palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Bernardo Soares e aqueles que dominam o Diabo

Fernando Pessoa

« Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas — intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas — a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre eles, exclusos todos nós outros — os grandes segredos que são os cavoucos do mundo.

« Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações coletivas.

« O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever — já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta —, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver[?] Porque há de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há de sobrar um reles bocado, com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?

« Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.

« Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.»

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Livro do Desassossego, de Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa).

Almada Negreiros: «A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo»

Almada Negreiros (auto-retrato)

« A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo. Os iguais não se admiram entre si; confiam-se, ou melhor, são iguais.»

(…)

« Poesia é a vocação humana de não pôr parcialidade na Vida.»

(…)

« A Poesia conhece e não sabe.»

(…)

« Não fazer nada senão por pura simpatia. A simpatia é bastante. Nem amigos nem assuntos onde não esteja inteira a nossa simpatia. A simpatia tem, de fato, uma aparência agradável e é a única maneira de nos tornarmos invisíveis até chegados nós.»

(…)

« O saber é pouca coisa para quem conhece. O saber desencanta o mistério. O conhecimento vive cara a cara com o mistério.»

(…)

« Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.»

(…)

« Comprei um livro de filosofia.[…] Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?»

[Algumas notas que tomei, anos atrás, de um livro de Almada Negreiros (1893-1970), cujo título não guardei…]

 

A pintura mais conhecida de Almada Negreiros é este retrato de Fernando Pessoa:

Fernando Pessoa por Almada Negreiros

E seu desenho mais conhecido:

Fernando Pessoa por Almada Negreiros

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Uma palestra de Bruno Tolentino na UFRJ

O poeta Bruno Tolentino, que durante o ano de 1999 também morou na Casa do Sol (residência da escritora Hilda Hilst), tinha o costume — após encerrar seu trabalho diário no livro O Mundo como Idéia, que vinha finalizando —, de ir ou até o escritório da Hilda ou até meu quarto (que também era a biblioteca) e ficar até tarde da noite tecendo mil e um comentários sobre os mais diversos temas, principalmente literatura, filosofia, religião e política. (Digamos que tal ritual fazia parte da minha “pós-graduação desprovida do beneplácito do MEC”…)

Gostei de encontrar a palestra abaixo no You Tube porque ela, ao contrário de outras gravações que ouvi antes, apresenta Bruno exatamente como era nessas ocasiões: aberto, bem-humorado, brincalhão, brilhante, sagaz, sarcástico, erudito, tagarela…

A palestra, que a princípio trata da poesia de Vinicius de Moraes, está dividida em 12 partes (infelizmente há a intervenção inaudível de uma mulher nas últimas partes que irrita um bocado, mas não estraga o conjunto):

Mário Quintana e O Mundo de Deus

Mário Quintana

O Mundo de Deus

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na Lua é no fim de contas menos simplório do que os
primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar,
não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio, afinal, deve Ele
estar mesmo muito mais na Lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus
sem os homens”.

Caderno H (1973), de Mário Quintana.

Michel de Montaigne fala sobre o estilo

Michel de Montaigne

« A linguagem deles é cheia de um vigor natural e permanente; são um verdadeiro e total epigrama, não apenas quanto à cauda, mas também à cabeça, o estômago e os pés. Nada é forçado, nada é penoso, tudo caminha com o mesmo porte. Não se trata de uma eloqüência mole e sem arestas, mas de uma eloqüência nervosa e sólida, que enche e arrebata o mais forte espírito mais do que lhe agrada. Quando me encontro diante dessas formas pujantes de se explicar, tão vivas e tão profundas, não digo que está bem dito, mas bem pensado…

« O manuseio e a freqüentação dos belos espíritos dão corpo à língua, não tanto por inová-la, porém por emprestar-lhe sentidos mais vigorosos, mais amplos e maleáveis; não lhe trazem palavras novas, mas enriquecem as já existentes, dão-lhes mais peso e significação mais profunda; e maior uso, outorgam-lhes com prudência e engenho movimentos inéditos. E que isso não é apanágio de todos, vê-se por inúmeros escritores franceses deste século. São assaz arrojados e desdenhosos para não seguir o caminho comum; mas perde-os a carência de invenção e de discrição. Neles vemos tão somente uma pobre afetação de originalidade que em lugar de elevar avilta o assunto. Conquanto chafurdem na novidade, pouco se lhes dá a eficiência; na ânsia de uma palavra nova abandonam a vulgar, não raro mais forte e nervosa.

