palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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O Fim do Mundo

Em 1999, quando eu dirigia pela Marginal Tietê, via outdoors pretos enormes com os dizeres em branco: “Jesus está voltando”. Na mesma época, houve o Grande Apagão de Março, um evento impressionante, principalmente para quem ligou o rádio no momento mesmo em que ele ocorria: “houve uma explosão solar, o apagão é global”, etc. etc. Já no “sétimo mês”, em Julho, a OTAN − “o grande rei do terror”, segundo a propaganda sérvia − atacou nostradamicamente Belgrado.

Ainda no mesmo ano, tal como comento no meu livro “O Exorcista na Casa do Sol”, houve a noite em que a Hilda Hilst, depois de uns uísques, tentou me sacanear dizendo que o mundo já havia acabado e só sobráramos nós dois sentados numa réplica astral da sua sala de estar. Quando fiz cara de preocupado – “será que ela ficou gagá?” –, ela caiu na gargalhada.
Passei os réveillons de 1999, de 2000 e de 2001 em meio a gente cujo pensamento subjacente era: “Agora o mundo acaba”. Coisas de Alto Paraíso de Goiás, se é que me entendem… E, no entanto, depois de cada virada… nada. (Tudo isso sem mencionar a turma do Calendário Maia, que teve paciência até 2012.)

Enfim, parafraseando Louis Pauwels, o milenarismo apressadinho é uma doença cíclica do espírito. O interessante é que ele tem ressurgido nas bocas de alguns curiosos youtubers. Ora bolas, só Deus sabe o ano, o mês, a semana, o dia, a hora e o minuto. E ficar empolgado, acreditando que será um dos profetas ou uma das testemunhas desse acontecimento insigne, me soa como uma das coisas mais presunçosas do mundo.

O futuro do mundo

Pelo jeito, o futuro do mundo é este mesmo: a esquerda revolucionária desgraçará as sociedades e enfraquecerá todos os países, em seguida, aproveitando a resultante geléia anímica geral, o Islã dominará de cabo a rabo a Terra inteira, obviamente cortando as cabeças dos esquerdistas mimizentos, e, como cereja do bolo — já que todo mundo tem de quebrar a cara, incluindo os muçulmanos —, Jesus finalmente voltará. Fim.

Padre Antônio Vieira: os poderosos e o dia do Juízo

Leia abaixo a parte VIII do Sermão da Primeira Dominga do Advento (1955), no qual Padre Antônio Vieira admoesta os detentores do poder político e do poder eclesiástico: “Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação, e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança”.

VIII

Oh que grande mercê de Deus fôra, se hoje, que estamos na representação do mesmo dia do Juízo, o mesmo soberano juiz nos comunicara um raio daquela luz, para que víramos agora o que então havemos de ver, e com os pecados conhecidos nos presentáramos antes ao tribunal de sua misericórdia, que depois ao de sua justiça! Mas bendita seja a bondade do mesmo Senhor, que não só nos deixou comunicado na sua doutrina um raio daquela luz, senão três, se nós lhe não cerramos os olhos. Sendo a matéria de tudo o que passou para a vida, e não há de passar para a conta, tão imensa à capacidade humana, só a sabedoria divina a poderá compreender; e assim o fez Cristo Senhor Nosso, reduzindo-a, repartindo-a em três parábolas, nas quais nos ensinou em suma toda a conta que nos há de pedir, e de quê. A primeira parábola é dos ofícios, a segunda dos talentos, a terceira das dívidas. E este mesmo número e ordem seguiremos para maior distinção e clareza.

