palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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Drummond e Pessoa: novas gravações

Adicionei mais algumas gravações — feitas por mim, claro — de textos e poemas de Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Não deixe de ouvir outras na página de áudio do blog.

Receita de Ano Novo, de Carlos Drummond de Andrade:

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Passagem das Horas (a), de Fernando Pessoa:

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  • [audio:http://yurivieira.com/downloads/audio/fpessoa_passagem2.mp3]

Minha pátria é a língua portuguesa, de Fernando Pessoa (Bernardo Soares):

Trecho do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa. (Gravado durante uma ressaca. Sim, prefiro gravar com voz de ressaca.)

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  • [audio:http://yurivieira.com/downloads/audio/minha_patria_fpessoa.mp3]

Last Day Dream (2009), de Chris Milk

Dizem que a vida inteira passa diante de nossos olhos à hora da morte…

Alguns poemas de Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos

O COVEIRO

Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: “Eterno companheiro
Da morte, quem matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Depois, tomando a enxada, gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
– “Ai, foi por isso que me fiz coveiro!”

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!
É o afrodístico leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,
Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetas células guarda!
Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

A ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!

AMOR E CRENÇA

Sabes que é Deus? Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?
Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?
Ah! Se queres saber a sua grandeza
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!
Deus é o Templo do Bem. Na altura imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a crença,
Ama, pois, crê em Deus e… sê bendita!

AMOR E RELIGIÃO

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! Quantos
Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!
No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o céu se alara.
E Deus lhe disse: “És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto.”

SONETO

A praça estava cheia. O condenado
Transpunha nobremente o cadafalso,
Puro do crime, isento de pecado,
Vítima augusta de indelével falso.

E na atitude do Crucificado,
O olhar azul pregado n’amplidão,
Pude rever naquele desgraçado
O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado
Se dispunha a vibrar sem compaixão
O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz – o criminoso – então,
Caiu na praça como fulminado
A soluçar: perdão, perdão, perdão!

ARIANA

Ela é o tipo perfeito da ariana.
Branca, nevada, púbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essência que de si dimana.

As níveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.

Dorme talvez. Em flácido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana.

Enquanto o amante pálido, a seu lado,
Medita, a fronte triste, o olhar velado,
No Mistério da Carne Soberana.

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Eu e Outras Poesias, de Augusto dos Anjos

O êxtase religioso de Murilo Mendes

Murilo Mendes

Contextualizando: em 1921, o poeta mineiro Murilo Mendes inicia uma profunda amizade com o pintor Ismael Nery, católico de linhagem “essencialista”, cunhada por ele mesmo sobre bases supostamente tomistas. Quando Nery, que exercia uma influência notável sobre o amigo poeta, faleceu, Murilo passou por uma catarse religiosa em pleno velório, que o levaria a se converter definitivamente ao Catolicismo. Pedro Nava, no livro de memórias “O Círio Perfeito”, relata assim o episódio ocorrido em 6 de abril de 1934:

“O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Nery e que ficou para sempre gravado na memória do Egon foi a conversão instantânea de Murilo Mendes. (…) Todos como que cochichavam, abafados pela solenidade do momento. De repente, uma fala começou a ser percebida. Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frases tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como uma discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos.

Era o Murilo bradando no escuro. Era uma espécie de arenga, com fluxos de onda – ora recuando e baixando, ora avançando, subindo e enchendo a noite com seus rebôos graves e seus ecos mais pontudos. Os do portão foram se aproximando numa curiosidade de roda estupefata e calada em cujo centro um Murilo, pálido de espanto ou como de um alumbramento, gesticulava e se debatia como se estivesse atracado por sombras invisíveis. Só ele as via e aos anjos e arcanjos que anunciava pelos nomes indesvendáveis que têm no Peito do Eterno ocultos para todos os mais. E soltava um encadeado de frases que no princípio fora só um cicio, que tomara corpo e dera naquela berro alucinado. O José Martinho logo segredou ao Egon:

– Isto é uma crise nervosa do Murilo. Vamos dar a ele um Gardenal e obrigá-lo a encostar-se um pouco. Onde é que você deixou o vidrinho?

– Está aqui comigo, no bolso… Deixa eu ir buscar um pouco de água.

O médico correu, mas quando voltou com o copo e o comprimido já na mão, ficou tão bestificado com a expressão do Murilo que recuou, colocou num peitoril a vasilha e o remédio e voltou para acompanhar o drama que se desenrolava dentro do amigo e tomava sua alma que nem avalanche.

