palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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O mercado de ebooks no Brasil

Preciso repetir sempre: desde 2000, ano em que criei meus primeiros ebooks para o pré-histórico Rocket eBook – fiz até mesmo uma versão em .RB e em EbookEditPro para o Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, de quem era então secretário -, enfim, desde 2000, não canso de me espantar com a inércia bovina e com a impressionante falta de visão do mercado (isto é, dos produtores, distribuidores e consumidores brasileiros) diante dessa fantástica inovação tecnológica. Talvez esse meu espanto não passe de uma reação colateral a um trabalho que escrevi na UnB, nos anos 1990, sobre a história do livro, desde as placas de argila, passando pelos papiros e palimpsestos até os códices e brochuras atuais. (Atuais?) Qualquer faraó, qualquer escriba persa, qualquer monge copista ficaria embasbacado ao deparar-se com uma placa… placa de quê? parece cerâmica… mas é muito leve… e tem um… espelho? Não, não reflete, muito fosco… Nossa, apareceu um texto nela!!! Que mágica, as páginas desaparecem e reaparecem no mesmo lugar! O quê?!! Há mais de mil pergaminhos dentro dele?!! É uma biblioteca de Alexandria ambulante?! De onde saiu isso?! Ah, meu senhor, não faço ideia, deve ter vindo do Céu, muito provavelmente os deuses o trouxeram…

Um excelente artigo de C. S. Soares, Diretor-Executivo da Obliq Press, publicado no site Musa Rara, dá detalhes desse nosso atraso, o qual muito se assemelha a nossas estradas esburacadas em comparação às autobahns alemãs.

Leia um trecho:

(…) Segundo dados da Nielsen BookScan, a queda nas vendas dos livros impressos nos Estados Unidos dobrou em dois anos (sendo que a maior redução foi em ficção – 7,2% em 2010 e 18% em 2011). No Reino Unido, nas primeiras quatro semanas de 2012, a redução nas vendas de livros físicos foi de 12% no geral e de 26% apenas em ficção. O mesmo ocorre na Espanha. Na Itália, a exceção, as vendas de ficção ainda crescem.

No Brasil, onde a cada ano que passa as grandes editoras reduzem a quantidade de títulos publicados, inusitadamente, o mercado editorial festeja os índices apresentados no recente levantamento “Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro”, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (FIPE/USP). Os resultaos mostraram um crescimento de 7,2% nas vendas do setor literário no Brasil. Dos 438 milhões de exemplares vendidos em 2010, foram vendidos 469,5 milhões em 2011.

É importante lembrar que a análise da FIPE/USP, que apura dados nos segmentos que sustentam a cadeia produtiva do livro, ou seja, o mercado (livrarias e outros pontos de venda) e o governo (que compra das editoras por meio de programas como Plano Nacional do Livro Didático – PNLD), avalia o preço médio do livro, que não corresponde ao que é pago pelo consumidor, e sim às vendas (com descontos) das editoras ao mercado e ao governo. Ainda segundo o levantamento da FIPE, os títulos digitais ainda não têm influência significativa na elevação ou queda do preço médio do livro, mas começam a fazer presença no panorama editorial, com mais de 5.200 títulos lançados em 2011. O número equivale a aproximadamente 9% dos mais de 58 mil títulos totais lançados em 2011. Em relação às vendas, o total corresponde a um faturamento de cerca de R$ 870 mil. Enfim, muito pouco, quase nada.

Enquanto isso, nos EUA, segundo relatório recentemente divulgado pela Association of American Publishers (AAP), os livros digitais já trazem maior faturamento aos editores americanos do que os tradicionais livros de capa dura. Além disso, no seguimento de livros para adultos, entre janeiro de 2011 e janeiro de 2012, as vendas de e-books cresceram cerca de 50%. Já no seguimento de livros infantis, o crescimento do faturamento foi de 475% no mesmo período!

Resumindo, a situação é a seguinte: no mercado brasileiro, celebra-se o “crescimento” das vendas de livros impressos e nos EUA, o faturamento, cada vez maior, ano a ano, na venda dos e-books. Pergunto a você, prezado leitor, qual das duas situações deveria, digamos, ser mais celebrada?

