palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Uma babá feia. Bem feia.

A babá

Minha mãe, que continua se informando principalmente pelo rádio, veio me contar uma dessas notícias que, segundo ela, caso fossem impressas num jornal, não serviriam sequer para forrar uma gaiola de hamsters pouco asseados. Dizia respeito a uma viagem feita pelo marido da bela Gisela Bündchen, o tal do Tom jogador de futebol gostosão, em companhia do Ben Affleck, ator da mesma estirpe. Por alguma razão, não entendi direito, eles viajavam com uma babá. Bom, isso me leva a crer que talvez houvesse crianças na viagem — ou não, filmes pornôs indicam que a presença de crianças não é estritamente necessária à presença de babás. Enfim. O caso é que os dois gostosões ricos casados com gostosonas famosas — Ben Affleck é casado com alguma gostosona famosa? não sei, mas não perderei meu tempo no Google por conta disso —, os dois acabaram convidando a babá, que deveria ter ficado em New York, a ir com eles até Los Angeles. (E por isso imagino que não estivessem de carro, Los Angeles não é logo ali.) E a babá, gostosona (obviamente), aceitou o convite, e então… ninguém sabe. Suruba? Ménages? Baby sitting? Sitting no colo de alguém? Em dois colos? Sei lá, mas parece que uma das esposas gostosonas, ou ambas, ficaram P da vida e alguém já está falando em divórcio. Parece que há um papo sobre ganhar alguma coisa com uma bola murcha… sei lá, me desculpe, mãe, minha atenção a esses assuntos não vai tão longe. E só estou contando tudo isso porque, ao final, minha mãe disse:
— Se a Gisele Bündchen tivesse lido sua história da Hilda Hilst e da empregada feia, não estaria nessa agora. A Hilda tinha toda a razão. E também deve ser horrível ser uma pessoa famosa. Todo mundo atrás dessas picuinhas ridículas. Ainda bem que você e suas irmãs não são famosos…
Para quem não o leu, minha mãe se referia ao relato “Precisa-se de empregada feia. Bem feia“. Leia-o antes que você caia na mesma situação, querida leitora.

Procura-se empregada feia. Bem feia.

Em 2000, na Casa do Sol, ficamos alguns meses em apuros ou, como dizíamos, no mato com oitenta cachorros mas sem nenhuma empregada doméstica. Não me lembro exatamente por que Hilda Hilst havia demitido a anterior, mas, salvo engano, creio que tinha algo a ver com a qualidade do café feito por ela. Qual a importância do café? Ora, uma casa cheia de escritores é praticamente movida à cafeína. Naquela época, além da própria Hilda, morávamos lá eu, Zé Luis Mora Fuentes e Bruno Tolentino. Ficou arranjado que, se Mora Fuentes fosse a São Paulo, Chico, o caseiro, prepararia as refeições da Hilda e eu, a dos demais. Com Mora Fuentes presente, ele decidiria o que cozinhar e quem iria ajudá-lo. Eu, Chico e Mora Fuentes também dividíamos as tarefas de lavagem das roupas e da louça. Antônio Ramos, secretário do Bruno, lavava as roupas deles e, marceneiro de profissão, prosseguia com a reforma das portas, das janelas e do forro da casa. Chico continuava a cargo dos canis e seu Jaime, do jardim. Hilda, que não sabia sequer fritar ovos, e Bruno, que não estava bem de saúde, continuariam suas leituras e escritos. Limpezas gerais só ocorreriam em casos de extrema necessidade, e isto significava: ficaríamos mergulhados em pó e poeira por muito tempo. Em suma, após aproveitar um refúgio literário cheio de regalias, eu me vi numa situação digna de república estudantil, onde cada um acaba se dedicando mais ao trabalho braçal do que aos estudos.

— Carne com batata de novo?

Era Antônio, reclamando mais uma vez dos meus dotes culinários. Sim, certa feita, durante os quinze dias de ausência do Mora Fuentes, que era metido a mestre cuca, fiz uma panelada de carne moída com batata para durar a semana inteira. Parecia ração de quartel.

— Antônio — eu retrucava — você foi morador de rua, eufemismo pra mendigo, e ainda está reclamando da minha comida? Você passou fome, meu.

— Eu sei, Yuri, desculpa. Mas não estou conseguindo explicar isso pro meu estômago.

Com o correr dos dias, a coisa tornou-se mais complicada. Sem uma agenda, tudo estava entregue ao acaso. Ninguém mais acertava sua vez de fazer o café — o que sempre resultava numa garrafa térmica vazia e no mau humor da Hilda — ou atinava se havia algum perigo em beber vinho do Porto antes de lavar pratos ou descascar batatas. E havia, como acabamos por descobrir. Chico estava particularmente tenso, pois, mesmo antes das novas tarefas, os cães já o deixavam sobrecarregado. Sim, era preciso contratar urgentemente uma nova empregada.

— Zé, você já encontrou alguém? — perguntava Hilda a Mora Fuentes, que, sendo um transplantado, recém retornara de suas visitas periódicas ao médico.

— Ai, Hilda, ainda não. Mas já liguei pra várias pessoas e a Inês também está ajudando.

Inês Parada era nossa vizinha e morava na casa que pertencera a Bedecilda Vaz Cardoso, mãe de Hilda. Aquela bela residência havia sido a antiga sede de uma próspera fazenda cafeeira. Mas Inês tampouco vinha obtendo sucesso na tarefa incumbida: nada de candidatas à função!

Duas ou três semanas mais tarde, a confusão já era tanta que, num belo dia, Bruno Tolentino anunciou que deixaria Antônio conosco para se refugiar por algum tempo no Rio de Janeiro. Disse que se hospedaria com sua antiga babá, fato esse que achei bastante curioso: um homem com mais de sessenta anos hospedado com sua própria babá! E Bruno falava dela com imenso carinho, como se falasse da própria mãe. E ele, aliás, apesar de excluído das tarefas, já havia contribuído na cozinha com pelo menos quatro feijoadas, as quais ia preparando — “corta a couve mais fininha, Yuri!” — enquanto nos narrava inúmeros “causos”.

— Vai ficar muito tempo no Rio, Bruno?

— Umas duas semanas. Assim o Antônio aproveitará para restaurar o forro do nosso quarto. Não estou com saúde para respirar esse pó de serragem.

Foi numa dessas semanas de ausência do Tolentino que recebemos o telefonema de um aluno da Oficina de Roteiristas da TV Globo. Hilda me passou o telefone e me pediu para descobrir o que ele queria, já que o sujeito falava sofregamente sem nunca chegar ao busílis, o que muito a irritava. Odiava gente “vaselina”.

— Ele quer vir te visitar com uma amiga, Hilda.

— Hoje?

— Sim. Agora à tarde.

— Mas a gente não tem empregada, Yuri.

Sorri: — Deixa que eu faço o café, senhora H.