Seus olhos agora cintilavam e dele todo desprendia-se a luminosidade do raio que o tocara. E não parava a catadupa de suas palavras todas altas e augustas como se ele estivesse envultado pelos profetas e pelas sibilas que estão misturados nos firmamentos da capela Sistina. Ele disse primeiro, longamente, de como sentia- se penetrado pela essência do Ismael Nery e seu espírito religioso. Falava dos anjos que estavam ali com ele – já não mais como as imagens poéticas que habitavam seus versos, mas dos que se incorporavam nele, que recebia também a alma do amigo morto.

Finalmente, Murilo clamou mais alto – DEUS! – e com a mão direita castigou o próprio peito e mais duramente o coração. Não, pensava o Egon, não é caso para Gardenal. O José Martinho está errado. O Murilo não está nervoso. O negócio é mais complexo… O que ele está é sendo arrebatado num êxtase e o que eu estou vendo é o que viram os acompanhantes na estrada de Damasco quando Saulo rolou do cavalo e foi fulminado pela luz suprema. É isto. Exista ou não essa luz e esse fogo – neles ou na sua impressão o Murilo acaba de encadear-se. Está se queimando todo nas chamas que descem como lavas do Coração paramonte de Jesus Cristo Nosso Senhor.

Quando subitamente calou-se, o poeta retomou o velório do amigo – sério como Moisés descendo do Sinai, e foi assim e sem dizer palavra mais que ele acompanhou o corpo ao cemitério. Deste saiu sozinho e foi direto procurar os monges nas catacumbas do Mosteiro São Bento. Quando, três dias depois, ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o homem desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e Lênin. Estava transformado no ser ponderoso, cheio de uma seriedade de pedra e no católico apostólico romano que seria até o fim de sua vida. Descrevera volta de cento e oitenta graus. Sua poesia tornara-se mais pura e trazia a mensagem secreta da face invisível dos satélites”.

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A Trama Poética de Murilo Mendes, de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Timponi Pereira Rodrigues. Editora Lacerda Editores, 2000. Páginas 88-89.

Recebi o texto acima de Rafael Guedes, que o transcreveu, e a quem muito agradeço. De fato, um registro marcante que vale a pena ser divulgado.

Almada Negreiros: «A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo»

Almada Negreiros (auto-retrato)

« A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo. Os iguais não se admiram entre si; confiam-se, ou melhor, são iguais.»

(…)

« Poesia é a vocação humana de não pôr parcialidade na Vida.»

(…)

« A Poesia conhece e não sabe.»

(…)

« Não fazer nada senão por pura simpatia. A simpatia é bastante. Nem amigos nem assuntos onde não esteja inteira a nossa simpatia. A simpatia tem, de fato, uma aparência agradável e é a única maneira de nos tornarmos invisíveis até chegados nós.»

(…)

« O saber é pouca coisa para quem conhece. O saber desencanta o mistério. O conhecimento vive cara a cara com o mistério.»

(…)

« Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.»

(…)

« Comprei um livro de filosofia.[…] Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?»

[Algumas notas que tomei, anos atrás, de um livro de Almada Negreiros (1893-1970), cujo título não guardei…]

 

A pintura mais conhecida de Almada Negreiros é este retrato de Fernando Pessoa:

Fernando Pessoa por Almada Negreiros

E seu desenho mais conhecido:

Fernando Pessoa por Almada Negreiros

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Uma palestra de Bruno Tolentino na UFRJ

O poeta Bruno Tolentino, que durante o ano de 1999 também morou na Casa do Sol (residência da escritora Hilda Hilst), tinha o costume — após encerrar seu trabalho diário no livro O Mundo como Idéia, que vinha finalizando —, de ir ou até o escritório da Hilda ou até meu quarto (que também era a biblioteca) e ficar até tarde da noite tecendo mil e um comentários sobre os mais diversos temas, principalmente literatura, filosofia, religião e política. (Digamos que tal ritual fazia parte da minha “pós-graduação desprovida do beneplácito do MEC”…)

Gostei de encontrar a palestra abaixo no You Tube porque ela, ao contrário de outras gravações que ouvi antes, apresenta Bruno exatamente como era nessas ocasiões: aberto, bem-humorado, brincalhão, brilhante, sagaz, sarcástico, erudito, tagarela…

A palestra, que a princípio trata da poesia de Vinicius de Moraes, está dividida em 12 partes (infelizmente há a intervenção inaudível de uma mulher nas últimas partes que irrita um bocado, mas não estraga o conjunto):

Mário Quintana e O Mundo de Deus

Mário Quintana

O Mundo de Deus

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na Lua é no fim de contas menos simplório do que os
primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar,
não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio, afinal, deve Ele
estar mesmo muito mais na Lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus
sem os homens”.

Caderno H (1973), de Mário Quintana.

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