palavras aos homens e mulheres da Madrugada

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De Profundis: Oscar Wilde fala sobre Jesus Cristo

 Oscar Wilde

« Esta é, até onde posso alcançar, a suprema realização da vida artística. Pois ela é simples autodesenvolvimento. A humildade, num artista, é a sua franca aceitação de todas as experiências, assim como o amor para o artista é simplesmente o sentido da beleza que revela ao mundo seu corpo e sua alma. Em Marius, o Epicurista, Pater tenta reconciliar a vida artística com a vida religiosa no sentido profundo, doce e austero do termo. Mas Marius é pouco mais que um mero espectador. Um espectador ideal, é verdade, ao qual foi concedido o dom de “contemplar o espetáculo da vida com as emoções apropriadas”, que Wordsworth define como sendo o verdadeiro objetivo do poeta, mas ainda assim um simples espectador e talvez por demais ocupado em contemplar a beleza dos bancos do santuário para perceber que contemplava apenas o refúgio do sofrimento.

« Vejo uma conexão bem mais íntima e imediata entre a verdadeira vida de Cristo e a verdadeira vida do artista e sinto um intenso prazer ao pensar que muito antes que o sofrimento tivesse se apossado dos meus dias e me prendido à roda do suplício, eu já tinha escrito em A Alma do Homem sob o Socialismo que aquele que vivesse uma vida semelhante à de Cristo deveria ser inteira e absolutamente fiel a si mesmo, e tinha escolhido como meus modelos não apenas o pastor na vertente da colina ou o prisioneiro em sua cela mas o pintor e o poeta, para os quais o mundo é um espetáculo brilhante, ou uma canção. Lembro que uma vez disse a André Gide, quando conversávamos sentados num café qualquer de Paris, que, embora a metafísica tivesse muito pouco interesse para mim e a moral absolutamente nenhum, não havia nada que Platão ou Cristo tivessem dito que não pudesse ser transposto imediatamente para o âmbito da arte e ali encontrar completa realização.»

(…)

« No seu livro A Vida de Jesus – o Quinto Evangelho, o Evangelho segundo São Tomás, como poderíamos chamá-lo -, Renan nos diz que a maior realização de Cristo foi ter se feito amar depois de morto tanto quanto fora amado em vida. E não há dúvida de que, se o seu lugar está entre os poetas, ele é o maior de todos os amantes. Ele percebeu que o amor era o primeiro segredo do mundo, o segredo que os homens sábios procuravam e que só através do amor era possível chegar ao coração do leproso ou aos pés de Deus.

« E, acima de tudo, Cristo é o supremo individualista. A humildade como a aceitação artística de todas as formas de experiência é apenas um tipo de manifestação. O que Cristo procura sempre é a alma do homem. Ele a chama de “Reino de Deus” e a encontra em todos nós. Ele a compara às pequenas coisas, a uma sementinha, um punhado de levedo, uma pérola. Isto porque só podemos perceber a nossa alma se nos libertarmos de todas as paixões estranhas, toda a cultura adquirida, todas as possessões externas, quer sejam elas boas ou más.

« Eu resisti a tudo com uma certa dose de teimosia e um espírito rebelde, até que nada mais me restava no mundo, salvo uma coisa. Havia perdido meu nome, minha posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza. Era um prisioneiro e um mendigo. Mas ainda tinha meus filhos. De repente, eles me foram tomados por força da lei. Foi um golpe tão terrível que fiquei sem saber o que fazer e prostrei-me de joelhos, curvei a cabeça e chorei, exclamando: “O corpo de uma criança é como o corpo do Senhor, eu não mereço nenhum dos dois”. Aquele momento pareceu salvar-me. Percebi então que a única coisa a fazer seria aceitar tudo. Desde então – embora possa sem dúvida parecer estranho – sou mais feliz. Naturalmente, naquele instante eu conseguira alcançar a própria essência da minha alma. Quando conhecemos a nossa alma, tornamo-nos simples como crianças, tal Como Cristo ensinou que deveríamos ser.