Quanto aos ofícios, diz a primeira parábola (que é a do Villico) que houve um homem rico, o qual deu a superintendência das suas herdades a um criado, com nome de administrador delas. E porque não teve boa informação de seus procedimentos, o chamou à sua presença, e lhe pediu conta, dizendo: Redde rationem villicationis tuae; jam enim non poteris villicare. Dai conta da vossa administração, porque desde esta hora estais excluído dela. Esta circunstância de ser a conta a última, e não se poder emendar, é uma das mais rigorosas do dia do Juízo. Vindo pois ao sentido da parábola: o homem rico é Deus; as suas herdades são as igrejas e as províncias; o administrador no espiritual é o papa, no temporal é o rei, e, abaixo destes dois supremos, todos os outros ministros eclesiásticos e seculares, que repartidamente têm inferior jurisdição sobre os mesmos súditos. A todos estes, pois, há de pedir Deus estreita conta, não só quanto às pessoas, senão também, e muito mais, quanto aos ofícios. Quanto à pessoa, há de dar cada um conta de si, e quanto aos ofícios, há de dar a mesma conta de todos aqueles que governou e lhe foram sujeitos. De sorte que o papa há de dar conta de toda a cristandade, o rei de toda a monarquia, o bispo de toda a diocese, o governador de toda a Província, o pároco de toda a freguesia, o magistrado de toda a cidade, e o cabeça da casa de toda a família. Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação, e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança.

Se é tão dificultoso dar boa conta da alma própria, que é uma, quão difícil e quão impossível será dá-la boa de tantas mil? Como é certo, que não temos fé, nem sabemos a que nos obriga! Vedes quantas almas há nesta cidade, quantas almas há nesta Província, quantas almas há em todo o reino? Pois sabei, se o ignorais, ou não advertis, que de todas essas almas hão de dar conta a Deus os que governam a cidade, a Província e o reino. Porque assim como sobre todos e cada um tem poder e mando, assim em todos e cada um são obrigados a lhes fazer guardar as leis, não só humanas, senão também as divinas. Não é isto encarecimento meu, senão doutrina sólida e de fé, pronunciada por boca de S. Paulo: Obedite praepositis vestris, et subjacete eis; ipsi enim pervigilant, quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Obedecei, diz o apóstolo, a vossos superiores e sede-lhes muito sujeitos, porque a sua obrigação é zelar e vigiar sobre as vossas vidas, como aqueles que hão de dar conta a Deus de vossas almas. Vede quanto maior é a sujeição dos superiores que a dos súditos. Quantos são os súditos que estão sujeitos ao superior, tantas são as almas de que está sujeito o superior a dar conta a Deus. E posto que este oráculo bastava para nenhum homem que tem fé querer tomar sobre si uma tal sujeição, ouvi agora o que nunca ouviste. Nem todas as sentenças de Cristo estão escritas no Evangelho, algumas ficaram somente impressas na tradição de seus discípulos, entre as quais é tão notável como terrível esta: Omne peccatum, quod remissus, et indisciplinatus admiserit frater, ad negligentem protinus revertitur seniarem. Quer dizer: todos os pecados que cometem os súditos, se escrevem e carregam logo no livro das culpas do superior, porque há de dar conta deles. De modo que segundo esta sentença e revelação do mesmo Cristo, todos os homicídios, todos os adultérios, todos os furtos, todos os sacrilégios e mais pecados que os vassalos cometem na vida e reinado de um rei, e as ovelhas e súditos na vida e governo de um prelado, todos estes pecados se lançam logo e escrevem nos livros de Deus, debaixo do título do tal rei e debaixo do título do tal prelado, para se lhes pedir conta deles, no dia do Juízo.