A grande verdade, amigos, é que as editoras nacionais ainda não reconhecem a importância cada vez maior do conceito de inovação no mundo atual. Editoras concorrendo com empresas de tecnologia? Ora, só incorporando inovação e, claro, tecnologia nos seus processos. Existem ainda grandes editoras brasileiras (pasmem!) que não possuem intranet e não dão a devida atenção à gestão de seus ativos digitais. É nesse cenário hostil que as editoras precisarão lutar para sobreviver. Se querem ter melhores chances de sobrevivência, precisam, para começar, “tirar a venda” (que elas mesmas colocaram) dos olhos. É preciso fazer o trabalho de casa. Esquecer o passado e olhar (de forma positiva) para o futuro. A crise, acredito, pode ser oportunidade para ampliar (até) sua carteira de clientes e portfólio de produtos e serviços.

Livros e software são produtos do intelecto. Conhecimento recuperado, produzido, editado, empacotado e publicado. O que estamos observando é que a Amazon, Google e Apple (Microsoft, em breve) também se tornaram “editoras” e “livrarias” dos novos tempos. Elas apostam nos livros digitais, pois sabem que eles tendem a superar, por diversos motivos, a vendas dos livros impressos. Entretanto, as editoras em geral (e principalmente as brasileiras) insistem em enaltecer uma tecnologia do século XV (a prensa de Gutenberg), modelos de negócios do século XIX, achando que assim vão se estabelecer no século XXI. Ainda se ouve (acreditem!) entre muitos editores brasileiros a discussão sobre a “insuperável” supremacia do livro impresso sobre o digital. (…)

E então, gente? Vamos mudar de perspectiva?
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Publicado no Digestivo Cultural.

Yarny e My Writing Spot

No post anterior comentei sobre o quão conveniente seria, para empresas que vendem ebooks e para seus autores associados, o uso de um processador de textos específico para escritores – contendo todas as facilidades já referidas – que, além de tudo, ainda salvasse os textos na nuvem e os exportasse no formato(EPUB, MOBI, PDF, etc.) e no padrão exigidos pelos respectivos ereaders. Estou sempre pesquisando sobre essas coisas – e isso desde 2000, ano em que criei meus primeiros ebooks para o velho Rocket eBook – mas acabei escrevendo o post anterior num impulso, sem ter averiguado mais a fundo se tal processador de texto já não existiria por aí. E não é que encontrei dois tipos?

O Yarny oferece boa parte das funções que considero úteis para a escritura de ficção – abas para perfis de personagens, locações e idéias em geral -, salva na nuvem, mas, claro, para poder ter acesso ao programa completo é preciso pagar uma assinatura mensal ou anual.

Já o My Writing Spot é gratuito, e isso apenas porque não é senão um aplicativo criado por um usuário comum graças ao Google App Engine. Ou seja, ele já salva os textos na nuvem da própria Google! O problema é que, embora a privacidade dos nossos textos esteja garantida, ficamos dependentes da conta do sujeito que o criou.

Enfim, ainda não encontrei o que eu havia imaginado: um processador de textos oferecido pela própria empresa responsável pela venda dos ebooks. Acho que seria interessante porque, já que ela só teria a ganhar ao oferecer tal serviço, o mesmo poderia ser gratuito para o autor. Bom, do mesmo modo que a Google comprou o Writely e o transformou no Google Docs, não seria ruim se ela ou a Amazon repetissem a dose com um desses dois.
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Publicado no Digestivo Cultural.

Amazon! Google! Help me!

¿Quem sou eu para dar ideias à Amazon e à Google? “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada.” Mas… ¿e daí? Darei as ideias assim mesmo.