« É trágico ver quão poucas pessoas chegam a “possuir suas próprias almas” antes de morrer. “Nada é mais raro num homem” – diz Emerson – “do que um ato independente”. E é verdade. A maior parte das pessoas são outras pessoas. Seus pensamentos são os pensamentos dos outros, suas vidas são uma imitação de outras vidas, suas paixões, citações de um texto já lido. Cristo não foi apenas o supremo individualista, mas o primeiro individualista da História. Tentaram fazer dele um filantropo vulgar igual a tantos outros, ou colocá-lo ao lado dos sentimentais e dos espíritos não-científicos, como se tivesse sido apenas um simples altruísta. Mas na verdade ele não era nem uma coisa nem outra. Sentia compaixão pelos pobres, por aqueles que viviam encarcerados nas prisões, pelos humildes, pelos miseráveis, mas tinha muito mais pena dos ricos, dos hedonistas, daqueles que perdem a liberdade, escravos das coisas materiais, dos que usam ricas vestes e vivem em casas dignas de reis. Para ele, riqueza e prazer pareciam tragédias bem maiores do que a pobreza e o sofrimento. E quanto ao altruísmo, quem melhor do que ele sabia que não é a vontade e sim a vocação que nos define e que é impossível colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos?

« Sua doutrina não exigia que vivêssemos para os outros como um objetivo definido e consciente. Não era essa a sua característica básica. Quando ele nos diz: “Perdoa os teus inimigos”, não está pensando no bem do inimigo mas no nosso próprio bem, porque o amor é mais belo do que o ódio. Mesmo quando disse ao jovem: “Vende tudo aquilo que possuis e distribui o dinheiro entre os pobres”, não era nos pobres que pensava mas na alma do jovem, naquela alma que a riqueza estava destruindo. Na sua visão da vida ele se iguala ao artista, pois ambos sabem que, pela inevitável lei do autodesenvolvimento, o poeta deve cantar, o escultor exprimir-se no bronze e o pintor fazer do mundo um espelho dos seus estados de alma, assim como o espinheiro deve florescer na primavera, o milho dourar na época da colheita e a lua, em suas peregrinações, passar de foice a escudo e de escudo a foice.

« Mas embora não tenha jamais dito aos homens “Vivam para os outros”, Cristo nos fez entender que não há a menor diferença entre a vida do outro e a nossa própria vida. Por esse meio, ele ampliou a personalidade do homem, dando-lhe as dimensões de um Titã. Desde a sua vinda, a história de cada indivíduo isolado é – ou pode vir a ser – a história do mundo. É claro que a cultura intensificou também a personalidade do homem. A arte deu mil novas facetas à nossa mente. Aqueles que possuem um temperamento artístico vão para o exílio com Dante e aprendem como o sal pode ser o pão dos outros e quão mais íngremes podem ser os degraus que eles são obrigados a subir, eles captam por um instante a serenidade e a calma de Goethe e no entanto conseguem entender até bem demais o que Baudelaire gritou para Deus:

“O Seigneur , donnez-moi la force et le courage De contempler mon corps et mon coeur sans dégoût”.

[Oh, Senhor, dai-me a força e a coragem para contemplar meu corpo e meu coração sem desgosto.] »

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De Profundis, de Oscar Wilde.

Paramahansa Yogananda narra um encontro com… Jesus Cristo

Paramahansa Yogananda

« Todos os grandes mestres da índia, que demonstraram agudo interesse pelo Ocidente, compreenderam muito bem as condições modernas. Eles sabem que os problemas do mundo continuarão insolúveis enquanto todas as nações não assimilarem melhor as virtudes características do Oriente e do Ocidente. Cada hemisfério necessita daquilo que o outro tem a oferecer de melhor.