Uma hora mais tarde, eu estava justamente aguardando a água entrar em ebulição quando ouvi um carro adentrar a chácara. Os cães, como sempre, ficaram em polvorosa. Imagino que Mora Fuentes tenha ido recebê-los à porta enquanto Hilda, como de costume, os aguardava na sala de TV. Menos de um minuto depois, ouvi vozes e, de repente, Chico veio da sala para a cozinha, os olhos esbugalhados.

— O que foi, Chico?

— Yuri do céu!

— O que aconteceu, Chico?! Fala logo.

— Minino di Deus!! — exclamou novamente em voz baixa e, em seguida, ignorando-me, saiu pela porta dos fundos na direção do canil.

Ai, ai, pensei comigo. Está me cheirando a mais problemas.

Foi então a vez de Mora Fuentes abrir a porta da sala, meter a cabeça na cozinha e indagar:

— Já tá pronto, Yuri?

— Terminando, Zé — e, ao olhar para ele, notei que estava lívido, os olhos tão arregalados quanto os do Chico.

— Que cara é essa, Zé? O que vocês estão fazendo aí?

— Ai, Yuri… — e suspirou longamente, desaparecendo em seguida.

A situação era bem estranha. O que estaria acontecendo? Peguei a garrafa térmica, coloquei as xícaras numa bandeja e me dirigi à sala. O tal roteirista era um sujeito baixo, gordinho e vestia paletó e gravata. A tal amiga que o acompanhava era… seria possível? Grace Kelly?!! Sim, Grace Kelly esculpida em carrara… Mas… caramba! Grace Kelly já habitava outra morada do universo havia anos!

— Boa tarde — eu disse. — Olá, olá.

— Este é meu amigo Yuri, jovem escritor — apresentou-me Hilda.

Eles me cumprimentaram e, sem perder tempo, o roteirista meteu-se a falar detalhadamente do roteiro de longa-metragem que tinha em mãos, o qual, fez questão de ressaltar, permaneceria conosco para que dele extraíssemos uma opinião crítica. Hilda olhava para Mora Fuentes com a clara intenção de transferir-lhe a incumbência, mas este, em vez de olhar para mim tencionando fazer o mesmo hierarquia abaixo, estava tão em órbita quanto eu. Só me lembro até aí. Não sei mais o que o gordinho falou. Roteiro? Que roteiro? A beleza daquela mulher, uma catarinense chamada Irene, era opressiva, dolorida até. Desandava qualquer veleidade de dar atenção a outro ser humano circundante. Na verdade, chamá-la de Grace Kelly era como xingá-la de canhão ou capivara. Quem sabe, após uma hipotética noitada regada a litros de álcool, curtindo olheiras enormes, com rosto e olhos muito inchados, e isso, claro, depois de apanhar na rua a ponto de se desfigurar, só então Irene devesse acordar tão quasímoda, feia e torta quanto… a Grace Kelly. Talvez, se ela batesse uma bicicleta de frente com um caminhão, sim, talvez assim ficasse parecida com a Grace Kelly. Ela era muito mais linda, tipo a irmã que Grace Kelly teria invejado mortalmente. Meu Deus, Grace Kelly teria odiado aquela mulher! Jamais a deixaria hospedar-se em Mônaco. Já Hitchcock, claro, teria subido pelas paredes. Nem durante meus anos de sociedade num estúdio fotográfico de São Paulo eu vira uma modelo tão bela.

— Então você também é escritor?

E agora ela se dirigia a mim! Caí das alturas. Olhando em torno, notei que Hilda, Mora Fuentes e o tal roteirista haviam se deslocado até o escritório, onde o visitante certamente ganharia algum livro autografado. Eu e Irene estávamos sozinhos! Quanto tempo teria durado meu transe?

— Sim, sim — gaguejei. — Mas por enquanto só publiquei um livro.

— Nossa, que legal. Eu faço Letras na UNICAMP.

— Sério?! Letras?

Aquela senhorita de vestidinho de verão branco, seio conspícuo, longas pernas e rasteirinhas se levantou para pegar a garrafa térmica e percebi que, se estivesse de saltos, ficaria mais alta do que eu. Eu me adiantei e lhe servi o café.

— Desculpa pelo café mal feito, Irene. Estamos sem empregada faz uns dois meses. Tá difícil conseguir outra. Elas se assustam com a quantidade de cachorros e desaparecem no primeiro dia.

— É para morar aqui?

— Não necessariamente, mas, se for preciso, a gente pode liberar um quarto. Conhece alguém?

— Uê! Eu topo!

Foi minha vez de arregalar os olhos: — Você?! Trabalhar aqui?!!

— Por que não? É a Casa do Sol! Eu faria qualquer coisa pela Hilda e por vocês. E eu adoro cachorros! Sem falar que dá para ir até a UNICAMP de bicicleta.

Aquela foi a idéia mais genial, mais espetacular daquele ano. Eu me segurei para não dar pulos como quem comemora um gol da seleção.

— Mas… e o seu namorado? Não vai reclamar?

— Quem? Esse cara aí? Não é meu namorado, não. Eu conheci ele hoje na UNICAMP. Ele veio do Rio de Janeiro. Foi até a faculdade perguntar se alguém sabia onde a Hilda Hilst morava e eu me ofereci para trazê-lo. Eu sabia o endereço mas nunca tive coragem de vir aqui.

O rapport fora estabelecido. Conversamos animadamente por vários minutos. Rolou uma química, digamos. Sorrisos e olhares daqui e de lá. Contei-lhe rapidamente dois ou três casos engraçados sobre a Casa. Rimos. Ela me falou de Santa Catarina e de Florianópolis, sobre como era solitário estudar em outra cidade. Anotei o telefone dela num pedaço de papel. Eu não via a hora de contar a novidade aos demais. Irene, Irene… Coitada da Grace Kelly!
Meia hora depois, Mora Fuentes retornou do escritório com o roteirista e ficamos os quatro conversando amenidades. Hilda permaneceu no escritório, provavelmente entediada com o papo melífluo do visitante. A certa altura, Antônio me chamou da porta que dá para o átrio. Fui até lá.

— Yuri, o Chico me disse que tem uma deusa aí na sala.

— Cara…

— Então é verdade?

— É. E tem mais: ela vai ser a nova empregada!

— O quê? Tá brincando!

— Verdade.

— Viu ela, Antônio? — perguntou Chico, vindo dos fundos.

— Ela vai ser a empregada, Chico!

— Ôxe! — exclamou ele, espantado. — Ces tão maluco?

Eu ri: — Maluco por quê, Chico?

— Isso vai dá briga de faca, moço. Já vou até amolá minha peixeira.

— Como assim, Chico? — perguntei, rindo.

— Esse monte de cabra soltero em casa! Isto aqui não é mostero, não. Até o Zé se arrupiô todim quando viu ela.

