgem imaculada não dê à luz um deus. E os cristãos, sem inventarem nada de novo, criaram do mesmo modo o seu Jesus, o qual de fato nunca existiu. E é isto que deve ser principalmente realçado…

A forte voz de tenor de Berlioz ecoava na alameda deserta, e, à medida que Mikhail Alexandrovitch penetrava em labirintos onde só um homem muito culto se pode aventurar sem correr o risco de quebrar a face, o poeta aprendia cada vez mais coisas interessantes e úteis sobre o Osíris egípcio, o deus benfazejo, filho do Céu e da Terra, sobre o deus fenício Tamuz, sobre Marduque, e até sobre o menos conhecido e terrível deus Huitzilopochtli, outrora profundamente venerado pelos astecas no México.

E no preciso momento em que Mikhail Alexandrovitch contava ao poeta como os astecas moldavam em massa de pão a figura de Huitzilopochtli, apareceu na alameda o primeiro transeunte.

Posteriormente, quando, para falar verdade, era já demasiado tarde, várias instituições apresentaram relatórios com a descrição desse homem. A comparação entre esses relatórios não pode deixar de causar estupefação. Assim, no primeiro diz-se que ele era de baixa estatura, tinha dentes de ouro e coxeava da perna direita. No segundo, esse homem era de estatura enorme, tinha coroas de platina e coxeava da perna esquerda. O terceiro relatório informa laconicamente que o homem não tinha quaisquer sinais particulares.

Devemos reconhecer que nenhum desses relatórios tem qualquer utilidade.

Antes de mais, o homem descrito não coxeava de nenhuma das pernas e não era de estatura baixa nem demasiado alta, mas simplesmente alto. Quanto aos dentes, do lado esquerdo tinha coroas de platina e de ouro no lado direito. Vestia um traje caro cinzento, e usava sapatos estrangeiros da mesma cor. O boné cinzento caía-lhe ousadamente sobre a orelha e debaixo do braço trazia uma bengala com castão preto em forma de cabeça de cão-d’água. Aparentava ter pouco mais de quarenta anos, tinha a boca um pouco torcida e estava muito bem barbeado. Era moreno. O olho direito era negro e o esquerdo, não se sabe por quê, era verde. As sobrancelhas eram negras, mas uma mais alta que a outra. Em suma, um estrangeiro.

Ao passar junto do banco onde estavam sentados o editor e o poeta, o estrangeiro olhou-os de soslaio, parou e, subitamente, sentou-se no banco próximo, a dois passos dos amigos.

“Alemão”, pensou Berlioz. “Inglês”, pensou Bezdomni. “E de luvas, com este calor.”

O estrangeiro percorreu com o olhar os altos edifícios que formavam um quadrado em volta do lago, e era evidente que via aquele lugar pela primeira vez e que ele lhe interessava.

Deteve o olhar nos andares superiores cujos vidros refletiam ofuscantemente o sol fragmentado que abandonava Mikhail Alexandrovitch para sempre, depois baixou-o para onde as vidraças começavam a escurecer com a noite, sorriu com ar superior, semicerrou os olhos, colocou as mãos sobre o castão da bengala e apoiou o queixo nas mãos.

– Tu, Ivan – disse Berlioz -, descreveste muito bem e em tom satírico, por exemplo, o nascimento de Jesus, filho de Deus, mas a questão está em que, antes de Jesus, nasceu toda uma série de filhos de deuses como, por exemplo, o Átis frígio. Em suma, nenhum deles nasceu e nenhum deles existiu, incluindo o próprio Jesus. E é preciso que tu, em vez do nascimento ou, digamos, da chegada dos Reis Magos, descrevas os boatos absurdos sobre esse nascimento… Ora do teu relato resulta que ele realmente nasceu!…

Então Bezdomni fez uma tentativa para acabar com os soluços, sustendo a respiração, o que o fez soluçar mais dolorosamente e mais alto, e, nesse mesmo instante, Berlioz interrompeu o seu discurso, porque de súbito o estrangeiro levantou-se e encaminhou-se para os escritores. Estes olharam-no atônitos.