« No decurso de minha viagem pelo mundo, observei com tristeza muito sofrimento. No Oriente, acentuado sofrimento no plano ma­terial. No Ocidente, sobretudo, miséria mental e espiritual. Em todos os países repercutem os dolorosos efeitos de civilizações desequilibradas. A índia e muitos outros países orientais poderão beneficiar‑se imensamente se tratarem de competir com o senso prático de empresários, com a eficiência material das nações ocidentais, como os Estados Unidos. Os povos ocidentais, ao contrário, necessitam compreender com maior profundeza a base espiritual da vida, e especialmente as técnicas científicas que a índia desenvolveu, desde a antigüidade, para a comunhão consciente do homem com Deus.

« O ideal de uma civilização equilibrada não é quimérico. Durante milênios, a índia foi, simultaneamente, o país da luz espiritual e de bem distribuída prosperidade material. A pobreza dos últimos duzentos anos é, na longa história da índia, apenas uma fase cármica passageira. Proverbial em todo o mundo, século após século, foi a expressão “fausto das índias”. A abundância, material e espiritual, vem a ser uma manifestação da estrutura de ritá, lei cósmica ou justiça natural. Não há parcimônia no Espírito Divino, nem em Sua deusa dos fenômenos, a exuberante Natureza.

« As Escrituras hindus ensinam que o homem é atraído para este planeta a fim de aprender, e aprender melhor em cada vida sucessiva, as infinitas variantes em que o Espírito pode, não só expressar‑se através das condições materiais, mas também governá‑las. O Oriente e o Oci­dente estão aprendendo esta grande verdade, de maneiras diversas, e deveriam partilhar de bom grado, um com o outro, as Suas descobertas. Acima de qualquer dúvida, agrada ao Senhor que Seus filhos terrenos lutem por alcançar para o mundo uma civilização livre de pobreza, doen­ça e ignorância espiritual. O esquecimento, pelo homem, de seus divi­nos recursos é resultado do uso incorreto de seu livre‑arbítrio e cau­sa primeira de todas as outras formas de sofrimento.

« Os males atribuídos a uma abstração antropomórfica chamada “sociedade” podem ser imputados, mais realisticamente, a cada homem. A utopia deve medrar na intimidade de cada peito humano, antes que possa florir em virtude cívica, pois as reformas internas conduzem naturalmente às externas. Um homem que se reformou a si mesmo, reformará milhares de outros.

« As Escrituras do mundo, submetidas ao teste do tempo, são, em essência, uma só, inspirando o homem em sua jornada ascendente. Passei um dos períodos mais felizes de minha vida, ditando para a Self‑Realization Magazine minha interpretação de trechos do Novo Testamento. Implorei fervorosamente ao Cristo para que me guiasse na apreensão do verdadeiro significado de suas palavras, muitas das quais têm sido gravemente desvirtuadas durante vinte séculos.

« Uma noite, quando silenciosamente me entregava à prece, minha sala de trabalho no eremitério de Encinitas inundou‑se de luz azul opalescente. Contemplei a forma resplandecente do abençoado Senhor Jesus. Parecia um jovem de vinte e cinco anos, com barba esparsa; seu longo cabelo preto, repartido ao meio, apresentava um halo de ouro cintilante.

« Seus olhos eram eternamente maravilhosos; enquanto eu os fitava, eles se alternavam infinitamente. A cada mudança divina em sua expressão, eu compreendia intuitivamente a sabedoria que eles transmitiam. Em seu olhar glorioso, senti o poder que sustém miríades de mundos. Um Santo Graal apareceu‑lhe na boca; desceu aos meus lábios e, a seguir, voltou a Jesus. Alguns momentos depois, ele pronunciou palavras belíssimas, tão pessoais em sua natureza que eu as guardo em meu coração.»

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Autobiografia de um Iogue Contemporâneo, de Paramahansa Yogananda.

C. S. Lewis: Do ateísmo ao teísmo (documentário)

« Todos os livros estavam começando a se voltar contra mim. Na verdade, devo ter sido tão cego como um morcego por não ter visto, muito antes, a absurda contradição entre minha teoria de vida e minha verdadeira experiência enquanto leitor. Os mais religiosos eram claramente aqueles em que eu realmente podia me alimentar.»