Ponhamos agora este rei, e depois poremos também este prelado diante do tribunal divino, e vejamos que respondem a estes cargos. O rei é a cabeça dos vassalos; e quem há de dar conta dos membros, senão a cabeça? O rei é a alma do reino; e quem há de dar conta do corpo, senão a alma? Pedirá, pois, conta Deus a qualquer rei, não digo dos pecados seus e da sua pessoa, senão dos alheios e do ofício. E que responderá já não rei, mas réu? Parece que poderá dizer: Eu, Senhor, bem conhecia que era obrigado a evitar os pecados dos meus vassalos, quanto me fosse possível, mas a minha corte era grande, o meu reino dilatado, a minha monarquia estendida pela África, pela Ásia e pela América; e como eu não podia estar em tantas partes, e tão distantes, na corte tinha provido os tribunais de presidentes e conselheiros, no reino de ministros de justiça e letras, nas conquistas de vice-reis e governadores, instruídos de regimentos muito justos e aprovados. E isto é tudo o que fiz e pude fazer. Também poderá meter nesta conta o seu próprio palácio, e aqueles de que se servia mais familiar e interiormente. Mas sobre todos cai a réplica. E estes que elegestes (dirá Deus) por que os elegestes? Não foram alguns por afeição, e outros por intercessão, e outros por adulação, e outros por ruim e apaixonada informação? E os que ficaram de fora com mais conhecido merecimento, por que os excluístes? Mas dado que todos fossem eleitos com os olhos em mim, e justamente, depois que na administração de seus ofícios conhecestes que não procediam como eram obrigados, por que os não removestes logo, por que os dissimulastes e conservastes, e, o que pior é, por que os despachastes de novo, e com mais autorizados postos? Se o que assolou uma Província o deixastes continuar na mesma assolação, e depois o promovestes a outro governo maior, como não fostes cúmplice das suas injustiças, e das culpas que ele em vez de remediar acrescentou com as suas, e com o exemplo delas? Se as suas tiranias vos foram manifestas, como as deixastes sem castigo, e os danos dos ofendidos sem restituição? Quantas lágrimas de órfãos, quantos gemidos de viúvas, quantos clamores de pobres chegavam ao céu no vosso reinado, porque para suprir superfluidades vãs, e doações inoficiosas, vossos ministros (por isso premiados e louvados) com impiedade mais que desumana, não os despojavam, mas despiam. Isto é o que poderá replicar Deus, emudecendo, e não tendo que responder o triste rei. E qual será a sua sentença? No dia do Juízo se ouvirá. O certo é que Davi, rei santo antes de pecador e depois de pecador exemplo de penitência, o que pedia perdão a Deus, era dos pecados ocultos e dos alheios: Ab occultis meis munda me, et ab alenis parce servo tuo. Mas os pecados ocultos naquele dia são manifestos, e dos alheios, por ter sido rei, se lhe pedirá tão estreita conta como dos próprios.

Entre agora o prelado a dar conta, e a ouvir em estátua o processo que depois da ressurreição lhe será notificado em carne. Oh que espetáculo será aparecer descoroado da mitra, e despido dos paramentos pontificiais diante da majestade de Cristo Jesus, aquele a quem o mesmo Senhor autorizou com o nome e poderes de seu vigário, e cuja humana e divina pessoa representou nesta vida! O pastor, et Idolum! lhe dirá Cristo: Tu que foste pastor no nome, e como ídolo te contentaste com a adoração exterior que não merecias, dá conta. Não ta peço das misérias ocultas, senão das públicas e escandalosas de tuas mal guardadas e desprezadas ovelhas. Eram miseráveis no temporal, e não trataste de remediar suas pobrezas, e eram muito mais miseráveis no espiritual, e não cuidaste de curar nem de preservar seus pecados. Se as rendas, que com tanta cobiça recolhias, e com tantas avarezas guardavas, eram o meu patrimônio, que eu adquiri, não menos que com o meu sangue, por que o não distribuíste aos meus verdadeiros credores, que são os pobres? Por que o dispendeste em carroças, criados e cavalos regulados, estando eles morrendo de fome, e em vestir as suas paredes de oiro e seda, andando eles despidos e tremendo de frio? Se o zelo de teus ministros visitava as vidas dos pequeninos, tratando mais de se aproveitar das condenações, que de lhes emendar as consciências; os pecados monstruosos dos grandes, que tão soberba e escandalosamente viviam na face do mundo, como os deixaste triunfar com perpétua imunidade, como se foram superiores às leis da minha Igreja?