– Desculpem, por favor – disse o homem, com sotaque estrangeiro mas sem deformar as palavras -, se, não vos conhecendo, tomo a liberdade… mas o tema da vossa erudita conversa é tão interessante que…

Tirou polidamente o boné, e os dois amigos não tiveram outro remédio senão levantarem-se e cumprimentá-lo.

“Não, deve ser francês … “, pensou Berlioz. “Polaco? … “, pensou Bezdomni. Deve-se acrescentar que desde as primeiras palavras o estrangeiro suscitou no poeta uma impressão de repulsa, enquanto Berlioz gostou dele, ou antes, não é que tenha gostado dele, mas… como dizer.. despertou-lhe interesse, digamos.

– Permitem que me sente? – pediu com polidez o estrangeiro, e, involuntariamente, os amigos afastaram-se, o estrangeiro sentou-se entre eles e entrou de imediato na conversa. – Se bem ouvi, o senhor dizia que Jesus nunca existiu? – perguntou o estrangeiro, voltando para Berlioz o seu olho esquerdo, verde.

– Sim, ouviu bem – respondeu cortesmente Berlioz. – Foi precisamente isso que eu disse.

– Ai, que interessante – exclamou o estrangeiro. “Mas que diabo quer ele?”, pensou Bezdomni, franzindo as sobrancelhas.

– E o senhor concordou com o seu interlocutor? – inquiriu o desconhecido, voltando-se para a direita, para Bezdomni.

– Cem por cento! – confirmou este, que gostava de expressões rebuscadas e alegóricas.

– Admirável! – exclamou o interlocutor e, lançando olhadelas furtivas e baixando ainda mais a voz, disse: – Desculpem-me a impertinência, mas, ao que percebi, os senhores, para além do mais, também não acreditam em Deus? – Teve um olhar de espanto e acrescentou: – Juro que não digo a ninguém.

– É verdade, não acreditamos em Deus – respondeu Berlioz, sorrindo levemente do receio do turista estrangeiro -, mas podemos falar disso com toda a liberdade.

O estrangeiro recostou-se no banco e perguntou, numa voz meio esganiçada de curiosidade:

– Os senhores são ateus?

– Sim, somos ateus – respondeu Berlioz, e Bezdomni pensou irritado: “Está grudado, este pato estrangeiro!”.

– Oh, que coisa fascinante! – exclamou o atônito estrangeiro, e virava a cabeça olhando ora para um, ora para outro dos literatos.

– No nosso país, o ateísmo não surpreende ninguém – disse Berlioz diplomaticamente. – A maioria da nossa população deixou, conscientemente e há muito tempo, de acreditar em histórias sobre Deus.

Então o estrangeiro saiu-se com esta: pôs-se de pé e apertou a mão do assombrado editor, enquanto dizia estas palavras:

– Permita que lhe agradeça de todo o coração!

– Por que é que lhe agradece? – interrogou Bezdomni pestanejando.

– Por uma informação muito importante que, para mim, como viajante, é muito interessante – explicou o estrangeiro excêntrico, erguendo um dedo significativamente.

Pelo visto, a importante informação produzira de fato uma forte impressão no viajante, porque ele relanceou os olhos assustados pelos edifícios, como se receasse ver um ateu em cada janela.

“Não, não é inglês … “, pensou Berlioz, enquanto Bezdomni pensava: “Interessante, onde terá ele aprendido a falar assim russo!”, e de novo franziu as sobrancelhas.

– Mas permita que lhe pergunte – tornou o visitante estrangeiro depois de refletir ansiosamente. – E as provas da existência de Deus, as quais, como se sabe, são exatamente cinco?