C. S. Lewis e o divórcio entre o Céu e o Inferno

C.S. Lewis

« O Sr. William Blake escreveu o livro O Matrimônio do Céu e do Inferno. Se escrevi sobre o abismo entre os dois, isto não é porque me julgo um antagonista à altura de tão grande gênio, nem mesmo porque esteja absolutamente certo de ter entendido o que ele pretendia; mas, num sentido ou outro a tentativa de realizar essa união é perene. Essa tentativa tem como base a crença de que a realidade jamais se apresenta a nós num sentido absoluto, havendo sempre uma opção inevitável a ser feita; mas que, com habilidade e paciência e (acima de tudo) tempo suficiente, algum meio de abranger ambas as alternativa pode ser sempre encontrado. Que o simples desenvolvimento, ajuste ou refinamento, irá de alguma forma transformar o mal em bem, sem que sejamos chamados para uma rejeição final e total de qualquer coisa que desejemos reter.

« Acredito que esta crença represente um erro desastroso. Não é possível levar conosco toda a nossa bagagem em todas as jornadas. Em uma dessas viagens até mesmo a sua mão direita ou o seu olho direito podem estar entre as coisas que precisará deixar para trás. Não estamos vivendo em um mundo onde todas as estradas são raios de um círculo e onde todas, se seguidas suficientemente, acabarão por se aproximar gradualmente e terminar se encontrando no centro. Pelo contrário, estamos num mundo em que cada estrada, depois de alguns quilômetros, se divide em duas, e cada uma destas mais uma vez em duas, e em cada encruzilhada você tem de tomar uma decisão. Mesmo no nível biológico, a vida não é como um rio mas como uma árvore. Ela não se move na direção da unidade, mas se distancia dela e as criaturas se afastam cada vez mais das outras, à medida que se aperfeiçoam. O bem, quando amadurece, se mostra cada vez mais diferente, não só do mal, mas de qualquer outro bem.

« Não julgo que todos os que escolhem as estradas erradas perecem; mas o seu resgate consiste em serem colocados de volta na estrada certa. Uma soma errada pode ser corrigida, mas somente fazendo um retrospecto até achar o erro e continuando a partir desse ponto, e não apenas “avançando”. O mal pode ser desfeito, mas não pode “transformar-se” em bem. O tempo não pode curá-lo. O encanto precisa ser quebrado, pouco a pouco, “com murmúrios de trás para diante, a fim de obter a separação” — caso contrário não dá resultado. Continua prevalecendo a necessidade de alternativa. Se insistimos em conservar o Inferno (ou mesmo a terra) não veremos o Céu. Acredito que qualquer homem que chegue ao Céu descobrirá que aquilo que abandonou (mesmo arrancando o seu olho direito) não ficou perdido: que o âmago daquilo que estava realmente buscando, mesmo em seus mais depravados desejos, continua ali, além de qualquer expectativa, esperando por ele nos “Países Altos”. Nesse sentido, os que tiverem completado a jornada (e somente estes) poderão verdadeiramente dizer que o bem é tudo e que o Céu está em toda parte. Mas nós, deste lado da estrada, não devemos tentar antecipar essa visão retrospectiva. Se fizermos isso, é provável que adotemos o falso e desastroso conceito de que tudo é bom e qualquer lugar é o Céu.

« E a terra? você pode perguntar. A terra, penso eu, não irá ser considerada por ninguém, no final, como sendo um lugar muito definido. Penso que se for escolhida a terra em vez do Céu, ela irá mostrar ter sido, todo o tempo, apenas uma região no Inferno: e a terra, se colocada em sujeição ao Céu, terá sido desde o início uma parte do próprio Céu.