Em 2009, postei aqui um artigo intitulado Softwares para ficcionistas. Obviamente, tratava de programas específicos para escritores de ficção, mormente de processadores de texto contendo facilidades tais como “tabelas com o perfil dos personagens, abas para ideias gerais e anotações referentes ao andamento da trama, mapas com eventos importantes da narrativa, tabelas com locações e, claro, a subdivisão do trabalho em capítulos e cenas”. Quem nunca escreveu um texto literário com mais de 50 páginas nem imagina o quanto tudo isto pode ser útil. Na época, aderi ao WriteItNow, que comprei baratinho, com o direito de atualizá-lo sempre que novas versões são lançadas. Mas houve um problema: comecei a escrever em vários computadores diferentes, mudei de cidade, depois voltei à cidade anterior, o que, por razões óbvias, me tornou paranoico com tantos becapes e confuso com as cópias do trabalho: “¿Qual é mesmo a mais recente?”. Enfim, senti necessidade de um software que salvasse o trabalho na nuvem, tal como o CeltX (cuja versão gratuita tem funções limitadas e só é apta para confeccionar roteiros de cinema) ou o Adobe Story (idem). Ora, ora… Se a Amazon e a Google entraram para valer no mercado de ebooks, ¿por que não oferecem – gratuitamente – um aplicativo semelhante aos citados que possa salvar o trabalho na nuvem? Ambas já oferecem espaço gratuito (Google Drive e Cloud Drive), a Google inclusive oferece um editor de textos simples. ¿Que tal oferecer também um editor para escritores de ficção? Não fosse esse receio de perder o trabalho (e de me perder no meio das várias versões), usaria apenas o WriteItNow. Mas a Google e a Amazon seriam inteligentes em unir o útil ao agradável. O aplicativo poderia inclusive já exportar o documento (ebook) no formato exigido pelas empresas. ¿O que acham?

Fica a dica.

Atualização de 18 de Julho: encontrei dois sites que oferecem serviço próximo ao proposto.
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Publicado no Digestivo Cultural.

Milan Kundera fala da grafomania e do choque entre universos literários

 

Milan Kundera

Alguns dias mais tarde, Banaka [o escritor] fez sua aparição no café. Completamente bêbado, sentou-se no tamborete do bar, caiu dele duas vezes, tornou a se sentar, pediu uma aguardente de maçã e deitou a cabeça no balcão. Tamina percebeu que ele chorava.

— O que está acontecendo, senhor Banaka? — perguntou ela.

Banaka ergueu para ela um olhar lacrimoso e apontou com o dedo para o peito:

— Eu não sou, você compreende? Eu não sou! Eu não existo!

Depois foi ao banheiro e do banheiro diretamente para a rua, sem pagar.

Tamina contou o incidente a Hugo, que, à guisa de explicação, mostrou-lhe uma página de jornal em que havia muitas resenhas de livros e, a respeito da produção de Banaka, uma nota composta de quatro linhas sarcásticas.

O episódio de Banaka, que apontava o dedo indicador para o peito, chorando, porque não existia, me lembra um verso de O divã ocidental-oriental de Goethe: “Estamos vivos quando outros homens vivem?” Na pergunta de Goethe se esconde todo o mistério da condição de escritor: o homem, pelo fato de escrever livros, transforma-se em universo (não se fala do universo de Balzac, no universo de Tchekhov, no universo de Kafka?) e o próprio de um universo é justamente ser único. A existência de um outro universo o ameaça na sua própria essência.

Dois sapateiros,desde que tenham suas lojas exatamente na mesma rua, podem viver em perfeita harmonia. Mas se começarem a escrever um livro acerca da vida dos sapateiros, eles vão logo incomodar um ao outro e fazer entre si a pergunta: Um sapateiro está vivo quando vivem outros sapateiros?

Tamina tem a impressão de que um só olhar estranho pode destruir todo o valor de seus diários íntimos, e Goethe está convencido de que um só olhar de um só ser humano que não esteja presente nas linhas da sua obra coloca em questão a própria existência de Goethe. A diferença entre Tamina e Goethe é a diferença entre o homem e o escritor.

Aquele que escreve livros é tudo (um universo único para si mesmo e para todos os outros) ou nada. E porque nunca será dado a ninguém ser tudo, nós todos que escrevemos livros não somos nada. Somos desconhecidos, ciumentos, azedos, e desejamos a morte do outro. Nisso somos todos iguais: Banaka, Bibi, eu e Goethe.

