palavras aos homens e mulheres da Madrugada

Tag: Religião Page 11 of 15

Henfil: “Tenho que sobreviver, entende?”

Henfil

Fonte: "365 – Seleção de Leitura e Informação", Editora ABZ, 1973(?).

O êxtase religioso de Murilo Mendes

Murilo Mendes

Contextualizando: em 1921, o poeta mineiro Murilo Mendes inicia uma profunda amizade com o pintor Ismael Nery, católico de linhagem “essencialista”, cunhada por ele mesmo sobre bases supostamente tomistas. Quando Nery, que exercia uma influência notável sobre o amigo poeta, faleceu, Murilo passou por uma catarse religiosa em pleno velório, que o levaria a se converter definitivamente ao Catolicismo. Pedro Nava, no livro de memórias “O Círio Perfeito”, relata assim o episódio ocorrido em 6 de abril de 1934:

“O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Nery e que ficou para sempre gravado na memória do Egon foi a conversão instantânea de Murilo Mendes. (…) Todos como que cochichavam, abafados pela solenidade do momento. De repente, uma fala começou a ser percebida. Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frases tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como uma discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos.

Era o Murilo bradando no escuro. Era uma espécie de arenga, com fluxos de onda – ora recuando e baixando, ora avançando, subindo e enchendo a noite com seus rebôos graves e seus ecos mais pontudos. Os do portão foram se aproximando numa curiosidade de roda estupefata e calada em cujo centro um Murilo, pálido de espanto ou como de um alumbramento, gesticulava e se debatia como se estivesse atracado por sombras invisíveis. Só ele as via e aos anjos e arcanjos que anunciava pelos nomes indesvendáveis que têm no Peito do Eterno ocultos para todos os mais. E soltava um encadeado de frases que no princípio fora só um cicio, que tomara corpo e dera naquela berro alucinado. O José Martinho logo segredou ao Egon:

– Isto é uma crise nervosa do Murilo. Vamos dar a ele um Gardenal e obrigá-lo a encostar-se um pouco. Onde é que você deixou o vidrinho?

– Está aqui comigo, no bolso… Deixa eu ir buscar um pouco de água.

O médico correu, mas quando voltou com o copo e o comprimido já na mão, ficou tão bestificado com a expressão do Murilo que recuou, colocou num peitoril a vasilha e o remédio e voltou para acompanhar o drama que se desenrolava dentro do amigo e tomava sua alma que nem avalanche.

Seus olhos agora cintilavam e dele todo desprendia-se a luminosidade do raio que o tocara. E não parava a catadupa de suas palavras todas altas e augustas como se ele estivesse envultado pelos profetas e pelas sibilas que estão misturados nos firmamentos da capela Sistina. Ele disse primeiro, longamente, de como sentia- se penetrado pela essência do Ismael Nery e seu espírito religioso. Falava dos anjos que estavam ali com ele – já não mais como as imagens poéticas que habitavam seus versos, mas dos que se incorporavam nele, que recebia também a alma do amigo morto.

Finalmente, Murilo clamou mais alto – DEUS! – e com a mão direita castigou o próprio peito e mais duramente o coração. Não, pensava o Egon, não é caso para Gardenal. O José Martinho está errado. O Murilo não está nervoso. O negócio é mais complexo… O que ele está é sendo arrebatado num êxtase e o que eu estou vendo é o que viram os acompanhantes na estrada de Damasco quando Saulo rolou do cavalo e foi fulminado pela luz suprema. É isto. Exista ou não essa luz e esse fogo – neles ou na sua impressão o Murilo acaba de encadear-se. Está se queimando todo nas chamas que descem como lavas do Coração paramonte de Jesus Cristo Nosso Senhor.

Quando subitamente calou-se, o poeta retomou o velório do amigo – sério como Moisés descendo do Sinai, e foi assim e sem dizer palavra mais que ele acompanhou o corpo ao cemitério. Deste saiu sozinho e foi direto procurar os monges nas catacumbas do Mosteiro São Bento. Quando, três dias depois, ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o homem desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e Lênin. Estava transformado no ser ponderoso, cheio de uma seriedade de pedra e no católico apostólico romano que seria até o fim de sua vida. Descrevera volta de cento e oitenta graus. Sua poesia tornara-se mais pura e trazia a mensagem secreta da face invisível dos satélites”.

_______

A Trama Poética de Murilo Mendes, de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Timponi Pereira Rodrigues. Editora Lacerda Editores, 2000. Páginas 88-89.

Recebi o texto acima de Rafael Guedes, que o transcreveu, e a quem muito agradeço. De fato, um registro marcante que vale a pena ser divulgado.

“Grande Sertão: Veredas”: as pérolas de sabedoria de Riobaldo

Guimarães Rosa

«‘Que-Diga’? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!»

*

« Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão ‘encosto’.»

*

« Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.»

*

« O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…»

*

« O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que mata só para ver alguém fazer careta…»

*

« Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.»

*

« Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado.»

*

« Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.»

*

« Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei!»

*

« E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!»

*

« Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável.»

*

« Acho proseável.»

*

« Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até a hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: –‘Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…’ – ciente me respondeu.»

*

« Guerra diverte – o demo acha.»

*

« Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!»

*

« Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dela a gente tudo vendo.»

*

« Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.»

*

« Viver é um descuido prosseguido.»

*

« Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode.»