– Infelizmente! – respondeu Berlioz com pesar -, nenhuma dessas provas vale nada, e a humanidade já as mandou há muito para o arquivo. Pois há-de concordar que no domínio da razão não pode haver nenhuma prova da existência de Deus.

– Bravo! – exclamou o estrangeiro. – Bravo! O senhor repete interiormente o pensamento do velho irrequieto Immanuel sobre esse assunto. E coisa curiosa: ele demoliu completamente as cinco provas, e depois, como que troçando de si mesmo, construiu a sua própria sexta prova!

– A prova de Kant – ripostou o culto editor com um leve sorriso – também não é convincente. E não era em vão que Schiller dizia que as considerações de Kant sobre esta questão só podem satisfazer os escravos, e Strauss limitou-se a rir dessa prova.

Enquanto falava, Berlioz ia pensando: “Mas afinal, quem será ele? E por que é que fala tão bem russo?”.

– Esse tal Kant, havia que agarrá-lo e mandá-lo para Solovki, por essas provas! – lançou inesperadamente Ivan Nikolaevitch.

– Ivan! – murmurou Berlioz, embaraçado. Mas a proposta de enviar Kant para Solovki não só não impressionou o estrangeiro como o deixou encantado.

– Exatamente, exatamente! – exclamou ele e o seu olho esquerdo, verde, voltado para Berlioz, cintilou. – Lá é que é o lugar dele! Pois na época eu lhe disse, ao pequeno-almoço: “Desculpe, professor, mas o senhor inventou uma coisa que não faz sentido! É talvez inteligente, mas demasiado incompreensível. Vão fazer troça de si”.

Berlioz arregalou os olhos. “Ao pequeno-almoço?… A Kant?… Que está ele aí a inventar?”, pensou.

Sêneca: Da Brevidade da Vida (excerto)

 Sêneca

« Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única coisa em que a avareza é justificada.

« Por isso, agrada me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: "Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres prematuramente."

« Qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejais tudo como se fôsseis imortais.

« Ouvirás muitos dizerem: "Aos cinqüenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de meus encargos." E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve mais para nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o qüinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!»

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Da Brevidade da Vida, de Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C. — 65 d.C.).

Da “Filosofia Perene”: Aldous Huxley fala sobre fé

Aldous Huxley

« A palavra "fé" tem vários significados, que é impor­tante distinguir. Em certos casos é usada como sinônimo de "confiança", como quando dizemos que temos fé na habilidade diagnóstica do Dr. X ou na integridade do advogado Y. Análoga a esta é nossa "fé" na autoridade, a crença na probabilidade de que seja certo o que dizem certas pessoas sobre certas coisas, por causa de suas especiais condições. Outras vezes a "fé" significa crença em proposições que não tivemos ocasião de verificar por conta própria, mas que sabemos que poderíamos verificar, se tivéssemos o desejo e a oportunidade de fazê-lo, junto com a capacidade necessária para isso. Neste sentido da palavra, temos "fé", embora nunca estivemos na Austrália, na existência de uma criatura tal como o platypus; temos "fé" na teoria atômica, embora nunca fizemos os experi­mentos em que tal teoria se fundamenta e sejamos incapazes de compreender os cálculos matemáticos que a apóiam. E existe a "fé", que é uma crença em proposições que sabemos que não poderíamos verificar embora o quisésse­mos, tais como as do Credo de Atanasio ou as que constituem a doutrina da Imaculada Concepção. Esta classe de fé é definida pelos escolásticos como um ato do intelecto movido a assentir pela vontade.