A irresistível proliferação da grafomania entre os homens políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes me demonstra que todo homem, sem exceção, traz em si sua potencialidade de escritor, de modo que toda a espécie humana poderia com todo o direito sair na rua e gritar: “Somos todos escritores!”

Pois cada um de nós sofre com a idéia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto ainda é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras.

Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais.

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Trecho d’ O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera.

Otto Maria Carpeaux e a inexistente Idade das Trevas

No ensaio “História do Humanismo e das Renascenças”, Otto Maria Carpeaux prova, por A mais B, que considerar a Idade Média como uma “Idade das Trevas” não passa de preconceito caipira. (T.S. Eliot chamaria isto de “provincianismo temporal”, coisa de quem se isola em seu próprio tempo e se torna cego para outras épocas.)

Leia trecho do referido ensaio:

O aspecto sentimental das ruínas romanas levou os humanistas a criarem o esquema tripartido da História Universal: Antiguidade, “séculos escuros” da Idade Média, Época Moderna, começando com o renascimento das letras clássicas pelos próprios humanistas. O êxito completo deste conceito historiográfico explica-se, em parte, pela admiração que já os eruditos medievais tinham à civilização romana: já o abade Servantus Lupus de Ferrières (+ 862) se congratula com o renascimento dos estudos latinos em sua época; o cluniacense Bernardus de Morlas, no seu poema didático De contemptu mundi (c. 1140), lamenta a falta de cultura do seu tempo, lembrando a civilização dos antigos romanos; entre muitos outros, Johannes de Garlandia (+ 1258) reconhece a superioridade intelectual dos pagãos da Antiguidade. Daí vai só um passo para o grito de júbilo do humanista: “O saeculum! o litterae! Iuvat vivere etsi quiescere nondum iuvat, Billlibalde, vigent studia, florent ingenia! Heu tu accipe laqueum barbaries, exilium prospice!” (Ulricus de Hutten, em carta a Willibald Pirkheimer, de 25 de outubro de 1518); essa consciência de ter saído enfim de um período de trevas decidiu o êxito do esquema tripartido da História Universal. Ao orgulho dos intelectuais juntaram-se outros motivos, de origem emocional: durante toda a “Idade Média”, a forte reação contra a corrupção moral do clero levou a comparações menos lisonjeiras com a pureza da Igreja primitiva e às esperanças heréticas de uma “renovatio“, de uma “Terceira Igreja”, puramente espiritual: assim aconteceu com os franciscanos espiritualistas e joaquimistas dos séculos XIII e XIV. Enquanto os humanistas, buscando sempre as “fontes”, estiveram interessados em questões religiosas, aprofundaram a comparação com a Igreja primitiva, de Poggio Bracciolini, no seu De miseria humanae conditionis, até Erasmo, com as suas edições do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A Reforma pensou ter vencido a “noite do Papado” (expressão de Lutero), e o esquema tripartido, com o seu duplo fundamento literário e religioso, sobreviveu ao humanismo e zelo reformador, gerando ainda no século XVIII a expressão “Dark Ages” (William Robertson), e dominando até hoje os manuais e a linguagem. Até no abismo absoluto que Oswald Spengler cavou entre a Antiguidade e a civilização moderna, reconhecem-se os vestígios da velha retórica.

A historiografia atual já não admite esse conceito; não existe cisão absoluta entre a Antiguidade e os séculos seguintes, e sim uma evolução contínua. Os historiadores dos séculos passados fixaram o “Fim da Antiguidade” em datas diferentes: em 375, pretenso começo das grandes migrações dos bárbaros, que, no entanto, haviam começado já muito antes; ou então em 476, ano do pretenso fim do Império Romano, que, no entanto, continuava no seu novo centro, Bizâncio. A análise imparcial dos fatos revela, ao contrário, uma solidificação das instituições e resíduos culturais da Antiguidade, no século VI. Com efeito, um cataclismo, uma catástrofe, nunca pode servir de data para o começo de uma nova era. A época pós-antiga do mundo cristão-ocidental começa com uma data de valor positivo: com a elaboração, no século VI, dos três grandes Códigos, nos quais a herança se cristalizou.