« Só quero dizer mais uma ou duas coisas sobre este livro. Primeiro, devo reconhecer minha dívida de gratidão a um escritor cujo nome esqueci. Li um artigo seu numa revista americana chamada Scientifiction (Ficção Científica). A qualidade do meu material celeste, que não se curva nem quebra, foi-me sugerida por ele, embora tivesse feito uso da fantasia para um propósito diferente e muito engenhoso. O seu herói viajou para o passado: e ali, muito adequadamente, encontrou pingos de chuva que o feriam como balas e sanduíches que não se podiam comer — porque, naturalmente, nada no passado pode ser alterado. Com menos originalidade, mas (espero) com igual propriedade, transferi esta idéia para a eternidade. Se o autor dessa história porventura ler estas linhas peço que aceite minha gratidão. A segunda coisa é esta. Peço aos leitores que se lembrem tratar-se de uma fantasia. Ela tem naturalmente, ou foi essa a minha intenção, uma moral. Mas as condições além da morte não passam de uma suposição imaginaria: não são sequer um palpite ou uma especulação quanto ao que pode realmente aguardar-nos. A última coisa que desejo seria despertar curiosidade fatual quanto aos detalhes da vida após-morte.»

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O Grande Abismo (prefácio), de C.S. Lewis.

Este foi o livro que o poeta Bruno Tolentino me indicou após conversarmos longamente sobre Swedenborg, O Livro de Urântia, vida após a morte, projeções astrais, Salvação e quejandos. O título em inglês soa ainda mais antagônico ao livro de William Blake: “The Great Divorce”.

Da “Filosofia Perene”: Aldous Huxley fala sobre fé

Aldous Huxley

« A palavra "fé" tem vários significados, que é impor­tante distinguir. Em certos casos é usada como sinônimo de "confiança", como quando dizemos que temos fé na habilidade diagnóstica do Dr. X ou na integridade do advogado Y. Análoga a esta é nossa "fé" na autoridade, a crença na probabilidade de que seja certo o que dizem certas pessoas sobre certas coisas, por causa de suas especiais condições. Outras vezes a "fé" significa crença em proposições que não tivemos ocasião de verificar por conta própria, mas que sabemos que poderíamos verificar, se tivéssemos o desejo e a oportunidade de fazê-lo, junto com a capacidade necessária para isso. Neste sentido da palavra, temos "fé", embora nunca estivemos na Austrália, na existência de uma criatura tal como o platypus; temos "fé" na teoria atômica, embora nunca fizemos os experi­mentos em que tal teoria se fundamenta e sejamos incapazes de compreender os cálculos matemáticos que a apóiam. E existe a "fé", que é uma crença em proposições que sabemos que não poderíamos verificar embora o quisésse­mos, tais como as do Credo de Atanasio ou as que constituem a doutrina da Imaculada Concepção. Esta classe de fé é definida pelos escolásticos como um ato do intelecto movido a assentir pela vontade.

« A fé nos três primeiros sentidos desempenha um papel muito importante, não só nas atividades da vida cotidiana, mas também até nas da ciência pura e aplicada. Credo ut intelligam — e também, deveríamos acrescentar, ut agam e ut uiuam. A fé é condição prévia de todo conhecimento sistemático, de todo obrar intencionado e de todo viver decente. As sociedades se mantêm, não principalmente pelo medo dos mais ao poder coativo dos menos, mas sim por uma difundida fé na decência de outros. Tal fé tende a criar seu próprio objeto, enquanto que uma difundida desconfiança mútua, devida, por exemplo, à guerra ou às dissensões domésticas, cria o objeto da desconfiança. Passando agora da esfera moral a intelectual, achamos a fé na raiz de todo pensamento organizado. A ciência e a tecnologia não poderiam existir se não tivéssemos fé na fidelidade do universo — se não acreditássemos implicitamente (para dizê-lo com as palavras de Clark Maxwell) que o livro da Natureza é realmente um livro e não uma revista, uma coerente obra de arte e não um tapete de retalhos. A esta fé geral na racionalidade e integridade do mundo, o buscador da verdade deve adicionar duas classes de fé especiais: fé na autoridade dos peritos qualificados, suficiente para lhe permitir aceitar sua palavra sobre afirmações que não comprovou pessoalmente; e fé em suas próprias hipóteses, suficiente para induzi-lo a comprovar suas crenças provisórias mediante a ação apropria­da. Esta ação pode confirmar a crença que o inspi­rou. Por outra parte, pode provar que a hipótese original estava mal fundada, e neste caso terá que ser modifica­da até que, conforme os fatos, e assim passe do reino da fé ao do conhecimento.