« A fé nos três primeiros sentidos desempenha um papel muito importante, não só nas atividades da vida cotidiana, mas também até nas da ciência pura e aplicada. Credo ut intelligam — e também, deveríamos acrescentar, ut agam e ut uiuam. A fé é condição prévia de todo conhecimento sistemático, de todo obrar intencionado e de todo viver decente. As sociedades se mantêm, não principalmente pelo medo dos mais ao poder coativo dos menos, mas sim por uma difundida fé na decência de outros. Tal fé tende a criar seu próprio objeto, enquanto que uma difundida desconfiança mútua, devida, por exemplo, à guerra ou às dissensões domésticas, cria o objeto da desconfiança. Passando agora da esfera moral a intelectual, achamos a fé na raiz de todo pensamento organizado. A ciência e a tecnologia não poderiam existir se não tivéssemos fé na fidelidade do universo — se não acreditássemos implicitamente (para dizê-lo com as palavras de Clark Maxwell) que o livro da Natureza é realmente um livro e não uma revista, uma coerente obra de arte e não um tapete de retalhos. A esta fé geral na racionalidade e integridade do mundo, o buscador da verdade deve adicionar duas classes de fé especiais: fé na autoridade dos peritos qualificados, suficiente para lhe permitir aceitar sua palavra sobre afirmações que não comprovou pessoalmente; e fé em suas próprias hipóteses, suficiente para induzi-lo a comprovar suas crenças provisórias mediante a ação apropria­da. Esta ação pode confirmar a crença que o inspi­rou. Por outra parte, pode provar que a hipótese original estava mal fundada, e neste caso terá que ser modifica­da até que, conforme os fatos, e assim passe do reino da fé ao do conhecimento.

« A quarta classe de fé é o que usualmente se chama "fé religiosa". A qualificação é justa, não porque as outras classes de fé não sejam fundamentais em religião como o são nos assuntos seculares, mas sim porque este volitivo assentimento à proposições que se sabe que não são verificáveis ocorre em religião, e só em religião, como uma adição característica à fé como confiança, a fé na autoridade e a fé em proposições não verificadas, mas verificáveis. Esta é a classe de fé que, segundo os teólogos cristãos, justifica e salva. Em sua forma extrema e mais intransigente, tal doutrina pode ser muito perigosa. Eis aqui, por exemplo, uma passagem de uma das cartas de Lutero. Este peccator, etpecca fortiter; sedfortius crede et gaude in Christo, qui victor est peccati, mortis et mundi. Peccandum est quam diu sic sumus; vito haec non est habitatio justitiae. ("Sou pecador e peco fortemente; mas, mais fortemente, creio e alegro-me em Cristo, que é o vencedor do pecado, da morte e do mundo. Enquanto formos como somos, temos que ter pecados; esta vida não é a morada da retidão.") Ao perigo de que a fé na doutrina da justificação pela fé possa servir de desculpa ao pecado, e até de convite a pecar, deve acrescentar-se outro perigo, ou seja, o de que a fé que se supõe salvadora possa ser uma fé em proposições não meramente não comprovadas, mas sim repugnem à razão e ao sentido moral e estejam em completo desacordo com os resultados obtidos pelos quais cumpriram as condições de penetração espiritual na Natureza das Coisas. "Eis aqui o topo da fé — diz Lutero em De Servo Arbítrio —: acreditar que Deus, salva a tão poucos e condena a tantos, é misericordioso; é justo Quem, a seu prazer, fez-nos necessariamente destinados à condenação, de modo que parece deleitar-se na tortura dos miseráveis e ser mais merecedor de ódio que de amor. Se, por um esforço da razão, pudesse conceber como Deus, que mostra tanta ira e dureza, pode ser misericordioso e justo, não haveria necessidade de fé." A revelação (que, quando é genuína, é simplesmente o relato da experiência imediata dos que são bastante puros de coração e bastante pobres de espírito para poder ver Deus) não diz nada de todas estas doutrinas horríveis, às quais a vontade força o intelecto, que sente por isso uma relutância bastante natural e justa a dar assenti­mento. Tais noções não são produto da penetração dos santos, mas sim da atarefada fantasia de juristas, que estavam tão longe de transcenderem o eu e os prejuízos da educação, que tinham a louca presunção de interpretar o universo em termos da lei judia e Roma­na, com a que estavam familiarizados. "Ai de vós, os juristas!", disse Cristo. A acusação era profética e válida para todos os tempos.