*

« Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!»

*

« O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão.»

*

« O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia.»

*

« Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.»

*

« Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada.»

*

« Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre.»

*

« Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!» (Essa é do, da, ah, você sabe, da Diadorim.)

*

« Nasci devagar. Sou é muito cauteloso.»

*

« O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada.»

*

« O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.»

*

« (…) peguei saudade dos passarinhos de lá, do poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens.» (Esse trecho vai aqui apenas porque é a descrição exata da fazenda da minha avó.)

*

« Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou-amigo-é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.»

*

« A natureza da gente é muito segundas-e-sábados.»

*

« Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar.»

*

« Medo de errar é a minha paciência.»

*

« Do escurão, tudo é mesmo possível.»

*

« (…) mulher que não ria – esse lenho seco.»

_________

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Blaise Pascal contra a Indiferença dos Ateus

Blaise Pascal

« Saibam, ao menos, que religião combatem, antes de combatê-la. Se essa religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus e de possuí-lo com clareza e sem véu, seria combatê-la dizer que não se vê nada, no mundo, que a mostre com tal evidência. Mas, como afirma, ao contrário, que os homens se acham nas trevas e afastados de Deus, que se oculta ao seu conhecimento, sendo mesmo esse Deus absconditus o nome com que se apresenta nas Escrituras, em suma, se trabalha igualmente para estabelecer duas coisas: que Deus estabeleceu na Igreja marcas sensíveis para ser reconhecido pelos que o procurarem sinceramente, e que, no entanto, as cobriu de tal forma que só será percebido pelos que o procurarem de todo o coração, que proveito podem eles tirar, quando, na negligência em que fazem profissão de estar procurando a verdade, exclamam não haver nada que a mostre, de vez que essa obscuridade em que se encontram e que objetam à Igreja não faz senão estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na outra, estabelecendo assim a sua doutrina, em lugar de arrumá-la?

« Para combatê-la, ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os esforços em procurá-la por toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o fim de nela se instruírem, mas sem nenhuma satisfação. Se falassem do destino, combateriam, na verdade, uma das suas pretensões. Espero mostrar aqui, porém, que não há ninguém capaz de falar razoavelmente do destino. Ouso mesmo dizer que jamais alguém o fez. Sabe-se muito bem de que maneira agem os que têm esse intuito. Acreditam ter feito grandes esforços para instruir-se, por terem empregado algumas horas na leitura de um dos livros sagrados e por terem interrogado algum eclesiástico sobre as verdades da fé. Gabam-se, depois, de terem investigado em vão nos livros e entre os homens. Mas, na verdade, não posso deixar de lhes dizer o que freqüentemente tenho dito: que essa negligência é inadmissível. Não se trata, no caso, do irrefletido interesse de um estranho, para assim proceder: trata-se de nós próprios e do nosso todo.

« A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela. Todos os nossos pensamentos e ações devem tomar caminhos tão diferentes, conforme se esperem ou não os bens eternos, que é impossível fazer uma pesquisa sensata e criteriosa sem ter em vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto.

« Assim, o nosso primeiro interesse, o nosso primeiro dever, é esclarecer bem o assunto, do qual depende toda a nossa conduta. Eis porque, dentre os que não estão persuadidos disso, eu estabeleço uma extrema diferença entre os que trabalham com todas as suas forças para instruir-se a respeito e os que vivem sem se dar a esse trabalho e sem pensar nisso.

« Só posso ter compaixão dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a última das desgraças e dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as suas principais e mais sérias ocupações.

« Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza, possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero de maneira bem diferente.

« Tal negligência numa questão em que se trata da própria pessoa, da própria eternidade, do próprio todo, não me irrita mais do que enternece: assombra-me e espanta-me, sendo para mim uma monstruosidade. Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio; é preciso não ver nisso, apenas, o que vêem as pessoas menos esclarecidas.

« É preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida; que todos os nossos prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que, finalmente, a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou infelizes.

« Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidades para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma.

« É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranqüilo e satisfeito, se disso faz profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.

« Onde se foram buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria existe quando só se esperam misérias sem remédio? Que motivo de orgulho pode haver nas obscuridades impenetráveis e como admitir que tal raciocínio seja o de um homem razoável?»

Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobre tudo e sobre si própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber por que fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue.

Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta.

Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar.

Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou. Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura”.

« Quem desejaria ter como amigo um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas intimidades? Quem recorreria a ele em suas aflições?

« Finalmente, a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo?

« Na verdade, é glorioso, para a religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas principais verdades. Com efeito; a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo. Ora, se eles não servem para mostrar a verdade da redenção pela santidade dos seus costumes, servem ao menos, admiravelmente, para mostrar a corrupção da natureza com sentimentos tão desnaturados.

« Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo, de uma eternidade de miséria, isso não é natural. Procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa tantos dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

« É um encantamento incompreensível e um adormecimento sobrenatural, marcando uma força todo-poderosa que os causa.