O século VI é a época das grandes codificações. Até mesmo o judaísmo termina então o imenso trabalho da codificação das suas leis pós-mosaicas tradicionais: o Talmude. A igreja ocidental, possuindo já um texto latino autêntico da Bíblia, a Vulgata de São Jerônimo, começa a organizar um corpo de escritos autentificados dos chamados Padres da Igreja: em 496 (a data não é certa), o Papa Gelásio I promulga a Epistola decretalis de recipiendis libris, na qual autentifica os opuscula de Cipriano, Gregório Nazianzeno, Basílio, Hilário de Poitiers, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e Próspero Aquitanense, constituindo assim o corpo patrístico que significa o aproveitamento da filosofia e da literatura greco-romanas a serviço da teologia cristã. Já por volta de 400, sob a influência de Ambrósio, conceitos cristãos tinham penetrado no direito romano (Collatio legum mosaicarum et romanarum); agora, o imperador Justiniano termina esse processo com a grande codificação que é principalmente obra do seu conselheiro jurídico Triboniano: o Corpus Juris é de 529 e a segunda edição, que inclui as Instituiones e os Digesta seu Pandectae, de 534; o conjunto é a criação literária mais poderosa do espírito romano – é o fundamento institucional do humanismo europeu.

Essas codificações marcam uma data e, ao mesmo tempo, uma delimitação. Religião judaico-cristã, ciência grega, direito romano: eis a herança da Antiguidade, lançando os fundamentos da civilização ocidental. As regiões e nações que não receberam aquela herança ficaram excluídas da comunidade ocidental, entrando nela somente século depois e em circunstâncias bem diferentes. E todas as outras influências alheias, que o Ocidente recebeu mais tarde, já não se incorporaram bem na nossa civilização; tornaram-se influências “exóticas”. Nem os elementos de pintura chinesa que, trazidos pelos viajantes do século XIII, influíram em Giotto; nem as riquezas ornamentais da Índia que a arquitetura da época dos descobrimentos imitou; nem a abundância fantástica das Mil e uma Noites arábicas nem a pacífica sabedoria chinesa de que o Rococó gostava; nem o budismo que os pessimistas do século XIX apregoaram – nada disso entrou realmente em nossa civilização; continuou sempre “exotismo”. A sorte dos documentos literários do Ocidente entre nós confirma a distinção entre o “exotismo” greco-romano, que faz parte da nossa cultura, e o “exotismo” oriental, que ficou fora dela. Há certas obras da Antiguidade clássica que ninguém conseguiu traduzir bem para as línguas modernas, como as de Píndaro; contudo Píndaro é uma das maiores e mais persistentes influências nas nossas literaturas. Das literaturas orientais recebemos e conservamos definitivamente apenas algumas poucas obras, traduzidas (se é lícita a expressão) de maneira antes inexata, razão por que se tornaram obras nossas. Hafiz é, para nós, um nome; as traduções exatas apenas servem de ajuda de leitura ao especialista; mas o Westoestlicher Diwan, de Goethe, só ligeiramente inspirado no poeta persa, é uma das grande obras líricas da literatura ocidental. Omar Khajjam é, para nós, menos do que um nome; as traduções literais só constituem a delícia dos bibliófilos; mas a tradução libérrima de Edward Fitzgerald, quase obra independente, é obra “clássica” da língua inglesa. E que mais? As grande coleções orientais de fábulas e contos, das quais as literaturas medieval e renascentista se aproveitaram, forneceram apenas matéria-prima novelística. As traduções de Li Tai Po que d’Hervey-Saint-Denys e Hans Bethge popularizaram, na França e na Alemanha, são belas poesias neo-românticas, nas quais os sinólogos são incapazes de reconhecer os originais. O que não provém daquela herança antiga, continua inassimilável; e com isso o conceito “Literatura do Ocidente” está justificado.