« A medula e o coração espiritual de todas as religiões superiores é a Filosofia Perene; e se pode assentir às proposições da Filosofia Perene e obrar de acordo com elas sem ter que ir à classe de fé sobre a qual escrevia Lutero nas passagens precedentes. Deve, é óbvio, haver fé em sua condição de confiança — pois a confiança no próximo é o princípio da caridade para com os homens, e a confiança, não só na fidelidade material do universo, mas também em sua integridade moral e espiritual, é o princípio da caridade ou amor-conhecimento para com Deus. Deve haver também fé na autoridade — a autoridade daqueles cuja abnegação os pôs em condições de conhe­cer o Fundamento espiritual de todo ser, seja por contato direto ou por ouvi-la. E, finalmente, deve haver fé nas proposições a respeito da Realidade enunciadas por filó­sofos à luz de uma revelação — proposições que o crente sabe que pode comprovar por si mesmo, se estiver disposto a cumprir as condições necessárias. Mas, enquanto a Filosofia Perene seja aceita em sua simplicidade essencial, não há necessidade de volitivo assentimento à proposições das quais de antemão se sabe que não são comprováveis. Aqui é necessário observar que tais proposições podem chegar a ser verificáveis assim que uma intensa fé afete o substrato psíquico e assim crie uma existência cuja derivada objetividade po­de realmente descobrir-se "lá fora". Contudo, recordemos que uma existência que tira sua objetividade da atividade mental dos que acreditam intensamente nela não pode ser o Fundamento espiritual do mundo, e que uma mente atarefada na atividade volun­tária e intelectual que é a "fé religiosa" não pode achar-se no estado de renúncia ao eu e de atenta passividade que é a condição necessária ao conhecimento unitivo do Fundamento. Por isso afirmam os budistas que "a amorosa fé conduz ao céu; mas a obediência ao Dharma conduz ao Nirvana". A fé na existência e poder de qualquer entidade sobrenatural que seja menos que a Realidade espiritual última, e em qualquer forma de adoração que não alcance o abatimento de si mesmo, produzirá sem dúvida, se o objeto da fé é intrinsecamente bom, um melhoramento do caráter, e provavelmente a sobrevivência póstuma de melhorada personalidade em condições "celestiais". Mas esta sobrevivência pessoal dentro do que é ainda a ordem temporária não é a vida eterna da união atemporal com o Espírito. Esta vida eterna "está no conhecimento" da Divindade, não na fé em algo que seja menos que a Divindade.»

A imortalidade obtida pela aquisição de uma condição objetiva (por exemplo, a condição — alcan­çada pelas boas obras inspiradas pelo amor a algo inferior à Divindade suprema e pela crença nesse algo — de unir-se em ato ao adorado) está exposta a terminar; pois nas Escrituras se afirma distintamente que o Carma não é nunca causa de emancipação.

Shankara

« O Carma é a sucessão causal no tempo, da qual somos somente libertados "morrendo para" o eu tem­poral e nos unindo com o eterno, que está além do tempo e causa. Pois “quanto à noção de uma Primeira Causa, ou Causa Sui” (para citar as palavras do Dr. E R. Tennant, eminente teólogo e filósofo), “devemos, por um lado, ter presente que nos refutamos ao tentar estabelecê-la por extensão da aplicação da categoria causal, pois casualidade universalizada implica contradição; e, por outra parte, recordar que o Fundamento último sim­plesmente ‘É’." Só quando também o indivíduo "sim­plesmente é", em virtude de sua união, pelo amor-conhecimento, com o Fundamento, pode haver liberação completa e eterna.»
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A Filosofia Perene, de Aldous Huxley.

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