Antônio interveio: — Chico, eu sou foragido da polícia e ex-morador de rua. Você é caseiro e analfabeto. Ela é muita areia pro nosso caminhão. O Bruno tem aids e, por causa disso, diz que já deu um fora até na Vera Fischer. O Mora Fuentes é comprometido. Deixa que o Yuri toma conta dela.

— O quê? Tá doido, Antonho?! Ela num vai ser a empregada? Então, empregada tá é no mesmo nível que eu, diacho.
Rimos. De fato, ali estava um bom motivo para uma briga de faca. Seria uma boa idéia repassar mentalmente minhas aulas de maculelê. Talvez fossem finalmente úteis.

Voltei então à sala, onde conversamos mais alguns minutos. Irene me tratava com uma intimidade natural e cálida que só augurava felizes tempos vindouros. Se ela tivesse permanecido conosco mais meia hora, eu teria visualizado até mesmo as feições dos nossos futuros filhos.

Quando nossos visitantes se preparavam para partir, Irene, ao se despedir de mim, me disse ao ouvido:

— Yuri, só tem um problema: não sei fazer café!

Eu ri: — Eu te ensino! Eu mesmo só aprendi este ano, na noite do aniversário da Hilda. E, se você quiser, eu faço e a gente diz pra ela que foi você quem fez.

— Combinado! — e me devolveu aquele sorriso que teria enfartado Hitchcock.

Fomos todos até o alpendre, devo ter prometido ao roteirista que leria o roteiro dele — até hoje não sei se alguém o leu (quem mandou o cara trazer consigo semelhante fator de diversionismo?) — e, quando o carro se afastou em direção à rodovia Campinas-Mogi Mirim, eu disse ao Mora Fuentes.

— Zé, ela quer ser nossa empregada!

— Uma empregada linda que estuda Letras? Não acredito!

— Sério, cara!

— É minha! Eu vi primeiro! — disse ele, rindo. — Eu sou mais experiente, publiquei mais livros, vocês não são páreos para mim — e deu uma gargalhada de vilão de desenho animado. — Deixa só ela ficar sabendo que eu me correspondia com a Clarice Lispector!

Ouvindo nossas risadas, Hilda nos chamou do escritório:

— Do que é que vocês estão falando aí?

Fomos até lá. Hilda, sentada à mesa, óculos na ponta do nariz, cigarro entre os dedos, pegou um grande cristal de rocha e o utilizou para marcar a página do livro que vinha lendo.

— Hilda… — comecei, empolgado. — Já arranjamos uma nova empregada!

— Que bom, Yuri! Você falou com a Inês?

— Não, Hilda — atalhou Mora Fuentes. — É a Irene, ela vai trabalhar aqui.

Hilda franziu o cenho: — Irene? Que Irene?

— Essa garota que acabou de sair, Hilda! — respondi de pronto. — Ela disse que pode vir morar com a gente, disse que lava, passa, cozinha, borda e que, quando precisar, irá à UNICAMP de bicicleta.

Hilda retirou os óculos e se levantou de supetão: — O quê?! Nem pensar!!!

Eu e Mora Fuentes ficamos paralisados: seria possível que a irmã mais bonita da Grace Kelly já não seria nossa empregada? Ficamos mudos uns vinte segundos, apreciando o esfarelamento do nosso sonho.

— Por que não, Hildeta? — finalmente indagou Mora Fuentes, tão desconsolado quanto eu.

— Vocês ficaram loucos?! — perguntou, quase enfurecida. — Se essa mulher vier morar aqui, vocês vão me deixar apodrecer num canto e só vão reparar que estou morta quando eu começar a feder. Não, não… Nem pensar!

Então partimos para argumentos supostamente mais pragmáticos: discorremos sobre a dificuldade de se conseguir funcionárias que não temessem tantos cães, falamos de como Irene teria maior respeito e cuidado com todos nós, uma vez que se tratava duma leitora e estudiosa de literatura, falamos de sua simpatia e educação, e assim por diante. Hilda foi inabalável:

— A mulher desta casa sou eu! Quando falarem com a Inês, peçam para ela arranjar uma empregada feia. Bem feia. E chega de conversa!

Naquele momento, eu me lembrei do dia em que Hilda me convidou para morar na sua chácara. Na ocasião, ela dizia necessitar de um secretário e eu me lembrei de uma amiga, estudante de Letras na USP. Ao me oferecer para convidá-la, Hilda me censurou:

— Não, mulher não! Mulheres são chatas demais, só discutem besteiras. — E depois de uma pausa, acrescentou: — Por que não vem você morar aqui, Yuri?

Em suma, o nome da chácara era Casa do Sol, e não Casa dos Sóis. Só havia lugar ali para uma estrela, do contrário todo o sistema planetário entraria em colapso. Ao menos parecia ser esse o ponto de vista da senhora H, cuja decadência física se ressentia eventualmente da beleza de outras mulheres mais jovens. Ela, que décadas antes também fora uma linda mulher, tendo literalmente atraído as atenções de Marlon Brando, Dean Martin, Howard Hughes, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, não conseguia lidar muito bem com a novidade diária da velhice. Diante de visitas ocasionais, ela sabia disfarçar como ninguém, mas no dia-a-dia a história era outra. Os dias que se seguiram, por exemplo, à estréia de sua dentadura postiça foram aterrorizantes: dizendo que sentia ter “um cotovelo dentro da boca”, falou diversas vezes em suicídio. Claro, como Hilda tinha fé e realmente temia a Deus (principalmente depois do uísque), tudo não passou de drama. Mas que drama! Só quem a conheceu, ou leu seus livros, poderia fazer uma idéia da intensidade. Agora, cá entre nós, o pior de tudo não foi sua recusa em me deixar convidar Irene. O pior mesmo foi, no dia seguinte, enquanto lavava minha roupa, encontrar no bolso da minha calça jeans um pedaço de papel completamente derretido: o número do telefone de Irene não passava de um borrão! Na UNICAMP, ninguém soube me dar qualquer informação. Nunca mais a vi. Fugaz, a irmã mais bela de Grace Kelly passou por nosso sistema como um cometa, com sua cauda brilhante e inesquecível.

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Este relato fará parte do livro “O Exorcista na Casa do Sol”, a sair em breve.

Trânsito ideológico e um mantra canino

Esta noite sonhei que participava de uma reunião de amigos, numa casa desconhecida, e entre esses amigos estava a Carol Martins, que não vejo há muito tempo. Lá pelas tantas, ela se levantou do sofá, olhou em torno e se despediu dizendo: “Gente, preciso ir agora porque logo mais o trânsito estará muito ideológico”.

— Como assim ideológico, Carol? — perguntei, já achando aquele comentário genial.

— Ah, congestionamento, estresse, buzinas, xingamentos, barbeiros…

— E você faz parte dos motoristas conservadores ou dos progressistas?

— Não faço idéia — respondeu sorrindo.