« É preciso haver um estranho abalo na natureza do homem para que possa vangloriar-se de se achar nesse estado em que parece incrível que uma só pessoa possa estar. No entanto, a experiência me faz ver tão grande número delas que seria de nos surpreendermos, se não soubéssemos que quase todas fingem ser assim e que na realidade não o são. São pessoas que ouviram dizer que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco. É o que chamam ter sacudido o jugo e o que experimentam imitar. Mas, não seria difícil explicar-lhes quanto se arriscam quando dessa forma procuram a estima. Não é esse o meio de grangeá-la, mesmo quando se trata de pessoas que julgam sensatamente as coisas e que sabem que o único caminho para triunfar é aparentar honestidade, fidelidade, critério e capacidade de bem servir o amigo, de vez que os homens só gostam, naturalmente, do que lhes possa ser útil. Com efeito, que vantagem temos em ouvir um homem dizer que sacudiu o jugo, que não crê na existência de um Deus que vele sobre suas ações, que se considera como único senhor de sua conduta e que não pensa em prestar contas senão a si próprio? Pensarão, por isso, que nos levarão a depositar-lhes mais confiança e a esperar seus consolos, conselhos e socorros em todas as necessidades da vida? Pretenderão alegrar-nos dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com tristeza, como sendo a mais triste do mundo?

« Se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e tão afastado em tudo dessa boa aparência que mostram, que seriam antes capazes de regenerar do que de corromper os que tivessem alguma inclinação para segui-los. E, com efeito, fazei-os prestar contas dos seus sentimentos e das razões que possuem para duvidar da religião: dirão coisas tão frívolas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. Foi o que muito a propósito lhes disse um dia alguém: "Se continuardes a discorrer dessa maneira, na verdade me convertereis". E tinha razão: de fato, quem não teria horror de se ver com sentimentos em que se têm como companheiros pessoas tão desprezíveis?

« Eis por que os que não fazem senão fingir esses sentimentos seriam bem desgraçados em contrariar seu natural para tornar-se os mais impertinentes dos homens. Se se desgostam, no fundo do coração, por não terem mais luz, não o dissimulem, pois tal declaração não será vergonhosa. Só há vergonha em não possuí-la. Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus; nada marca tanto uma disposição má de sentimentos como não desejar a verdade das promessas eternas; nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus. Deixem, pois, essas impiedades para os que são de índole bastante má para serem verdadeiramente capazes disso; sejam ao menos homens de bem, se não puderem ser cristãos; e reconheçam, finalmente, que só há duas espécies de pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o conhecem.

« Mas, quanto aos que vivem sem conhecê-lo e sem procurá-lo, estes se julgam tão pouco dignos do seu próprio cuidado que não são dignos do cuidado dos outros, sendo preciso ter toda a caridade da religião que eles desprezam para não os desprezar até abandoná-los em sua loucura. Mas, como essa religião nos obriga a observá-los sempre, enquanto estiverem nesta vida, como capazes da graça que pode esclarecê-los, e a acreditar que podem em pouco tempo tornar-se mais cheios de fé do que nós o somos, podendo nós, ao contrário, cair na cegueira em que eles se acham, é preciso fazer por eles o que desejaríamos que se fizesse por nós se estivéssemos em seu lugar, e chamá-los a ter piedade de si próprios e a dar ao menos alguns passos para tentar descobrir luzes. Dediquem a esta leitura algumas das horas que tão inutilmente empregam fora: se alguma aversão experimentarem, talvez reconheçam ainda assim alguma coisa ou, pelo menos, não perderão muito. Quanto aos que nisso usarem de toda a sinceridade e mostrarem um verdadeiro desejo de descobrir a verdade, espero que se satisfarão e ficarão convencidos das provas de uma religião tão divina por mim coligidas aqui.»

______

Pensamentos, de Blaise Pascal.

Li Pascal, pela primeira vez, da biblioteca de Dona Edith, viúva do Dr. Gilson de Mendonça Henriques, enquanto me hospedava com seus netos em Jacaraípe, Espírito Santo, numas férias de 1993 ou 1994. (Lembra, Míriam?) Ler Pascal, sentado no jardim fronteiro da casa, encarando o mar…

Emanuel Swedenborg: “O mal no homem é o inferno nele”

Emanuel Swedenborg

« Em algumas pessoas há prevalecido a opinião que Deus desvia Sua face do homem, o rejeita de Si e o precipita no inferno, e que Ele Se irrita contra o homem por causa do mal. Outros vão ainda mais longe e crêem que Deus pune o homem e lhe faz mal. Eles se confirmam nessa opinião pelo sentido literal da Palavra, onde se acham semelhantes expressões. Não sabem que o sentido espiritual da Palavra, que explica o sentido da letra, é inteiramente diferente, e que, conseqüentemente, a doutrina genuína da igreja, que vem do sentido espiritual da Palavra, ensina outra coisa, a saber, que Deus nunca desvia Sua face do homem e não o rejeita de Si; nunca lança alguém no inferno e não Se encoleriza. E também o que percebe todo homem cuja mente está na iluminação, quando lê a Palavra, pelo simples fato de que Deus é o Bem mesmo, o Amor mesmo e a Mise­ricórdia mesma; e que o Bem mesmo não pode fazer mal a alguém, e o Amor mesmo e a Misericórdia mesma não podem rejeitar o homem de Si, porque é contra a essência mesma da misericórdia e do amor, e assim, contra o Divino Mesmo. Por isso, aqueles que pensam por uma mente iluminada quando lêem a Palavra, claramente percebem que Deus nunca Se desvia do homem, e que, não Se desviando dele, age com ele segundo o bem, o amor e a misericórdia, isto é, Ele quer seu bem, ama-o e tem compaixão dele. Daí também eles vêem que o sentido da letra da Palavra, no qual se acham tais expressões, encerra em si um sentido espiritual segundo o qual devem ser expli­cadas essas expressões, que foram, no sentido da letra, acomodadas à concepção do homem e pronunciadas segundo as suas idéias pri­meiras e comuns.»