(…)

Renascença como marco decisivo da civilização ocidental: este conceito enquadra-se bem no esquema tripartido da História Universal, na qual deveria haver duas cesuras, a queda do Império Romano e a renascença de Atenas e Roma pelo esforço dos humanistas. Mas, que é a Renascença? O uso da expressão pelos historiadores foi inaugurado por Michelet e Burckhardt; o conceito, porém, é mais antigo. Os historiadores das artes plásticas no século XVIII tinham em consideração especial aqueles poucos artistas modernos – Leonardo, Miguel Ângelo, Rafael, Correggio, Ticiano – que pareciam dignos de participar das glórias da Antiguidade clássica. Os românticos gostavam de acrescentar o nome de Dürer, e até de alguns artistas posteriores, como Rubens, Van Dyck, e Claude Lorrain. São estes, mais ou menos, os nomes que definem o gosto artístico de Goethe. Segundo a opinião dos classicistas ortodoxos, a humanidade moderna é, em geral, incapaz de atingir o esplendor da arte antiga; contudo, a imitação assídua das obras de arte greco-romanas, durante o século XVI, teria produzido aqueles poucos artistas sobremaneira geniais, dignos de ser venerados no Panteão da arte clássica. Ao mesmo tempo, a historiografia literária dos românticos fez renascer as “literatures du Midi de l’Europe” (Sismondi): Ariosto e Tasso, Camões e Cervantes. Fortaleceu-se a opinião segundo a qual o século XVI teria sido época de uma prosperidade excepcional da civilização humana, já liberta das cadeias medievais pelo heroísmo geográfico de Colombo, pelo heroísmo religioso de Lutero e pelo heroísmo científico dos Copérnicos e Galileus; e tudo isto se devia ao estudo da Antiguidade pelos humanistas! No famoso livro de Jacob Burckhardt, porém a ênfase já é dada ao século XV. Com efeito, o trabalho principal dos humanistas pertencem a este século; e os italianizantes ingleses da época, os pré-rafaelistas, já tinham descoberto o esplendor maior das artes plásticas “antes de Rafael”: Brunelleschi, Ghiberti, Donatello, Masaccio, Fra Filippo Lippi, Bellini, Mantegna, Botticelli e Perugino. O “Cinquecento” foi substituído, na admiração geral, pelo “Quattrocento”. Mas o recuo do conceito historiográfico não parou aqui. Já na exposição de Burckhardt aparece, como “primeiro homem moderno”, Francesco Petrarca, que nasceu em 1304: e começaram a celebrar, como pai da arte moderna, o grande Giotto, que nasceu em 1267, dois anos depois de Dante, considerado até então como o maior espírito da Idade Média, ser nomeado inaugurador da Renascença. O único obstáculo foi a questão religiosa: os homens da Renascença passaram por libertadores, enquanto que Dante foi o poeta máximo do cristianismo medieval, o poeta do tomismo; e a aversão à escolástica era muito forte. Mas já se havia chamado a atenção para as energias religiosas no movimento renascentista, mesmo em Erasmo; Thode explicou os elementos de espírito novo em Dante e Giotto pela influência da reforma religiosa de São Francisco; e Burdach construiu uma nova linha de evolução: “Humanismo – Renascença – Reforma”, com o apogeu do humanismo no século XIV, em Petrarca e Cola di Rienzo, e com as raízes do movimento inteiro na religiosidade franciscana. Quase ao mesmo tempo, Duhem fez a descoberta surpreendente de que os conceitos da astronomia e da física modernas já se encontravam em nominalistas como Johannes Buridanus, Nicolaus Oresmius e outros escolásticos menos ortodoxos do século XIV. Desde então, o conceito “renascença medieval” já não parecia paradoxo. Afinal, Aristóteles é um dos espíritos mais poderosos da Antiguidade grega – e a assimilação da sua filosofia, no século XIII, por São Tomás e a sua escola, não teria sido uma renascença? A palavra já aparece com o artigo indefinido e no plural. Até uma época bem anterior revela ao estudioso conhecimentos tão amplos da Antiguidade clássica, que se fala de uma “renascença do século XII”. A “Idade Média”, considerada antigamente como época estática de ortodoxia petrificada, perdeu esse aspecto: apresenta-se com a nova característica de época de intensas lutas espirituais, com renovações periódicas, das quais a primeira foi a renovação dos estudos clássicos na corte de Carlos Magno: a “renascença carolíngia” do século IX. É possível continuar essa série de renascenças, para trás e para frente. A renovação do espírito romano no século VI, pela atividade legislativa do Imperador Justiniano, pela regra dos monges de São Bento, pelo governo autenticamente romano do Papa Gregório, o Grande, é uma renascença. Até na Roma do imperador Augusto, a revivificação da poesia grega por Horácio, Virgílio, e pelos poetas elegíacos, é uma renascença. São renascenças, posteriormente, o classicismo francês do “siècle de Louis le Grand”, o classicismo alemão de Weimar, e até a ressurreição da “Antiguidade dionisíaca”, em Nietzsche. Agora, já não é possível confundir atuação do espírito greco-romano no Ocidente com a conservação estática da herança antiga no islamismo: a história espiritual do Ocidente, segundo Mandonnet, é uma seqüência de renascenças.