— Você é do tipo que buzina para quem está na frente ou do tipo que ouve a buzina atrás?

— Ah, eu buzino. Então devo ser progressista, né, porque quero progredir pelas ruas e não me deixam!

— Ou então participa de buzinaços…— repliquei.

Só me lembro até aí. A partir de agora, chamarei o trânsito caótico de trânsito ideológico.

A Carol é a amiga a quem, na Casa do Sol, ensinei o mantra “li-li-la-lá-li-li-la-lá-li-li-la-lá-li-li-la-lá”. Lembro que Hilda Hilst a achou “chiquérrima, elegantíssima”. Ela ocupou o quarto de hóspedes cuja parede dos fundos dava para o primeiro canil.

— Carol, se os cachorros perceberem sua presença e começarem a latir à noite, repita esse mantra e eles ficarão sossegados — aconselhei.

Ela riu, mas insisti que era sério, que usasse o mantra.

Na manhã seguinte, ela estava impressionada:

— Yuri! Deu certo! Eles latiram de madrugada, eu comecei com o “li-li-la-lá-li-li-la-lá-li-li-la-lá-li-li-la-lá” e eles pararam. Onde você aprendeu isso? É algum tipo de mantra especial para cães?

— Não, Carol. É que no primeiro canil só há duas cadelas: a Lili e a Lalá.

Saudades das conversas engraçadas, Carol.

Homem também tem pêlo

Bete Coelho e Daniela Thomas

Em Junho de 1999, quando eu já morava na Casa do Sol havia quase nove meses, a atriz e diretora Bete Coelho e a figurinista e cenógrafa Daniela Thomas foram visitar Hilda Hilst. Ambas participavam do projeto de adaptação para teatro do livro O Caderno Rosa de Lori Lamby, cuja protagonista seria vivida por Iara Jamra. A peça, à qual assisti semanas mais tarde no Teatro N.Ex.T, no centro de São Paulo, ficou excelente, unindo na proporção ideal o humor e o horror deste que é o primeiro volume da Trilogia Erótica hilstiana. O sucesso ulterior da montagem, contudo, não impediu Hilda de indagar pela milésima vez:

— Por que ninguém se interessa em montar minhas peças? Por que só querem adaptar meus livros?

— Ai, Hilda! — suspirava ao telefone o amigo Mora Fuentes. — Quando você disser isso às moças, porque eu sei que você vai dizer, sua teimosa, não faça a reclamona, né. Você não está contente com o interesse delas pela Lori Lamby?

— Claro que sim, Zé. Elas são ótimas. Mas não é isso…

— Hilda — eu então dizia — quando suas peças forem publicadas, os diretores vão começar a montá-las. Muita gente nem sabe que você também é dramaturga.

— Faz trinta anos que as escrevi! Trinta anos!! — repetia, arregalando os olhos.

E foi mais ou menos nesse clima que, num dia frio e ensolarado, recebemos as visitas. Em ocasiões assim, Hilda fazia questão da minha presença, entre outras coisas, para ser sua memória recente auxiliar.

— Yuri, quem é mesmo o autor dessa biografia do James Joyce que estou lendo?

— Richard Ellmann, Hilda.

— É verdade. Só me vinha à cabeça Richard Francis Burton. Mas é óbvio que se tratava de outro Richard.

Ela vivia citando autores e livros e, como eu vinha organizando sua biblioteca, cabia a mim correr atrás dos mesmos, pois ela sempre queria ler um trecho ou outro para seu interlocutor. Vale lembrar também que, como toda figura pública, Hilda Hilst se transformava nesses contatos com leitores e fãs. No dia a dia, eu até me esquecia de que ela estava prestes a completar setenta anos de idade: conversávamos como se ambos tivéssemos dezesseis. Claro, não foi assim desde nosso primeiro contato. Nossa amizade foi evoluindo. Mas essa diferença entre o antes e o depois saltava aos meus olhos quando, em minha presença, outras pessoas a encontravam pela primeira vez: de repente, minha “amiga adolescente que se interessava pelas mesmas coisas que eu”, e que só vestia a carapuça de mestra quando eu dizia uma grande besteira, se transformava em quem realmente era: um colosso literário. Ninguém que a tenha conhecido em sua casa jamais esquecerá de sua presença marcante, de sua sinceridade sem papas na língua e de sua modéstia aristocrática. Quando as visitas iam embora, ela me perguntava:

— Como me saí? — e então sorria. Tinha plena consciência do teatro do mundo e de seu papel nele.

Recebemos o anúncio da portaria do condomínio e nos preparamos para recepcionar Bete Coelho e Daniela Thomas. Hilda decidiu recebê-las à mesa de jantar, diante da lareira, já que o escritório estava inusualmente frio. Chico, o caseiro, abriu o portão e o carro veio estacionar diante do alpendre. Os cães, obviamente, fizeram o escarcéu de sempre, rodeando o carro e aguardando as visitantes com todos os volumes e tons de latido. Eram cerca de quinze cães.

— Olá, tudo bem? — eu disse, recebendo Daniela à porta e lhe estendendo a mão.

— Oi — respondeu, ligeiramente ansiosa, aceitando o cumprimento e me encarando por trás das grossas armações dos óculos. Uns dez cães a rodeavam, os pequenos latiam estridentemente.

— A Bete não vai entrar? — perguntei.

— Ela não quer sair do carro! Morre de medo de cachorros.

Ih, lascou-se!, pensei com meus botões. Hilda jamais sairia de casa para conversar com alguém pela janela de um automóvel. Ela simplesmente não confiava em quem não se dava com animais. Meu lado diplomático começou a se preocupar: e se isso fizesse Hilda não dar sua benção à peça? Não, ela não cancelaria sua autorização, mas aquela situação poderia azedar o trabalho de alguma forma. Talvez até aproveitasse o episódio como desculpa para não ir assistir à montagem. Embora estivesse mantendo um bom diálogo com Iara Jamra, por quem sentia grande simpatia, antipatizar com a diretora, por causa dos cães, não resultaria em nada de bom.

Entramos e Daniela cumprimentou Hilda com efusão. Após os salamaleques, indiquei a cadeira para que se sentasse.

— Cadê a Bete? — perguntou Hilda, que até então exalava pura simpatia. Pronto, pensei, vai começar.

— Ela não quer sair do carro — respondeu Daniela. — Está com medo dos cachorros. Não imaginava que se agitariam tanto.

O semblante de Hilda anuviou-se:

— Ué. Pensei que ela quisesse muito conversar comigo.

— E quer. Mas…

— Eles só ficam agitados no início, Daniela — atalhei. — Olha só como eles já se acalmaram. Bastou você se sentar.

— Eu vou lá falar com ela — respondeu, levantando-se e pressentindo nuvens de tempestade.

Daniela saiu e Hilda me encarou, uma expressão desgostosa nos lábios.

— Era só o que faltava — resmungou.