(…)

« Disto resulta que o homem é que é a causa de seu mal e de forma alguma o Senhor. O mal no homem é o inferno nele. Por isso, dizer mal ou inferno, é a mesma coisa. Ora, como o homem é a causa de seu mal, é pois ele próprio que se induz ao inferno e não o Senhor que o induz. O Senhor, em vez de induzir o homem ao inferno, o liberta do inferno tanto quanto o homem não quiser e não desejar estar em seu mal. O todo da vontade e do amor do homem permanece nele depois da morte; aquele que quer e ama um mal no mundo, quer e ama o mesmo mal na outra vida: ele não tolera então que se separe dele. Daí vem que o homem que está no mal está ligado ao inferno e tam­bém está realmente quanto ao seu espírito no inferno; e depois da morte não deseja outra coisa senão estar onde está seu mal. Por isso, é o homem que, depois da morte se precipita no inferno por si mesmo e não o Senhor que o precipita.

« Dir-se-á também como isso se dá. Quando o homem entra na outra vida, ele é primeiramente recebido pelos anjos, que lhe prestam todos os serviços possíveis e que lhe falam do Senhor, do céu, da vida angélica, e o instruem nas verdades e bens. Mas se o homem, então espírito, é tal que no mundo – ele haja de fato rece­bido instruções sobre semelhantes coisas, mas de coração as haja negado ou desprezado, então, depois de algumas conversas com eles, ele deseja e também procura separar-se deles. Ora, quando os an­jos percebem isso, eles o deixam; e ele, depois de algumas ligações com outros, se associa finalmente aos que estão em um mal seme­lhante ao seu. Quando isso se dá, ele se desvia do Senhor e volta sua face para o inferno ao qual ele tinha sido associado quando estivera no mundo, e onde residem os que estão em um se­melhante amor do mal. Tudo isso mostra com evidência que o Se­nhor atrai a Si todo espírito, através de seus anjos e também pelo influxo do céu, mas os espíritos que estão no mal resistem veemen­temente e se desprendem, por assim dizer, do Senhor, e são arras­tados por seu mal como por uma corda, assim pelo inferno; e como são arrastados, e pelo amor do mal querem ser arrastados, é eviden­te que eles se precipitam no inferno por sua livre vontade. Que isso seja assim, ninguém pode crê-lo no mundo, por causa da idéia que se faz do inferno; e mesmo na outra vida, isso só aparece aos olhos daqueles que estão fora do inferno, mas não aos que nele se lançam. Porque eles nele entram por sua livre vontade, e os que entram por um ardente amor do mal aparecem como se se tivessem precipitado com a cabeça para baixo e os pés para cima. E por esta aparência que parece que eles são lançados por uma força Divina. De tudo isso pode-se ver por que o Senhor não precipita pessoa alguma no inferno, mas cada um é que se precipita nele por si próprio, não só enquanto vive no mun­do, como também depois da morte, quando vem entre os espíritos.

« Se o Senhor não pode, por Sua Divina essência, que é o Bem, o Amor e a Misericórdia, agir do mesmo modo com todo ho­mem, é porque os males e por conseguinte os falsos obstam e não só enfraquecem mas até rejeitam Seu influxo Divino. Os males, e por conseguinte os falsos, são como nuvens negras que se interpõem entre o sol e os olhos do homem, e arrebatam o brilho e a serenidade da luz. Persistindo o sol em um contínuo esforço para dissipar as nuvens que fazem obstáculo, porque ele está por trás, opera, e, du­rante esse tempo, ele também envia, por diversas passagens aqui e ali, alguma luz mesclada de sombra aos olhos do homem. No mundo espiritual dá-se o mesmo: lá, o Sol é o Senhor e o Divino amor; a luz é a Divina verdade; as nuvens ne­gras são os falsos do mal; os olhos são o entendimento. Lá, quanto mais alguém está nos falsos do mal, mais há ao redor dele uma tal nuvem, negra e condensada segundo o grau do mal. Por esta com­paração se pode ver que a presença do Senhor é perpétua em cada um, mas é recebida de diversos modos.

« Os maus espíritos são punidos severamente no mundo dos espíritos, para que, pelos castigos, sejam desviados de praticar males. Também parece que eles são punidos pelo Senhor, mas a verdade é que nenhuma coisa da pena vem do Senhor, mas do próprio mal, porque o mal foi de tal modo unido à sua pena que eles não podem ser separados. Pois a turba infernal só deseja e só ama fazer o mal, e principalmente infligir penas e tormentos; por isso ela faz mal e inflige penas a quem quer que não se acha sob a tutela do Senhor. Quando pois um mal é feito de mau coração, como esse mal repele de si toda a tutela do Senhor, os espíritos infernais se precipitam sobre aquele que fez tal mal e o punem. Isto pode ser ilustrado, de algum modo, pelos males e pelas penas dos males no mundo, onde os males e as penas também foram conjuntos, porquanto as leis prescrevem uma pena para cada mal. Por isso, aquele que se precipita no mal, se precipita também na pena do mal. A dife­rença consiste unicamente em que o mal no mundo pode estar oculto, enquanto não o pode na outra vida. Tudo isso mostra que o Senhor não faz mal a pessoa alguma, e que dá-se o mesmo no mundo, onde o rei, o juiz e a lei não são a causa pela qual o réu é punido, porque eles não são a causa do mal do malfeitor

_______

O Céu (e as suas Maravilhas) e o Inferno (Segundo o que foi Ouvido e Visto), de Emanuel Swedenborg.