Confesso, Senhor, responderá o prelado, que em uma e outra coisa faltei, mas não sem causa. O que dispendi com minha casa e pessoa foi para satisfazer aos olhos do vulgo, que só se leva destes exteriores, e para conservar a autoridade do ofício e veneração da dignidade. E se contra os pecados dos grandes me não atrevi, foi porque os seus poderes são inexpugnáveis; e julguei por menos inconveniente não entrar com eles em batalha, que com afronta e desprezo das mesmas leis da Igreja, ficar no fim da peleja vencido: e finalmente, Senhor em uma e outra omissão segui o exemplo universal, e o que usam neste ofício os que com mais poderosas armas, e com maiores jurisdições que a minha, costumam em toda a parte fazer o mesmo. Ó ignorante! ó covarde! replicará Cristo. Tão ignorante e covarde, como se não tiveras lido as Escrituras, nem os Cânones, e exemplos da mesma Igreja. Porventura Pedro, e Paulo, e os outros apóstolos que me imitaram a mim, e os seus verdadeiros sucessores, que os imitaram a eles, conciliavam a autoridade das pessoas e do ofício, ainda entre gentios, com os aparatos exteriores? Não sabes que esse mesmo povo, com cujos olhos te escusas, se por dares tudo aos pobres, te vissem desacompanhado, só, e a pé pelas ruas, e ainda com os pés descalços, então se ajoelhariam todos diante de ti, e te adorariam? E quanto à covardia de te não atreveres com os grandes, tendo a teu lado a espada de Pedro; contra quem se atrevia Davi, que foi o exemplar dos meus pastores? Entre as feras tomava-se com os leões, e entre os homens com os gigantes. Que fera mais fera que a imperatriz Eudóxia, e vê como a não temeu Crisóstomo; e que leão mais coroado que o imperador Teodósío, e vê como o humilhou e pôs a seus pés Ambrósio. Finalmente, se não seguiste o valor destes, senão o que chamas costume dos outros, agora verás em ti e neles, que se eles o costumam fazer assim, Eu também costumo mandar ao inferno os que assim o fazem. Isto baste quanto à conta dos ofícios, e tomem exemplo os ministros seculares na conta do rei, e os eclesiásticos na do prelado.

Stárietz Zossima: o mundo superior

Muitas coisas deste mundo nos são dissimuladas, mas em compensação Deus nos concedeu a misteriosa sensação do laço vivo que nos une ao outro mundo, o mundo celeste, superior; e, aliás, as próprias raízes dos nossos pensamentos e dos nossos sentimentos não estão em nós, porém em outra parte. E é por isso que os filósofos dizem que não se pode conhecer na terra a essência das coisas. Deus tomou sementes que pertenciam a outros mundos, semeou-as nesta terra e cultivou o seu jardim. O que podia germinar cresceu, mas tudo que se podia desenvolver não viveu senão graças ao sentimento do seu contato com outros mundos misteriosos; se esse sentimento enfraquece ou desaparece da tua alma, tudo o que floriu dentro de ti morrerá.

Stárietz Zossima em Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski.

As crianças sempre dizem: “de novo!”

Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, poderia ser verdade que o sol se levante regularmente por nunca se cansar de levantar-se. Sua rotina talvez se deva não à ausência de vida, mas a uma vida exuberante. O que quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com que se divertem de modo especial. Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: “Vamos de novo”; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia.

Mas talvez Deus seja forte o suficiente para exultar na monotonia. É possível que Deus todas as manhãs diga ao sol: “Vamos de novo”; e todas as noites à lua: “Vamos de novo”. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai é mais jovem do que nós. A repetição na natureza pode não ser mera recorrência; pode ser um bis teatral.

G.K. Chesterton, in Ortodoxia.