« Na nossa língua encontro bastante estofo, porém certa falta de estilo; muito se faria com a gíria da caça e da guerra, dadivoso terreno a ser ainda lavrado; e as maneiras de falar, como as plantas, se apuram e se fortalecem no transplante…

« Quando escrevo evito a companhia e a lembrança dos livros, de medo que me modifiquem o estilo; aliás os bons autores muito me desanimam e quebram a coragem. Copio de bom grado aquele pintor que tendo pintado miseravelmente galos proibia a seus servidores trouxessem galos de verdade a seu atelier…

« Por isso mesmo, escrevo propositadamente em minha casa situada em país selvagem onde ninguém me ajuda nem me corrige, onde não freqüento em geral pessoa alguma que entenda mais do que o padre-nosso em latim e muito menos em francês. Faria melhor obra alhures, mas ela seria menos minha; ora seu fim principal e sua qualidade estão exatamente em ser ela inteiramente minha. De bom grado corrigiria nela qualquer erro acidental, de que está cheia porque corro inadvertidamente, mas as imperfeições que me são naturais e constantes fora traição extirpá-las…»

Ensaios – Livro III, Capítulo 5, de Michel de Montaigne

Dostoiévski descreve o dia de sua (quase) execução em “O Idiota”

Fiodor Dostoiévski

« — Feliz? O senhor sabe como ser feliz? — exclamou Agláia. — E tem a coragem de dizer que não sabe se aprendeu a ver as coisas? O senhor pode até nos ensinar!– Então, ensine! — riu Adelaída.

— Eu não posso ensinar nada. — E o príncipe também riu. — Passei quase todo o tempo que estive no estrangeiro, na mesma aldeia, uma aldeia suíça. Raramente fazia excursões e, essas mesmo, ali por perto. Que lhes hei de eu pois ensinar? No começo fui ficando menos obtuso e logo comecei a ficar mais forte. E pouco a pouco cada dia foi se tornando mais precioso para mim, à medida que o tempo ia passando e eu me dava conta disso direitinho. Deitava-me feliz e mais feliz me levantava. Explicar-lhes, porém, por que, não sei.

— Então não sentia vontade de sair? De ir a algum lugar? — perguntou Aleksándra.

— No começo, bem no começo, tive, sim. E até me tornei agitado. Estava continuadamente preocupado com a vida que devia levar. Queria saber que era que a vida me tinha reservado. Ficava intoleravelmente ansioso, às vezes. A solidão, as senhoras sabem, dá isso. Havia lá uma pequena cascata. Era um fio de água, muito delgado, quase perpendicular, que se despenhava da montanha, espumoso, branco, espargindo gotículas em volta. Apesar de cair de uma grande altura não dava a impressão de ser alta. Estava longe de meia verstá, mas parecia estar a uns cinqüenta passos. A noite gostava de ouvir o seu barulho. Em tais momentos eu estava sempre dominado por uma grande angústia. Às vezes, também, eu pasmava a encarar as geleiras ao meio-dia, sozinho, a meio caminho do cume da montanha, cercado por imensos pinheirais resinosos. Na crista da rocha, um castelo medieval em ruínas; lá embaixo, ao longe, no vale, a nossa pequenina aldeia, tenuemente visível; muita claridade solar; amplo céu azul. E um terrível silêncio. Então eu sentia que alguma coisa estava me subjugando e ficava a imaginar que se fosse andando sempre, até bem longe, sempre para diante, até alcançar aquela linha onde o céu e a terra se encontram e se tocam, então, lá sim, é que eu acharia a chave do mistério. Lá é que eu veria uma vida mil vezes mais rica e turbulenta do que a nossa. Sonhava com uma grande cidade, como Nápoles, por exemplo, cheia de palácios, ruídos, bramidos e vida. Sim; não sonhava pouco!… E depois concluía que até em uma prisão se pode encontrar uma vida afortunada!…

— Já li essa sua última reflexão, aliás tão edificante, no meu livro de leituras, quando eu tinha doze anos — desconcertou-o Agláia.

E Aleksándra disse:

— Isso tudo é filosofia. O senhor é um filósofo e, quem sabe? Talvez tenha chegado aqui para ensinar.

— Talvez tenha razão — sorriu o príncipe — talvez seja eu um filósofo e saiba ensinar a pensar… É bem possível; é verdade. Talvez seja assim.

— E a sua filosofia é como a de Evlámpia Nikoláievna — interpôs Agláia.

— Trata-se da viúva de um funcionário público que vem ver-nos mais como parenta pobre. Viver barato é o seu único objetivo na vida. Viver tão singelamente quão possível for, mas não fala senão de dinheiro. E tem dinheiro. É uma simuladora. É como a riqueza da vida do senhor dentro de uma prisão. Ou como os seus quatro anos de felicidade nos vales que o senhor trocaria por Nápoles. E olhe lá que teria ganho na troca, embora fosse um lucrozinho à-toa.

— Pode haver duas opiniões a respeito de prisão — sentenciou o príncipe.

— Certo homem que viveu doze anos em uma prisão me disse uma coisa, depois. Ele era, como eu, um dos clientes do meu professor. Também tinha ataques e, às vezes, ficava excitado; chorava, queria matar-se. A sua vida na cadeia foi uma vida miserável asseguro-lhes, mas não, absolutamente, sem sentido. Imaginem que seus únicos amigos eram uma aranha e uma árvore que crescia debaixo da sua janela gradeada. Mas o melhor é deixar de lado este caso e lhes contar como vim a encontrar, no ano passado, um outro homem [o próprio Dostoiévski] em cuja vida houve uma circunstância bem estranha, pelo fato de ser daquelas que raramente acontecem. Esse homem fora, uma vez, conduzido com mais outros ao cadafalso, levado por uma sentença de morte. Ia ser fuzilado por causa de uma ofensa política. Vinte minutos mais tarde, porém, lhe era lida a comutação da pena de morte pela de degredo. Todavia, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos, ou talvez um quarto de hora, teve ele a convicção firme de que ia morrer. Sempre o escutei sequiosamente, quando se punha a recordar as sensações dessa ocasião e, muitas vezes, depois, eu o interrogava a respeito. Lembrava-se de tudo com perfeita exatidão e costumava dizer que lhe era impossível esquecer aqueles vinte minutos. A vinte passos do cadafalso, a cuja volta soldadesca e povaréu permaneciam, havia três postes fincados no chão, pois se tratava de vários condenados. Os três primeiros foram conduzidos até aos postes e amarrados, com a túnica dos condenados (um camisolão branco), os capuzes puxados bem por sobre os olhos para que nada vissem, sendo que então uma companhia de vários soldados se postou diante de cada poste. O meu amigo era o oitavo da lista e portanto tinha de ser um dos do terceiro turno. O padre se acercou de cada um, com a cruz. Ele só dispunha de cinco minutos mais para viver. Contou-me que aqueles cinco minutos lhe pareceram um infinito e vasto tesouro. Sentia tantas vidas naqueles cinco minutos que não precisava se incomodar com o último momento, tanto mais que havia subdividido o seu tempo da seguinte maneira: dois minutos para se despedir dos companheiros. Outros dois para o seu último pensamento geral. E, depois, o último, o quinto, para olhar em redor de si pela derradeira vez. Lembrava-se muito bem dessa extravagante subdivisão do seu tempo. Ia morrer aos vinte e sete anos, moço, forte e em plena saúde. Ao se despedir dos camaradas ocorreu-lhe perguntar a um deles qualquer coisa inadequada à circunstância, e achou muito curiosa a resposta. Após as despedidas, vieram os tais dois minutos que reservara para pensar em si mesmo. Sabia de antemão em que devia pensar. Desejava atinar, da maneira mais clara e pronta possível, como é que estava existindo agora, isto é, vivendo, e como é que dentro de três minutos seria qualquer outra coisa, alguém ou nada! E isso, como e onde? Resolvera solucionar tudo, de vez, naqueles dois únicos e últimos minutos. Não longe dali havia uma igreja cuja cúpula dourada cintilava aos raios solares. Como se lembrava de se ter posto a fixar, fascinado, aquela cúpula fulgurante de luz! Não podia tirar os olhos de lá! Era como se aqueles raios fossem já a sua outra futura natureza, visto como, dentro de três minutos, ele de um certo modo se iria fundir neles… A incerteza e um como que sentimento de pavor pelo mistério em que já estava quase ingressando foram terríveis. Disse-me, porém, que nada foi tão cruel naquele momento como este contínuo pensamento em forma de interrogação: “E se eu não morrer? Se eu for devolvido à vida? Ah! Que eternidade! Tudo seria meu! Eu transformaria cada minuto em outras tantas eternidades! Não desperdiçaria um segundo sequer! Contaria cada minuto que fosse passando, sem desperdiçar um único!” Disse-me que esta idéia lhe veio com tal furor, que desejou ser imediatamente fuzilado, logo, logo!…

Subitamente, Míchkin interrompeu o que estava contando. E elas ficaram à espera de que ele prosseguisse e tirasse qualquer conclusão.

— Acabou? — perguntou Agláia.

— Como?! Ah! Sim — disse Míchkin, despertando de um sonho momentâneo.

— Mas, para que nos contou esta história?

— É que qualquer coisa em nossa conversa me fez recordá-la…

— O senhor fala muito abruptamente… — observou Aleksándra. — Provavelmente quis dizer, príncipe, que nenhum momento da vida deve ser considerado como insignificante e que, muitas vezes, cinco minutos são um precioso tesouro. Isto tudo é muito louvável; mas deixe que lhe pergunte, já que esse amigo que contou tais horrores foi perdoado e teve a pena comutada, havendo sido presenteado portanto com essa “eternidade de vida”. Que fez ele dessa riqueza, depois? Viveu, de fato, contando cada minuto?

— Qual nada! Disse-me depois. Eu também tive curiosidade em saber e perguntei. Muito pelo contrário: perdeu muitos e muitos minutos.

— Ainda bem que isso prova que é impossível viver “contando cada minuto”. Por algum motivo é isso impossível.

— Sim, alguma razão deve haver — confirmou o príncipe. — Também eu penso assim e, no entanto, não acredito que…

— Acha então que vive mais sabiamente do que qualquer outro? — indagou Agláia.

— Sim, muitas vezes julgo assim.

— E não muda de opinião?

— Penso sempre do mesmo modo.

Até então estivera contemplando Agláia com um sorriso gentil e tímido. Mas ao fazer tal afirmativa deu uma risada, passando a olhá-la com jovialidade.

— Isso é que é ser modesto…

O tom da voz de Agláia tendia para a irritação.

— Gosto de ver moças corajosas. Conto-lhes uma destas e não se impressionam! Pois eu fiquei estarrecido com o que esse homem me contou… Essa coisa de dividir os seus últimos cinco minutos… Palavra, tenho até sonhado com essa história… »
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O Idiota, de Fiodor Dostoiévski (1821-1881).

Alfred Hitchcock: “Trocadilhos são a mais alta forma de literatura”

Desculpe, sem legendas, mas — como Hitchcock fala bem pausadamente — você irá entender.

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