Para saber mais sobre Emanuel Swedenborg, leia a conferência escrita por Jorge Luis Borges (com notas de minha autoria). Conheça também o depoimento de Immanuel Kant.

Thomas Wolfe fala sobre a solidão e seu antídoto, o amor

Thomas Wolfe

« Minha vida, mais do que a vida de qualquer pessoa que conheço, foi passada em solidão e peregrinações. Por que isto é verdade, ou como aconteceu, não sei dizer: mas assim é. Desde os meus quinze anos – exceto por um único intervalo –, tenho vivido uma vida tão solitária quanto é possível a um homem moderno. Quero dizer com isso que o número de horas, dias, meses e anos que passei sozinho descrevem a experiência da solidão humana exatamente como eu a conheci.

« A razão que me impele a fazer isto não é que eu considere meu conhecimento da solidão diferente, em qualidade, daquele dos outros homens. Muito pelo contrário. Toda a convicção de minha vida hoje baseia-se na crença de que a solidão, longe de ser um fenômeno raro e curioso, é o fator central e inevitável da existência humana. Quando examinamos os momentos, os atos, as afirmações de todos os tipos de pessoas – não somente a dor e o êxtase dos grandes poetas, mas também a enorme infelicidade da alma mediana, como fica evidente nas inúmeras palavras estridentes de insulto, ódio, desprezo, desconfiança e escárnio que sempre raspam nossos ouvidos quando a multidão de gente passa por nós nas ruas –, descobrimos, creio, que todas estão sofrendo pela mesma coisa. A causa final da queixa delas é a solidão.

« Se minha experiência de solidão não é diferente da de outros homens em qualidade, acho, no entanto, que ela é mais aguda em intensidade. Isto me dá, portanto, a maior autoridade do mundo para falar sobre o tema, sobre nossa queixa geral, pois acredito conhecer mais sobre isso do que qualquer pessoa de minha geração. Ao dizer isto, estou simplesmente afirmando um fato da maneira que o vejo, embora reconheça que pode soar como arrogância ou vaidade. Mas antes que alguém se precipite nessa conclusão, deixe-me considerar como seria estranho encontrar arrogância em alguém que viveu sozinho tanto quanto eu. A cura mais assegurada para a vaidade é a solidão. Pois, mais do que outros homens, nós que vivemos no cerne da solidão somos sempre vítimas do autoquestionamento. Sempre e sempre, em nossa solidão, sentimentos vergonhosos de inferioridade erguem-se de repente para nos esmagar numa torrente de horror, descrença e desolação; para adoecer e corromper nossa saúde e nossa confiança; para contaminar a própria raiz de nossa alegria forte e exultante. O eterno paradoxo disto é que, se um homem deve conhecer o trabalho triunfante da criação, ele é obrigado a resignar-se em longos períodos de solidão, e amargar a solidão que furta dele a saúde, a confiança, a crença e a alegria, que são essenciais ao trabalho criativo.

« Para viver sozinho como tenho vivido, um homem deveria ter a confiança em Deus, a fé tranqüila de um santo monástico, a invencibilidade implacável de Gibraltar. Sem isto, há épocas em que qualquer coisa, tudo, os incidentes mais triviais, as palavras mais casuais conseguem num instante privar-me de minha couraça, enfraquecer minha mão, apertar meu coração num terror gélido, encher minhas entranhas com a substância cinzenta da impotência arrepiante. Às vezes não passa de uma sombra cruzando o sol; às vezes nada é senão a luz tórrida e turva de agosto, ou a feiúra despojada e o decoro sórdido das ruas do Brooklyn, esmaecendo na paisagem enfadonha daquela luz turva, e evocando a miséria insuportável de prostitutas incontáveis e vidas indefiníveis. Às vezes é apenas o horror estéril do concreto cru, ou então o calor chispando nos milhões de carros que passam disparados pelas ruas tórridas, ou ainda os monótonos terrenos de estacionamentos, cobertos de escória de hulha, ou o estrondo violento, a balbúrdia da Ferrovia Elevada, ou a multidão de gente que caminha pela terra, avançando sempre, numa fúria exacerbada, indo apressada para lugar nenhum.

« Pode ainda ser apenas uma frase, um olhar, um gesto. Pode ser a fria e desdenhosa inclinação de cabeça que um almofadinha contido e afetado da Park Avenue dispensa quando lhe apresentam alguém, como se para dizer: “Você é um nada”. Ou pode ser também uma referência sarcástica, um repúdio por parte de um crítico, numa revista semanal da classe alta. Ou ainda uma carta de uma mulher dizendo que estou perdido e arruinado, que meu talento desapareceu, todos os meus esforços são falsos e inúteis – só porque renunciei à verdade, à visão de mundo e à realidade que tão maravilhosamente pertencem a ela.