Chesterton: como discutir com um oponente

Aqui, neste momento, encontra-se talvez seu [de Santo Tomás de Aquino] único momento de paixão pessoal, com exceção daquela efusão solitária durante as dificuldades da sua juventude. E mais uma vez ele está lutando contra seus inimigos com uma tocha ardente. No entanto, mesmo neste isolado apocalipse de fúria, há uma frase que poderia ser recomendada às pessoas de todos os tempos que às vezes ficam irritadas por muito menos. Se há uma frase que poderia ser esculpida em mármore para representar a racionalidade mais calma e resistente, é a frase que surgiu juntamente com todo o resto desta lava derretida. Se há uma frase que passou para a história como típica de Tomás de Aquino, é a frase sobre o seu próprio argumento: “Não se baseia em documentos da fé, mas nas razões e nas afirmações dos próprios filósofos”. Que bom teria sido se todos os doutores ortodoxos da Igreja, quando enraivecidos, tivessem sido tão razoáveis quanto Aquino! Que bom seria se todos os apologistas cristãos se lembrassem daquela máxima e a escrevessem em letras grandes na parede antes de pregar ali suas teses. No auge da sua fúria Tomás de Aquino entende o que muitos defensores da ortodoxia não conseguem entender. É inútil dizer a um ateu que é ateu; ou atirar contra um negador da imortalidade a infâmia da sua negação; ou imaginar que alguém pode forçar um adversário a admitir que está equivocado demonstrando que está equivocado segundo os princípios de outra pessoa e não de acordo com seus próprios princípios. Após o grande exemplo de Santo Tomás, foi estabelecido o princípio — ou deveria ter sido estabelecido para sempre — de que, ou não devemos discutir com uma pessoa de forma alguma, ou devemos fazê-lo em seu próprio terreno e não no nosso. Podemos fazer outras coisas em vez de discutir, de acordo com nossa concepção de ações moralmente admissíveis; mas, se nós discutimos, devemos fazê-lo “com as razões e as afirmações dos próprios filósofos”. Este é o senso comum contido em uma frase atribuída a um amigo de Tomás, o grande São Luis, rei de França, que as pessoas superficiais citam como exemplo de fanatismo e cujo significado é: ou te dedicas a discutir com um infiel como somente um verdadeiro filósofo pode discutir, ou então “crava-lhe uma espada no corpo o mais profundamente possível”. Um verdadeiro filósofo (mesmo um da escola contrária) seria o primeiro a concordar que São Luis foi inteiramente filosófico neste assunto.

G. K. Chesterton, in “Santo Tomás de Aquino” (ensaio biográfico).

Terra à vista

No livro Ortodoxia, Chesterton afirma que, incapaz de seguir a religião corrente — no caso inglês, a Igreja Anglicana —, decidiu inventar sua própria heresia. E assim o fez. Por fim, sentiu-se como um náufrago que, chegando a uma ilha supostamente deserta, descobre anos depois que não havia aportado senão às costas de uma ilha tão grande e tão habitada quanto a própria Inglaterra… Isto é: criou sua própria heresia, sentindo-se solitário nela, para finalmente descobrir que sua heresia era apenas a ortodoxia católica: não estava numa ilha deserta.

O curioso é que isso, ao longo da vida, também ocorre com nossos conceitos e com nossa conduta. Frustados com os inúmeros fracassos advindos da observância de algum ditame pequeno-burguês, ou então de algum outro progressista, começamos a buscar valores e significados mais profundos em nós mesmos, no nosso íntimo. Ora, Deus está dentro de cada um de nós! Em algumas pessoas, claro, enterrado beeeeeem lá no fundo, oculto sob uma massa de besteiras ideológicas e de sujeiras convencionais sem fim. E então, ao encontrar tais valores e significados, obviamente graças apenas a Ele, a pessoa acredita ser o único habitante dessa ilha de conduta moral — embora sempre tensa e problemática — de conduta moral quase paradisíaca. Quase paradisíaca ao menos para a própria consciência, o que é mais do que o suficiente, pois os dramas e conflitos desta vida não se extinguem por passe de mágica. (Ora, até Cristo, a consciência pura encarnada, morreu na cruz deste mundo.)

Enfim, o sujeito se acha numa ilha deserta e, de repente, esbarra na própria avó, aquela velha que reza todo santo dia pela família inteira: ela sempre esteve na ilha! Tal como a mãe dela, e a mãe da mãe dela, e o pai da mãe da mãe dela e assim por diante. Salvar-se do naufrágio do mundo é agarrar-se ao eterno madeiro flutuante, que sempre nos espera à margem do espaço, desde antes do início dos tempos — e com ele seguir até o porto seguro da única ilha que realmente importa habitar. Inventar uma ilha, como na origem latina da palavra — “invenção” é descoberta —, é apenas redescobrir o já descoberto. Não há nada de novo sob o sol…

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