« A quarta classe de fé é o que usualmente se chama "fé religiosa". A qualificação é justa, não porque as outras classes de fé não sejam fundamentais em religião como o são nos assuntos seculares, mas sim porque este volitivo assentimento à proposições que se sabe que não são verificáveis ocorre em religião, e só em religião, como uma adição característica à fé como confiança, a fé na autoridade e a fé em proposições não verificadas, mas verificáveis. Esta é a classe de fé que, segundo os teólogos cristãos, justifica e salva. Em sua forma extrema e mais intransigente, tal doutrina pode ser muito perigosa. Eis aqui, por exemplo, uma passagem de uma das cartas de Lutero. Este peccator, etpecca fortiter; sedfortius crede et gaude in Christo, qui victor est peccati, mortis et mundi. Peccandum est quam diu sic sumus; vito haec non est habitatio justitiae. ("Sou pecador e peco fortemente; mas, mais fortemente, creio e alegro-me em Cristo, que é o vencedor do pecado, da morte e do mundo. Enquanto formos como somos, temos que ter pecados; esta vida não é a morada da retidão.") Ao perigo de que a fé na doutrina da justificação pela fé possa servir de desculpa ao pecado, e até de convite a pecar, deve acrescentar-se outro perigo, ou seja, o de que a fé que se supõe salvadora possa ser uma fé em proposições não meramente não comprovadas, mas sim repugnem à razão e ao sentido moral e estejam em completo desacordo com os resultados obtidos pelos quais cumpriram as condições de penetração espiritual na Natureza das Coisas. "Eis aqui o topo da fé — diz Lutero em De Servo Arbítrio —: acreditar que Deus, salva a tão poucos e condena a tantos, é misericordioso; é justo Quem, a seu prazer, fez-nos necessariamente destinados à condenação, de modo que parece deleitar-se na tortura dos miseráveis e ser mais merecedor de ódio que de amor. Se, por um esforço da razão, pudesse conceber como Deus, que mostra tanta ira e dureza, pode ser misericordioso e justo, não haveria necessidade de fé." A revelação (que, quando é genuína, é simplesmente o relato da experiência imediata dos que são bastante puros de coração e bastante pobres de espírito para poder ver Deus) não diz nada de todas estas doutrinas horríveis, às quais a vontade força o intelecto, que sente por isso uma relutância bastante natural e justa a dar assenti­mento. Tais noções não são produto da penetração dos santos, mas sim da atarefada fantasia de juristas, que estavam tão longe de transcenderem o eu e os prejuízos da educação, que tinham a louca presunção de interpretar o universo em termos da lei judia e Roma­na, com a que estavam familiarizados. "Ai de vós, os juristas!", disse Cristo. A acusação era profética e válida para todos os tempos.

« A medula e o coração espiritual de todas as religiões superiores é a Filosofia Perene; e se pode assentir às proposições da Filosofia Perene e obrar de acordo com elas sem ter que ir à classe de fé sobre a qual escrevia Lutero nas passagens precedentes. Deve, é óbvio, haver fé em sua condição de confiança — pois a confiança no próximo é o princípio da caridade para com os homens, e a confiança, não só na fidelidade material do universo, mas também em sua integridade moral e espiritual, é o princípio da caridade ou amor-conhecimento para com Deus. Deve haver também fé na autoridade — a autoridade daqueles cuja abnegação os pôs em condições de conhe­cer o Fundamento espiritual de todo ser, seja por contato direto ou por ouvi-la. E, finalmente, deve haver fé nas proposições a respeito da Realidade enunciadas por filó­sofos à luz de uma revelação — proposições que o crente sabe que pode comprovar por si mesmo, se estiver disposto a cumprir as condições necessárias. Mas, enquanto a Filosofia Perene seja aceita em sua simplicidade essencial, não há necessidade de volitivo assentimento à proposições das quais de antemão se sabe que não são comprováveis. Aqui é necessário observar que tais proposições podem chegar a ser verificáveis assim que uma intensa fé afete o substrato psíquico e assim crie uma existência cuja derivada objetividade po­de realmente descobrir-se "lá fora". Contudo, recordemos que uma existência que tira sua objetividade da atividade mental dos que acreditam intensamente nela não pode ser o Fundamento espiritual do mundo, e que uma mente atarefada na atividade volun­tária e intelectual que é a "fé religiosa" não pode achar-se no estado de renúncia ao eu e de atenta passividade que é a condição necessária ao conhecimento unitivo do Fundamento. Por isso afirmam os budistas que "a amorosa fé conduz ao céu; mas a obediência ao Dharma conduz ao Nirvana". A fé na existência e poder de qualquer entidade sobrenatural que seja menos que a Realidade espiritual última, e em qualquer forma de adoração que não alcance o abatimento de si mesmo, produzirá sem dúvida, se o objeto da fé é intrinsecamente bom, um melhoramento do caráter, e provavelmente a sobrevivência póstuma de melhorada personalidade em condições "celestiais". Mas esta sobrevivência pessoal dentro do que é ainda a ordem temporária não é a vida eterna da união atemporal com o Espírito. Esta vida eterna "está no conhecimento" da Divindade, não na fé em algo que seja menos que a Divindade.»

A imortalidade obtida pela aquisição de uma condição objetiva (por exemplo, a condição — alcan­çada pelas boas obras inspiradas pelo amor a algo inferior à Divindade suprema e pela crença nesse algo — de unir-se em ato ao adorado) está exposta a terminar; pois nas Escrituras se afirma distintamente que o Carma não é nunca causa de emancipação.

Shankara

« O Carma é a sucessão causal no tempo, da qual somos somente libertados "morrendo para" o eu tem­poral e nos unindo com o eterno, que está além do tempo e causa. Pois “quanto à noção de uma Primeira Causa, ou Causa Sui” (para citar as palavras do Dr. E R. Tennant, eminente teólogo e filósofo), “devemos, por um lado, ter presente que nos refutamos ao tentar estabelecê-la por extensão da aplicação da categoria causal, pois casualidade universalizada implica contradição; e, por outra parte, recordar que o Fundamento último sim­plesmente ‘É’." Só quando também o indivíduo "sim­plesmente é", em virtude de sua união, pelo amor-conhecimento, com o Fundamento, pode haver liberação completa e eterna.»
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A Filosofia Perene, de Aldous Huxley.

A fé de Jesus

 Jesus, by Alex Grey

« JESUS possuía uma fé sublime, e de todo o coração, em Deus. Ele experimentou os altos e baixos comuns da existência mortal, mas religiosamente nunca duvidou da certeza da vigilância e do guiamento de Deus. A sua fé era fruto do discernimento nascido da atividade da presença divina do seu Ajustador residente. A sua fé não era nem tradicional nem meramente intelectual; era totalmente pessoal e puramente espiritual.

« O Jesus humano via Deus como sendo santo, justo e grande, assim como verdadeiro, belo e bom. Todos esses atributos da divindade, ele os focalizava na sua mente como a “vontade do Pai no céu”. O Deus de Jesus era, ao mesmo tempo, “O Santo de Israel” e “O Pai vivo e amoroso do céu”. O conceito de Deus, como um Pai, não foi original de Jesus, mas ele exaltou e elevou essa idéia como uma experiência sublime, realizando uma nova revelação de Deus e proclamando que todo ser mortal é um filho desse Pai de amor, um filho de Deus.

« Jesus não se apegou à fé em Deus como o faria uma alma que se debate em luta contra o universo, ou que se agarra à luta de morte contra um mundo hostil e pecaminoso; ele não recorreu à fé meramente como uma consolação em meio a dificuldades, ou como um conforto em meio à ameaça do desespero; a fé não era apenas uma compensação ilusória para as realidades desagradáveis e os sofrimentos da vida. Ao enfrentar todas as dificuldades naturais e as contradições temporais da existência mortal, ele experimentou a tranqüilidade da confiança suprema e inquestionável em Deus e desfrutou a imensa emoção de viver, pela fé, na própria presença do Pai celeste. E essa fé triunfante foi uma experiência viva de realização real do espírito. A grande contribuição de Jesus para os valores da experiência humana não foi de haver revelado tantas idéias novas sobre o Pai no céu, mas foi mais por ele haver, tão magnífica e humanamente, demonstrado um tipo novo e mais elevado de fé viva em Deus. Nunca, em todos os mundos deste universo, na vida de qualquer mortal, Deus tornou-se uma tão viva realidade como na experiência humana de Jesus de Nazaré.

« Na vida do Mestre, em Urântia, este e todos os outros mundos da criação local descobriram um tipo novo e mais elevado de religião, baseada em relações espirituais pessoais com o Pai Universal e totalmente validada pela autoridade suprema da experiência pessoal genuína. Essa fé viva de Jesus era mais do que uma reflexão intelectual, e não era uma meditação mística.

« A teologia pode fixar, formular, definir e dogmatizar a fé, mas, na vida humana de Jesus, a fé era pessoal, viva, original, espontânea e puramente espiritual. Essa fé não era uma reverência à tradição, nem uma mera crença intelectual que ele mantinha como um credo sagrado, era mais uma experiência sublime e uma convicção profunda mantendo-o em segurança. A sua fé era tão real e todo-inclusiva que varreu para longe, absolutamente, quaisquer dúvidas espirituais e destruiu efetivamente todos os desejos conflitantes. Nada foi capaz de afastá-lo de ancorar-se espiritualmente nessa fé fervorosa, sublime e destemida. Mesmo na derrota aparente ou nas fortes dores do desapontamento e do desespero ameaçador, ele permaneceu calmamente na presença divina, livre de medo e totalmente consciente da invencibilidade espiritual. Jesus desfrutou da certeza revigorante da posse de uma fé inflexível e, em cada uma das situações de provação, demonstrou infalivelmente uma lealdade inquestionável à vontade do Pai. E essa fé magnífica não se intimidou, mesmo diante da ameaça cruel e esmagadora de uma morte ignominiosa.

« Em um gênio religioso, uma fé espiritual muito forte, com freqüência, leva diretamente ao fanatismo desastroso, ao exagero do ego religioso, mas não aconteceu assim com Jesus. Ele não foi afetado desfavoravelmente, na sua vida prática, pela sua extraordinária fé e pela realização espiritual, porque essa exaltação espiritual era uma expressão totalmente inconsciente e espontânea, na sua alma, da sua experiência pessoal com Deus.

Søren Kierkegaard y la búsqueda del caballero de la fe

Kierkegaard

« Lo confieso con sinceridad: no he podido encontrar, a lo largo de mis experiencias, un solo ejemplar de caballero de la fe digno de confianza, sin que con esta afirmación quiera negar que quizás una de cada dos personas lo sea. Pero se da la circunstancia de que llevo muchos años buscando en vano. Generalmente viajamos por el mundo con el fin de ver ríos y montañas, estrellas de otras latitudes, pájaros variopintos, peces deformes y razas humanas grotescas; nos abandonamos a un estupor animal, que nos deja con la boca abierta ante lo existente, y concluimos por creer que hemos visto algo. Nada de eso me interesa. Pero si yo viniera a saber dónde habita un verdadero caballero de la fe, me pondría en el acto en camino hacia aquel lugar, pues esa es la clase de maravilla que me interesa. Una vez encontrado no lo perdería de vista un solo momento, observando constantemente todos y cada uno de sus movimientos. Me sentiría como quien ha encontrado un sustento en esta existencia y dividiría mi tiempo dedicando una parte de él a observarlo y otra a ejercitarme yo mismo, de modo que todo mi tiempo sería empleado en admirar-lo.»

Temor y Temblor, de Søren Kierkegaard.

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