« E às vezes é menos que tudo isso – nada que eu possa ver, tocar, escutar ou definitivamente recordar. Pode ser tão vago quanto uma espécie de horrenda atmosfera da alma, sutilmente composta de toda a fome e fúria, de todo o desejo impossível que minha vida já experimentou. Pode, também, ser uma lembrança meio esquecida do vermelho frio e pálido das tardes de domingo de inverno em Cambridge; e de um rosto lívido, estético e sensível, que despertou minha atenção por seu discurso sincero naquela mesma tarde de domingo em Cambridge, dizendo-me que todas as minhas esperanças da juventude eram ilusões lamentáveis, e que minha vida inteira resultaria em nada, enquanto o vermelho da luz pálida de março refletia-se no rosto lívido com uma impotência desoladora, extinguindo instantaneamente de meu sangue todas as paixões da juventude.

« Sob a evocação dessas luzes e dessas atmosferas, dessas palavras frias e desdenhosas, dessa gente cheia de escárnio e afetação, toda a música e alegria do dia esvai-se como uma vela apagada, a esperança me parece perdida para sempre, e toda a verdade que eu já tenha descoberto e conhecido parece-me falsa. Num momento como esse o homem solitário sente que toda a evidência de seus próprios sentidos o traiu, e que nada vive ou se move na terra a não ser criaturas da morte-em-vida – aquelas de corações frios e apertados, de rins doentios, que para sempre existem no vermelho pálido da luz de março e das tardes de domingo.»

(…)

« Então de repente, um dia, por nenhuma razão aparente, sua fé e sua confiança na vida renascem numa maré enchente. Despertam nele com uma força jubilante e invencível, escancarando uma janela na vasta parede do mundo, restaurando tudo em formas de um brilho imortal. Miraculosamente restabelecido e seguro de si mesmo, ele se lança de novo na lida triunfante da criação. Toda a sua velha força lhe pertence de novo: ele sabe o que sabe, ele é o que é, ele encontrou o que encontrou. Vai dizer a verdade que está dentro dele, vai dizê-la nem que o mundo inteiro a negue, afirmá-la nem que um milhão de homens gritem que ela é falsa.

« Num tal momento de triunfante confiança, com este sentimento dentro de mim, ouso agora afirmar que conheço a solidão tão bem quanto qualquer homem, e escreverei agora sobre ela como se ela fosse minha própria irmã, que é. Vou retratá-la para você com tanta fidelidade à sua imagem verdadeira que ninguém que leia isso duvidará de sua fisionomia quando a solidão doravante lhe aparecer.

« A mais trágica, sublime e bela expressão da solidão humana que jamais conheci é aquela que li no Livro de Jó; e a maior e mais filosófica é o Eclesiastes. Devo aqui destacar um fato que diverge tanto de tudo o que me ensinaram a respeito da solidão quando eu era criança, a respeito da tessitura trágica da vida, que quando o descobri fiquei perplexo e incrédulo, duvidando do peso opressor da evidência que se revelava a mim. Mas lá estava ele, tão sólido quanto uma rocha, para não ser removido ou negado; com o passar dos anos, a verdade desta descoberta tornou-se parte da estrutura de minha vida.

« O fato é este: o homem solitário, que é também o homem trágico, é invariavelmente o homem que mais ama a vida – ou seja, é o homem feliz. Nessas declarações não há paradoxo algum. Uma condição implica na outra, e a torna necessária. A essência da tragédia humana está na solidão, não no conflito, quaisquer que sejam os argumentos sustentados pelo teatro. Da mesma forma que o grande escritor trágico (digo “escritor trágico” para distinguir de “escritor de tragédias”, pois certas nações, a romana e a francesa entre elas, não tiveram grandes escritores trágicos; pois Virgílio e Racine não foram senão grandes escritores de tragédia), da mesma forma que o grande escritor trágico – Jó, Sófocles, Dante, Milton, Swift, Dostoiévski – sempre foi o homem solitário, assim também ele foi o homem que mais amou a vida e que teve o mais profundo senso de felicidade. A verdadeira qualidade e substância da felicidade humana encontra-se nos trabalhos desses grandes escritores trágicos como em nenhum outro lugar, em nenhum outro registro da vida do homem sobre a terra. Como prova disso, posso dar aqui uma ilustração conclusiva:

O Mestre e Margarida: Mikhail Bulgakov narra o diálogo, em plena União Soviética, entre o Diabo e dois escritores comunistas sobre a existência de Deus

Mikhail Bulgakov

Por Mikhail Bulgakov.

Essa conversa, como depois se soube, era sobre Jesus Cristo. O editor tinha encomendado ao poeta um longo poema anti-religioso para o próximo número da revista. Ivan Nikolaevitch tinha composto o poema, e até com muita rapidez, mas infelizmente o editor não tinha ficado nada satisfeito com ele. Bezdomni pintara a principal personagem do seu poema, ou seja, Jesus, com cores muito sombrias, e, no entanto, na opinião do redator, era preciso reescrever todo o poema. E agora o redator fazia ao poeta uma espécie de conferência sobre Jesus, a fim de sublinhar o erro fundamental do poeta.