Essas renascenças consecutivas constituem um fenômeno inquietante: tentativas sempre repetidas de apoderar-se da substância da civilização antiga; sempre repetidas, porque talvez sempre malogradas. Afirma-se a influência imensa das letras greco-romanas nas literaturas medievais e modernas. Parece, porém, que todas as épocas souberam escolher na Antiguidade apenas o que lhes era afim: cada época logrou somente criar uma imagem da Antiguidade segundo a sua própria imagem, de modo que já a época seguinte ficava na obrigação de abandonar o erro e incidir em novo erro. “Erros férteis”, no sentido do pragmatismo. No fundo, a Antiguidade não influiu realmente nas literaturas modernas; só agiu como medida, como critério, e fato de, durante treze séculos, o critério da nossa civilização não ser imanente, mas encontrar-se fora, numa outra civilização, alheia e já passada, é a marca mais característica da cultura ocidental.

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Publicado no Digestivo Cultural.

Otto Maria Carpeaux: Literatura, a “expressão total da natureza humana”

Otto Maria Carpeaux

“O que, da parte do autor, entra na obra, não é a situação real, mas só a emoção, nascida da situação. Nasce uma obra de arte se o autor chega a transformar a emoção em símbolo; se não, ele só consegue uma alegoria. A alegoria é compreensível ao raciocínio do leitor, sem sugerir a emoção, essa emoção simbólica, a que Croce chama o ‘lirismo’ da obra. A forma desse lirismo é o símbolo. O símbolo fala-nos, não ao nosso intelecto, mas a toda a nossa personalidade. O símbolo exprime o que nós outros sentíamos também sem poder exprimir. A expressão simbólica é o privilégio do poeta. Tanto mais durável é a sua obra quanto mais universal é o símbolo. Há símbolos que refletem a situação humana inteira.”

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“…como expressão total da natureza humana é que a literatura aparece no mundo e nessa função é que não pode ser substituída por coisa alguma.”

Otto Maria Carpeaux, citado por Ronaldo Costa Fernandes na apresentação ao ebook “História da Literatura Ocidental” (Carpeaux).

O Duplo — um conto de Coelho Neto

— Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?

— Quem te disse ?

— Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

— Laura… Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

— Que tem?

— Ora! Que tem… Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas. Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais “termos” não dou um passo — nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer. Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que freqüenta. O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

— Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestamse visível, sensivelmente. Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor — Mistério. Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há alguma coisa que… ninguém sabe o que é. A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade…?

— Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida. Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida. O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais. O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham. O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acontecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa Voltei página do jornal – a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi…!

— Viste…?

— A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra. Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo: “Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos. Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa”. Que angústia, meu amigo ! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d’alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado. Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim. Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé. A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio. Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro “eu”, não o vi mais. Teria descido? Não! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro. E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento. Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo. E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: ‘– Quem era o morto?” E logo lhe foi respondido:

— É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

— Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.

Sobre o escritor Coelho Neto (1864-1934).

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