Infelizmente os cães acompanharam Daniela e retomaram a balbúrdia, o que, claro, só iria contradizer seus argumentos. Bete Coelho certamente não estaria disposta a ser um coelho numa caçada inglesa. Hilda, concentrada e já visivelmente irritada, fumava seu Chanceller. Aguardamos em silêncio. Ao cabo de dois ou três minutos, Daniela retornou: sozinha!

— Desculpa, Hilda — começou, embaraçada. — Não adianta. Ela está mesmo com medo.

Como Hilda nada respondesse, e pelo andar da carruagem talvez já não dissesse mais nada, decidi ir testar meus próprios argumentos.

— Eu falo com ela.

Fui até o carro e dei umas duas batidinhas no vidro. Bete Coelho abriu a janela. Os cabelos curtos e muito negros deixavam sua pele ainda mais pálida.

— Oi, Bete. Meu nome é Yuri. Sou secretário da Hilda.

— Oi, Yuri. Ela está muito chateada comigo?

— Um pouco. Mas você não precisa ficar com medo dos cachorros. Eles latem muito apenas quando vêem a pessoa pela primeira vez. Depois se acostumam e ficam quietos. Nunca morderam ninguém.

— Eu sei. Eu entendo que seja assim. Mas é involuntário! Juro! Estou em conflito aqui. Quero sair, mas não consigo.

Seu olhar comprovava sua angústia. Ela chegara à Casa do Sol e não veria Hilda Hilst? Como era possível?

— Olha — propus — você pode vir comigo. Vem segurando no meu braço. Você vai confirmar que cão que late não morde.

— Obrigada, Yuri — retrucou, desconsolada. — Mas não vai dar. É um problema que tenho. Estou até tratando essa fobia com meu psicanalista.

Nesse momento, trinta milhões de neurônios modificaram suas sinapses em meu cérebro e uma lâmpada, que só eu vi, acendeu sobre minha cabeça. Justamente naquele mês, eu e Hilda estávamos lendo e discutindo o livro “A Negação da Morte”, de Ernest Becker. Nele, através principalmente de Otto Rank e Kierkegaard, Becker busca provar que só há uma maneira de escapar à neurose causada pela verdade de que todos morreremos um dia: voltar à transferência original. Na psicanálise, grosso modo, transferência seria o processo pelo qual confiamos nossa segurança psíquica a algo que nos ultrapassa, que nos transcende, a algo que esteja fora e acima de nós mesmos. Quando o bebê está mamando, sua mãe é a fonte e a mantenedora de toda a sua saúde mental. Ele transfere suas necessidades mais profundas para ela. Ali, em seus braços, não há neurose, não há medo, não há ameaças de destruição. Conforme a criança vai crescendo e se tornando um adulto, sua transferência vai sendo dirigida para outras pessoas ou coisas: para o pai, para um namorado, para um trabalho, para uma crença, para uma ideologia e assim por diante. Quanto mais incerto, mortal ou volúvel for o alvo de sua transferência, mais neurótica se tornará a pessoa e, por isso, de mais mentiras existenciais necessitará para não mergulhar na loucura de se ver apenas como um animal que em breve irá morrer. E não há ninguém que viva sem estar preso a esse processo, por mais inconsciente que seja, por mais que seja oculto o alvo de sua transferência. Daí o estado de verdadeiro “escândalo”, no sentido bíblico, isto é, de abalo da fé, quando tal alvo se desfaz no ar ou cai em desgraça. Nada explica melhor um crime passional, quando o marido, traído pela esposa, mata-a e em seguida dá um tiro na cabeça. Nada explica melhor o suicídio de nazistas que, de repente, descobrem que o Führer está morto. Becker, portanto, desenvolve seu pensamento até nos mostrar que a única transferência perene, indestrutível e legítima é aquela que tem Deus por alvo. Seria essa a transferência original. Enfim, eu olhava para Bete Coelho e me vinham à cabeça todas essas coisas. Mas é claro que eu não iria lhe dizer: “Tenha fé em Deus, Bete, e nada vai lhe acontecer”. Não. Vestida com roupas escuras e pálida como uma freqüentadora do Hell’s Club, que eu também freqüentei — sempre curti música eletrônica —, essa não parecia de modo algum a abordagem correta. O fato é que eu também sabia que, numa psicanálise, a terapia torna-se muito mais efetiva quando, entre paciente e psicanalista, ocorre a transferência, quando o psicanalista se torna a salvaguarda do equilíbrio psíquico do paciente. Portanto, eu me inclinei em sua direção, sorri e lhe disse:

— Bete, tenho certeza de que, se você conseguisse enfrentar essa fobia agora e, apesar de todos esses cachorros, fosse até a sala conversar com a Hilda, seu psicanalista ficaria muito orgulhoso de você… — e, tendo dito isso, dei-lhe as costas e voltei à sala.

— Cadê ela, Yuri? — perguntou Hilda.

— Já está vindo.

— Sério?

— Sério.

E, de fato, em menos de dois minutos, Bete Coelho surgiu à porta por si só, os olhos vidrados, direcionados para frente, evitando olhar para baixo. Os cães, que haviam me acompanhado, cercaram-na latindo muitíssimo, mas ela, rígida, corajosa, permaneceu como uma estátua, os braços colados ao corpo. Com passos curtos e cuidadosos, mais parecia se deslocar sobre rodinhas do que caminhar. Dirigiu-se então até Hilda, que se levantou e a abraçou.

— É um prazer, Hilda. Me desculpa.

— Não entendi esse pânico todo — repreendeu-a Hilda, num tom bem humorado. — Você por acaso também tem medo de homem? Homem também tem pêlo. Sabia?

Todos riram dessa observação e Bete Coelho se sentou na cadeira que lhe indiquei. As conversas prosseguiram de forma amena e, graças à bravura da atriz-diretora, que confirmou Sócrates, segundo o qual corajoso não é quem não sente medo, mas, sim, quem o sente e o enfrenta, semanas mais tarde a própria Hilda foi assistir à montagem de O caderno Rosa de Lori Lamby. Porque, sinceramente, caso a autora tivesse antipatizado com Bete, teria sido muito difícil para Mora Fuentes arrastá-la da Casa do Sol até o teatro. (Ah, vale lembrar que, além de pêlos, alguns homens também têm boas idéias.)

O náufrago e a náufraga

Cansado dos constantes atritos com a esposa, Júlio decidiu convidá-la a fazer um cruzeiro pelas ilhas do Pacífico: uma viagem daquele tipo, acreditava, poderia devolvê-los a um estado pós-Lua de Mel. Marilda ouviu a proposta, meditou por alguns momentos e a aceitou: talvez ele tivesse razão e novos ares iriam restaurar um relacionamento já tão gasto. Sim, no fundo, o problema que vinham enfrentando era o mais banal, o mais corriqueiro de todos: enquanto a esposa queixava-se da desatenção e do egoísmo do marido, ele, que era um argentino radicado no Brasil, ya estaba podrido com tantas reclamações: “Ela não me deja en paz! Vive pegando no meu pé!”.

— Comprei o pacote! Serán dos semanas en un navio! — anunciou Júlio, pouco antes do início das férias.

E, de fato, três semanas mais tarde, partiram. Os primeiros dois dias de viagem foram excelentes: assistiram ao pôr-do-sol do convés, jantaram à luz de velas, ouviram música ao vivo, dançaram e, no segundo dia, até mesmo transaram. Duas vezes! De manhã e à noite. Sim, parecia promissor.

— Foi a melhor idéia que você já teve, Júlio!

Mas, no terceiro dia, logo após Marilda reclamar da toalha molhada sobre a cama, as coisas começaram a desandar. Júlio já não conseguia ficar mais do que quinze minutos no camarote. Depois da toalha, ouviu sobre os chinelos, a “bagunça da mala”, a temperatura do ar-condicionado, sobre seu inútil “inglês de Tarzan”, como se o dela fosse melhor, e assim por diante. Sabia que, em seguida, seria o cigarro, a sunga, a roupa suja, a escova de dentes, o carregador do celular e quaisquer outros pretextos descobertos ao momento. Por mais que tentasse vigiar a si mesmo, ele sempre se surpreendia com os novos defeitos que a esposa encontrava nele. Marilda era extremamente detalhista: nada lhe escapava! Por isso, Júlio decidiu passar a maior parte do tempo ou no bar, ou à beira da piscina. E o pior: notou que a escolha entre esses dois lugares estava condicionada à presença da mulher mais linda que já vira na vida: uma loira totalmente Barbie, de olhos grandes, lábios fartos, nariz delicado e arrebitado, cabelos compridos, pernas longas, seio hipnótico, corpo longilíneo, uma verdadeira deusa. Se ela estava no bar, era ali que ele ficava. Se ela estava tomando sol, ele escolhia a piscina. Ficava admirando-a horas a fio por trás dos óculos escuros. No quinto dia, porém, ele percebeu que ela também o notara. E o mais incrível: quando o via, ela lhe sorria! Infelizmente, Júlio, que era mais baixo que a esposa, não tinha uma autoestima das melhores e, por isso, sentia-se incapaz de qualquer aproximação. É óbvio que aquela mulher, mais alta ainda que Marilda, devia ser uma modelo européia e jamais se interessaria por ele.

— Você está me evitando!! — berrou Marilda, na tarde do sétimo dia.

— Yo? Claro que não, cariño!

— Tá sim! E aposto que já está de olho em alguma sirigaita.

Como ele nada respondesse a essa acusação, a mulher, subindo nos tamancos, se enfureceu:

— Seu desgramado! Eu sabia!

E começou a lhe atirar todo objeto que estivesse ao alcance. O camarote se encheu de cacos e de coisas quebradas. Até o iPhone dele foi trincar-se de encontro à parede. Ao ver isso, Júlio, embora já fosse demasiado tarde, decidiu se defender:

— Marilda! Pelo amor de Dios! Você realmente acha que eu iria atrás de outra mulher logo neste cruzeiro? Eu vim aqui por sua causa! Por nossa causa!

— Eu te conheço muito bem! — esbravejou ela. — Se não foi atrás de ninguém, é só porque você morre de vergonha de ser baixinho!!

Ah, por essa ele não esperava. Desde que se conheceram, nove anos antes, ela jamais fizera qualquer alusão à diferença de altura entre eles. Por alguma razão inexplicável, talvez a intuição feminina, ela jamais se referira àquele fato, pois sentia que, se o fizesse, desencadearia um Armagedom. E foi justamente o que ocorreu:

— Cala essa boca! — berrou Júlio. — Cállate ahora!! Com quem você pensa que está falando?! El hombre aquí soy yo!

— Grande homem! — debochou a esposa, sorrindo sarcasticamente. Para quê… Júlio a tomou dos pulsos à força, puxou-a para si e, sob protestos e pedidos de socorro, deitou-a no colo e levantou-lhe a saia. Quando lhe deu a primeira e fortíssima palmada, chocados, de olhos arregalados, ouviram juntos o som de uma forte explosão. Ficaram paralisados, perdidos num limbo da realidade. Num primeiro momento, parecia que ele havia explodido a bunda dela com a palmada. Mas então veio o som de uma sirene e as luzes vermelhas. O navio adernou acentuadamente para a direita, derrubando-os da cama. Alguém gritou no corredor e, em seguida, pelos alto-falantes:

— Todos para o convés! O navio está afundando!

Apavorados e silenciosos, fugiram de mãos dadas pelo corredor, quase correndo pelas paredes. Os passageiros atropelavam-se, tomados pelo mesmo pânico. Por sorte, Júlio e Marilda estavam apenas um andar abaixo do convés, o qual alcançaram com relativa rapidez. Mas não foi o suficiente. Ninguém sabia o que estava ocorrendo, mas o céu azul, sem nuvens, a completa ausência de recifes ou corais, indicava que o acidente fora causado por algum vazamento de gás ou, quem sabe, até mesmo por uma bomba. O sol começava a esconder-se no horizonte. Sem sucesso, os marinheiros tentavam liberar os botes salva-vidas. Mas já era tarde, o rombo no casco certamente era enorme e, quando o casal deu por si, já estava dentro d’água. O navio desapareceu em menos de três minutos.

— Júlio!! — gritou Marilda, que nadava muito mal.

— Aqui! — tornou ele, que tentava subir sobre um grande baú de fibra de vidro.

Os passageiros e a tripulação se espalhavam pela superfície das águas, quase todos aos berros. Júlio não conseguiu afastar da mente a lembrança do filme Titanic: “Então foi assim”, pensava. Já sobre o baú, meteu os braços na água para levá-lo na direção dos gritos de Marilda.

— Marilda!!

— Aqui, Júlio! Aqui!!

Ele remou mais para a direita e a encontrou. Ao mesmo tempo, sentiu que alguém forçava o baú para o outro lado, tentando escalá-lo. Olhou naquela direção: era a belíssima loira.

— Help me, please! — disse ela, o olhar cheio de medo.

— Wait a second — respondeu e, já segurando as mãos de Marilda, tentava puxá-la para cima daquele salva-vidas improvisado. Contudo, por mais que se esforçasse, apenas fazia tombar o objeto.

— Vai logo, Júlio! — gritou então a esposa. — Será que nem pra isso você tem força?! Que droga de homem, viu.
Aquelas palavras converteram Júlio num iceberg. O iceberg que afundou Marilda. Sem esboçar qualquer sentimento, soltou-lhe as mãos e observou-a afundar no mar escuro:

— Adiós, Leonardo DiCaprio — disse o argentino à meia voz. E, voltando-se para o outro lado, deu as mãos para aquela beldade. Embora fosse mais alta, a mulher tinha corpo de modelo, era bem mais magra que sua esposa e, por isso, não houve maior dificuldade em puxá-la para cima do baú sem desestabilizá-lo. Juntos, remaram para longe do desastre, temendo que outras pessoas pudessem virá-los. Horas mais tarde, adormeceram um nos braços do outro, passando toda a noite assim. Na manhã seguinte, despertaram encalhados numa minúscula ilha deserta, dotada não mais que de cinco coqueiros.

Sete anos mais tarde, o novo veleiro da família Schürmann passava por ali. Heloísa, de pé no convés, apreciava o horizonte com um binóculo.

— Vilfredo! — gritou ela. — Acho que tem alguém pulando e gritando numa ilhota nesta direção.

— Deve estar pedindo ajuda. Pode ser um náufrago. Vamos lá.

O casal corrigiu a rota e rumou para o salvamento. Meia hora depois, ancoravam a uns cem metros da pequena praia. Na areia, distinguiram dois homens com longas barbas: um alto e loiro, e outro baixinho de cabelos castanhos. Apenas o mais alto pulava, gritando e agitando os braços, cheio de felicidade.

Vilfredo preparou o bote inflável e foi resgatá-los:

— O que aconteceu com vocês, meus amigos? — perguntou em inglês, assim que se encontraram.

— Nosso navio afundou anos atrás. Foi muito triste. Se não fosse pelo Júlio aqui, eu teria morrido.

Quando Vilfredo olhou para Júlio, notou que ele tinha a expressão mais triste deste mundo.

Fim.

Moral da história 1: Esposa, não encha tanto o saco do seu marido: num momento de crise, isso poderá até mesmo custar a sua vida.

Moral da história 2: Marido, por mais que ela o atormente, não seja desleal à sua esposa: do contrário, você poderá levar no rabo durante sete anos.

Moral da história 3: Travesti, nunca se esqueça de, numa viagem longa, levar um grande suprimento de hormônios femininos. Do contrário, caso você curta ser passivo, terá de se contentar em ser ativo: contra a vontade do outro parceiro…

São Paulo, a linguagem e os gritos das mulheres

Eugen Rosenstock-Huessy

(Eugen Rosenstock-Huessy)

Quase todas as civilizações não-cristãs preservam os sinais da irrupção da queixa legal e formal a partir de uivos e gritos naturais e animais. Espera-se que as mulheres contribuam com gritos selvagens, passionais e inarticulados de cego sentimento. Espera-se que os homens construam sobre esse estrato natural a estrutura da linguagem elevada e articulada. Tanto os ritos dionisíacos como os enlutados profissionais entre os judeus dos guetos poloneses cumprem ambas essas funções. As mulheres e as crianças gritam, choram, tremem; os homens agem e falam.
Tal divisão do trabalho parece provar que deparamos, aqui, com importante lei da história: um novo ritual, criado como vitória sobre um aspecto negativo da vida, consiste nos atos e gestos, sons e palavras pelos quais o aparecimento da ordem a partir do caos, da forma a partir da confusão, pode ser revivido todas as vezes que se executa o ritual. A situação negativa anterior torna-se parte do ritual, para que a solução positiva que se segue não fique incompreensível. Rituais cuja pré-história, cuja “irritação” deixa de ser compreensível não nos tocam. A reverência pelo poder humano de falar depende do nosso medo de submergir no estado animal. Em nosso meio, as mulheres podem manipular o discurso tanto quanto os homens. Mas no início de nossa era, e, como eu disse, fora do vital desabrochar cristão, esse não era e não é o caso. Nesses estratos, a espécie humana ainda está ocupada em representar o processo que vai do grito à fala, executando os procedimentos pelos quais essa emergência é alcançada.

O espírito procede, por um lado, na interação entre mulheres e crianças e, por outro, na interação dos homens. Esse é o significado do termo “processo do espírito”. A mente moderna não tem muito uso para esse termo criativo — ela poderia falar de “emergência desde o caos”. No entanto, a palavra “emergência” vai parar longe do ponto central do ritual. Emergimos da água, de um choque, de um feitiço, mas os elementos de que emergimos são deixados para trás. A emergência é um processo natural, e na natureza o indivíduo e o meio ambiente são vistos como entidades separadas. No ritual prevalece a atitude oposta: os gritos são transubstanciados, e a fala procede das origens mesmas: dos sons que compunham os gritos. Por milhares de anos, quando se cometia um assassínio, exigiu-se que os parentes do morto levassem o corpo ante os juizes. Na corte, a queixa era feita tanto pela lamentação das mulheres como pelas acusações verbais do parente mais próximo.

Esse dualismo tornou transparente o ‘concentus’ entre nossa natureza animal e nossa história formal. O homem primeiro gritou e depois falou, porque falar era o primeiro passo para longe do grito. Choros e gritos eram inseridos na cerimônia como medida da linguagem articulada. Tal interação na religião entre grito e nome, entre mulher e homem, representou a reconciliação entre nossa natureza animal e nossa natureza intelectual. Quando Paulo pediu que as mulheres fizessem silêncio na igreja, ele o fez num tempo em que era normal e esperado que as mulheres — as judias como as gentias — emitissem uivos e gritos terríveis, fossem sibilas e bacantes, chorassem passionalmente em cada funeral. Os modernos detratores de Paulo geralmente não têm a menor ideia do que estão atacando. Paulo tornou a linguagem formal acessível às mulheres, libertando-as do fardo do ritual pré-cristão em que derramavam cinzas sobre a cabeça, perfuravam os seios e emitiam longos e profundos gemidos durante muitos dias. Paulo estava diante de pessoas passionais que gaguejavam e tinham ataques ante a recente concessão de liberdade, pessoas que tinham sido obcecadas por espíritos e demônios de seu clã ou família.

A ‘taceat mulier’ [“Que a mulher se cale”] de Paulo lançou os fundamentos de uma nova verdade: de agora em diante, as mulheres poderiam participar da palavra, tanto quanto os homens. E sua ordem foi bem-sucedida. Já não receamos ouvir gritos histéricos na igreja. Nas reuniões religiosas, as mulheres comportam-se tão respeitosamente como os homens. E agora, as mulheres desprezam o reacionarismo de Paulo. Que elas se perguntem a si mesmas se, depois de Hitler, podem negar a existência da natureza animal do homem. Será impossível regredir à histeria? Será incompreensível um ritual que é oficiado pelo espírito e em que nós mesmos nos lamentamos de ter matado o filho de Deus? Se a “histeria” e a natureza animal tivessem desaparecido de todo, já não precisaríamos de ritual. Quando já não nascer nenhuma criança e a última geração viver para sempre, poderemos deixar de lado o ritual. O ritual insiste em que todas as nossas conquistas na história se fazem com base nos fundamentos elementares de nossa origem animal. Na história, portanto, não perdura nada que não seja incessantemente restabelecido. As línguas não “nascem”. O homem tem de aprender a falar, assim como tem de aprender a escrever. A fala da criança e a escrita do aluno não são senão pequenos fragmentos dos poderes conferidos ao homem pelo ritual tribal.

O ritual tribal comunicava religião, lei, escrita e fala. O ritual criou o tempo — como passado e futuro —, o poder — como liberdade e sucessão —, a ordem — como título e nome —, a expectativa — como cerimônia e vestuário —, a tradição — como canto fúnebre e mito do herói. O ritual ligou o homem ao tempo, e isso é expresso pelo termo “religião”. Dedicaremos uma seção especial à tragédia de tais “ligações”. Com efeito, as forças “ligantes” da religião tribal tornaram-se cruéis grilhões. Certamente não estou cego a essa crueldade. O melhor é sempre o berço da mais terrível corrupção. Mas, em primeiro lugar, a tribo deve ser avaliada positivamente, em sua grandeza, isto é, a grandeza de que, afinal, tenhamos aprendido a falar. Os evolucionistas não podem fazer justiça a essa grandeza, já que dão a linguagem por pressuposta. Quem vê emudecer todos os estratos da vida e tudo recair na estupidez ou na guerra civil, admira a realização graças à qual somos capazes de falar. É claro que o perpétuo pro-cessus por que os sons animais se podem transubstanciar em linguagem não foi nem é possível senão quando a alma inteira do homem, macho e fêmea, entra no pro-cessus. Não é importante senão aquilo para que tanto os homens como as mulheres contribuem.

Mas é exatamente esse o caráter do ritual. Ele baseia-se no choque de duas naturezas, a feminina e a masculina, e sobre essa base institui uma ordem que busca perpetuar-se. O ritual representa, incessantemente, a primeira vitória sobre a mudez. O ritual criou uma ordem duradoura, que ultrapassa em muito o momento.

À medida que percebemos a relação entre as horas sagradas do ritual e o longo futuro, podemos compreender outro aspecto da linguagem até agora incompreensível. Invariavelmente, as pessoas pensam que alguém um dia começou a chamar à cabeça “cabeça”, à mão “mão”, e que depois a palavra entrou no dicionário, e passou a ser usada por todos, e todos foram felizes para sempre. O oposto é o verdadeiro. Antes de nossa era, nenhuma palavra entrava em dicionário se não fosse usada em ritual. Então nenhuma palavra era palavra se não tivesse sido dita primeiramente como nome sagrado. Miosótis não eram “miosótis”, juncos não eram “juncos”, carvalhos não eram “carvalhos”, antes de o chefe ou o pajé se dirigirem a eles em ritual público e os convidarem a participar. As pessoas falavam com flores e animais, com fogo e água, com árvores e pedras num ritual, antes que qualquer um falasse deles. Assim, quando alguém falava com eles pela primeira vez em língua humana, recebiam nomes plenos e não palavras vazias.

Os filhotes e sua mãe podem apontar uma noz ou um graveto, podem gritar de alegria brincando com isto ou aquilo, lá e cá. Procuram, aqui e acolá, alimento, brinquedos e armas. Mas nenhum nome resulta de toda essa vida momentânea. O ritual é necessário para criar uma linguagem que atravesse cinquenta ou cento e cinquenta gerações. Essa linguagem é essencial para o ritual. O ritual está para o tempo assim como uma hora ou um dia estão para todo o passado, que o ritual revela com seus nomes, e para todo o futuro, que o ritual vela com seu vestuário cerimonial. O ritual era o mais demorado possível, porque ele encena o “para sempre e sempre”. O ritual cria, presumivelmente, uma ordem duradoura, que vai muito além do momento. A tarefa de formar uma taça de tempo de promessa e cumprimento parecia estupenda. A tribo podia celebrar durante três dias ou uma semana. Mas permanecia o fato de que as reuniões teriam de se dispersar mais cedo ou mais tarde; as pessoas precisavam voltar para casa. O ritual precisava compensar essa perda de continuidade e de presença física. A linguagem e o vestuário tornaram-se, então, os representantes do ritual para o tempo em que a tribo não estivesse reunida. A deficiência do ritual é que, comparados aos espaços de tempo que tenta abarcar, seus próprios procedimentos nunca são suficientemente longos. Em consequência, o ritual teve de criar representações duradouras. E foi tão bem-sucedido nisso, que ainda falamos línguas de seiscentos anos atrás. As línguas são imortais porque tinham por alvo a imortalidade!
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Trecho de “A Origem da Linguagem”, de Eugen Rosenstock-Huessy.

Outro “causo” do Bruno Tolentino

tolentino

Às vezes me vêm à lembrança algumas conversas marcantes que tive com o poeta Bruno Tolentino. Ele tinha o costume de pilheriar no tom mais sério e, caso o interlocutor não percebesse o humor clandestino, seguia em frente, como se nada tivesse acontecido. Sempre com a ironia mais fina, inglesa. E era assim com qualquer um, uma espécie de teste instantâneo de QI para conversações: se a pessoa risse, ele aprofundava a conversa; se não risse, ele ficava no raso. Contudo, quando tinha maior confiança no interlocutor, quando já havia amizade, Bruno levava seu ferrão escorpiano direto ao alvo. E eu, escorpiano mirim, dava gargalhadas com suas tiradas. Sim, em geral porque revelavam a mim mesmo meus próprios pensamentos não verbalizados — como quando, certa feita, na Casa do Sol, conversamos sobre um escritor que conhecíamos pessoalmente, o qual o havia presenteado com seu livro de contos.
— E então, Bruno? — indaguei, curioso. — Você gostou do livro? Ele escreve bem?
— Você já viu a cara da mulher dele? — replicou de pronto, causando-me um sorriso prévio de quem tenta adivinhar o que vem em seguida.
— Claro que já. Por quê?
— O ar de bruxa doida… Os olhos vazios… Sempre descabelada… Aqueles gritinhos à guisa de risos… O jeito de se sentar com as pernas abertas, o tronco encurvado… Reparou?
Eu ria: — Aham.
— E você já conversou com ela, Yuri?
— Já. Por quê?
— É uma tortura! Uma mesmice sem fim, um monte de chavões e besteiras. A mulher é a frivolidade em pessoa. Os olhos dela só brilham quando alguém fala em dinheiro.
— A Hilda me disse a mesma coisa — e ri novamente.
— Pois é — e calou-se. Ficou lá, concentrado, retirando os livros duma caixa de papelão. Eu ainda aguardava a resposta à minha pergunta inicial e… e nada. Ele havia se esquecido dela.
— Bruno — observei, ao fim de um longo minuto — você acabou não me dizendo se ele escreve bem ou não.
Ele então me encarou e sorriu escorpianamente:
— E você acha, Yuri, que alguém que escolhe se casar com uma mulher dessas saberia escolher as palavras certas para formar sequer uma boa frase?
(Estou rindo de novo.)

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