Era difícil dizer o que é que precisamente traíra o poeta: se o poder imaginativo do seu talento ou o completo desconhecimento do assunto sobre o qual escrevia. Mas o Jesus que ele retratara era, digamos, como que uma personagem viva, embora não muito atraente. E Berlioz queria provar ao poeta que o mais importante não era como tinha sido Jesus, mau ou bom, mas que esse Jesus, como indivíduo, nunca existira e que todas as histórias sobre ele eram pura invenção, o mais vulgar dos mitos.

Devemos assinalar que o redator era um homem de muitas leituras e citava habilidosamente no seu discurso os historiadores antigos, por exemplo o célebre Fílon de Alexandria, o brilhante erudito Flávio Josefo, que nunca disseram nem uma palavra acerca da existência de Jesus. Mostrando uma sólida erudição, Mikhail Alexandrovitch informou o poeta, entre outras coisas, de que a passagem do Livro Quinze, no Capítulo 44 dos famosos Anais de Tácito, onde se fala de Jesus, não é mais que uma interpolação posterior e falsa.

O poeta, para quem tudo aquilo que o redator dizia era novidade, escutava atentamente Mikhail Alexandrovitch, fixando nele os seus olhos verdes, vivos e desenvoltos, e só de vez em quando soluçava, amaldiçoando em voz baixa o refresco de alperce.

– Não há uma única religião oriental – dizia Berlioz – em que, como regra, uma virgem imaculada não dê à luz um deus. E os cristãos, sem inventarem nada de novo, criaram do mesmo modo o seu Jesus, o qual de fato nunca existiu. E é isto que deve ser principalmente realçado…

A forte voz de tenor de Berlioz ecoava na alameda deserta, e, à medida que Mikhail Alexandrovitch penetrava em labirintos onde só um homem muito culto se pode aventurar sem correr o risco de quebrar a face, o poeta aprendia cada vez mais coisas interessantes e úteis sobre o Osíris egípcio, o deus benfazejo, filho do Céu e da Terra, sobre o deus fenício Tamuz, sobre Marduque, e até sobre o menos conhecido e terrível deus Huitzilopochtli, outrora profundamente venerado pelos astecas no México.

E no preciso momento em que Mikhail Alexandrovitch contava ao poeta como os astecas moldavam em massa de pão a figura de Huitzilopochtli, apareceu na alameda o primeiro transeunte.

Posteriormente, quando, para falar verdade, era já demasiado tarde, várias instituições apresentaram relatórios com a descrição desse homem. A comparação entre esses relatórios não pode deixar de causar estupefação. Assim, no primeiro diz-se que ele era de baixa estatura, tinha dentes de ouro e coxeava da perna direita. No segundo, esse homem era de estatura enorme, tinha coroas de platina e coxeava da perna esquerda. O terceiro relatório informa laconicamente que o homem não tinha quaisquer sinais particulares.

Devemos reconhecer que nenhum desses relatórios tem qualquer utilidade.

Antes de mais, o homem descrito não coxeava de nenhuma das pernas e não era de estatura baixa nem demasiado alta, mas simplesmente alto. Quanto aos dentes, do lado esquerdo tinha coroas de platina e de ouro no lado direito. Vestia um traje caro cinzento, e usava sapatos estrangeiros da mesma cor. O boné cinzento caía-lhe ousadamente sobre a orelha e debaixo do braço trazia uma bengala com castão preto em forma de cabeça de cão-d’água. Aparentava ter pouco mais de quarenta anos, tinha a boca um pouco torcida e estava muito bem barbeado. Era moreno. O olho direito era negro e o esquerdo, não se sabe por quê, era verde. As sobrancelhas eram negras, mas uma mais alta que a outra. Em suma, um estrangeiro.

Ao passar junto do banco onde estavam sentados o editor e o poeta, o estrangeiro olhou-os de soslaio, parou e, subitamente, sentou-se no banco próximo, a dois passos dos amigos.

“Alemão”, pensou Berlioz. “Inglês”, pensou Bezdomni. “E de luvas, com este calor.”

O estrangeiro percorreu com o olhar os altos edifícios que formavam um quadrado em volta do lago, e era evidente que via aquele lugar pela primeira vez e que ele lhe interessava.

Deteve o olhar nos andares superiores cujos vidros refletiam ofuscantemente o sol fragmentado que abandonava Mikhail Alexandrovitch para sempre, depois baixou-o para onde as vidraças começavam a escurecer com a noite, sorriu com ar superior, semicerrou os olhos, colocou as mãos sobre o castão da bengala e apoiou o queixo nas mãos.

– Tu, Ivan – disse Berlioz -, descreveste muito bem e em tom satírico, por exemplo, o nascimento de Jesus, filho de Deus, mas a questão está em que, antes de Jesus, nasceu toda uma série de filhos de deuses como, por exemplo, o Átis frígio. Em suma, nenhum deles nasceu e nenhum deles existiu, incluindo o próprio Jesus. E é preciso que tu, em vez do nascimento ou, digamos, da chegada dos Reis Magos, descrevas os boatos absurdos sobre esse nascimento… Ora do teu relato resulta que ele realmente nasceu!…

Então Bezdomni fez uma tentativa para acabar com os soluços, sustendo a respiração, o que o fez soluçar mais dolorosamente e mais alto, e, nesse mesmo instante, Berlioz interrompeu o seu discurso, porque de súbito o estrangeiro levantou-se e encaminhou-se para os escritores. Estes olharam-no atônitos.

– Desculpem, por favor – disse o homem, com sotaque estrangeiro mas sem deformar as palavras -, se, não vos conhecendo, tomo a liberdade… mas o tema da vossa erudita conversa é tão interessante que…

Tirou polidamente o boné, e os dois amigos não tiveram outro remédio senão levantarem-se e cumprimentá-lo.

“Não, deve ser francês … “, pensou Berlioz. “Polaco? … “, pensou Bezdomni. Deve-se acrescentar que desde as primeiras palavras o estrangeiro suscitou no poeta uma impressão de repulsa, enquanto Berlioz gostou dele, ou antes, não é que tenha gostado dele, mas… como dizer.. despertou-lhe interesse, digamos.

– Permitem que me sente? – pediu com polidez o estrangeiro, e, involuntariamente, os amigos afastaram-se, o estrangeiro sentou-se entre eles e entrou de imediato na conversa. – Se bem ouvi, o senhor dizia que Jesus nunca existiu? – perguntou o estrangeiro, voltando para Berlioz o seu olho esquerdo, verde.

– Sim, ouviu bem – respondeu cortesmente Berlioz. – Foi precisamente isso que eu disse.

– Ai, que interessante – exclamou o estrangeiro. “Mas que diabo quer ele?”, pensou Bezdomni, franzindo as sobrancelhas.

– E o senhor concordou com o seu interlocutor? – inquiriu o desconhecido, voltando-se para a direita, para Bezdomni.

– Cem por cento! – confirmou este, que gostava de expressões rebuscadas e alegóricas.

– Admirável! – exclamou o interlocutor e, lançando olhadelas furtivas e baixando ainda mais a voz, disse: – Desculpem-me a impertinência, mas, ao que percebi, os senhores, para além do mais, também não acreditam em Deus? – Teve um olhar de espanto e acrescentou: – Juro que não digo a ninguém.

– É verdade, não acreditamos em Deus – respondeu Berlioz, sorrindo levemente do receio do turista estrangeiro -, mas podemos falar disso com toda a liberdade.

O estrangeiro recostou-se no banco e perguntou, numa voz meio esganiçada de curiosidade:

– Os senhores são ateus?

– Sim, somos ateus – respondeu Berlioz, e Bezdomni pensou irritado: “Está grudado, este pato estrangeiro!”.

– Oh, que coisa fascinante! – exclamou o atônito estrangeiro, e virava a cabeça olhando ora para um, ora para outro dos literatos.

– No nosso país, o ateísmo não surpreende ninguém – disse Berlioz diplomaticamente. – A maioria da nossa população deixou, conscientemente e há muito tempo, de acreditar em histórias sobre Deus.

Então o estrangeiro saiu-se com esta: pôs-se de pé e apertou a mão do assombrado editor, enquanto dizia estas palavras:

– Permita que lhe agradeça de todo o coração!

– Por que é que lhe agradece? – interrogou Bezdomni pestanejando.

– Por uma informação muito importante que, para mim, como viajante, é muito interessante – explicou o estrangeiro excêntrico, erguendo um dedo significativamente.

Pelo visto, a importante informação produzira de fato uma forte impressão no viajante, porque ele relanceou os olhos assustados pelos edifícios, como se receasse ver um ateu em cada janela.

“Não, não é inglês … “, pensou Berlioz, enquanto Bezdomni pensava: “Interessante, onde terá ele aprendido a falar assim russo!”, e de novo franziu as sobrancelhas.

– Mas permita que lhe pergunte – tornou o visitante estrangeiro depois de refletir ansiosamente. – E as provas da existência de Deus, as quais, como se sabe, são exatamente cinco?

– Infelizmente! – respondeu Berlioz com pesar -, nenhuma dessas provas vale nada, e a humanidade já as mandou há muito para o arquivo. Pois há-de concordar que no domínio da razão não pode haver nenhuma prova da existência de Deus.

– Bravo! – exclamou o estrangeiro. – Bravo! O senhor repete interiormente o pensamento do velho irrequieto Immanuel sobre esse assunto. E coisa curiosa: ele demoliu completamente as cinco provas, e depois, como que troçando de si mesmo, construiu a sua própria sexta prova!

– A prova de Kant – ripostou o culto editor com um leve sorriso – também não é convincente. E não era em vão que Schiller dizia que as considerações de Kant sobre esta questão só podem satisfazer os escravos, e Strauss limitou-se a rir dessa prova.

Enquanto falava, Berlioz ia pensando: “Mas afinal, quem será ele? E por que é que fala tão bem russo?”.

– Esse tal Kant, havia que agarrá-lo e mandá-lo para Solovki, por essas provas! – lançou inesperadamente Ivan Nikolaevitch.

– Ivan! – murmurou Berlioz, embaraçado. Mas a proposta de enviar Kant para Solovki não só não impressionou o estrangeiro como o deixou encantado.

– Exatamente, exatamente! – exclamou ele e o seu olho esquerdo, verde, voltado para Berlioz, cintilou. – Lá é que é o lugar dele! Pois na época eu lhe disse, ao pequeno-almoço: “Desculpe, professor, mas o senhor inventou uma coisa que não faz sentido! É talvez inteligente, mas demasiado incompreensível. Vão fazer troça de si”.

Berlioz arregalou os olhos. “Ao pequeno-almoço?… A Kant?… Que está ele aí a inventar?”, pensou.

Page 11 of 15

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén